A indústria da dobragem: Transformar a palavra na Som Norte
Ao contrário do público adulto português, pouco habituado a conteúdos dobrados, as crianças aderem naturalmente a estas vozes trabalhadas. Por isso os programas infantis estão em maioria nos estúdios da Som Norte, que nasceu numa tentativa de descentralizar a indústria.
“Um estúdio de dobragem é um estúdio onde transformamos a palavra original na palavra portuguesa e fazemos disso a nossa arte.” – Jorge Paupério
É na Rua do Parque, 1º de Maio no número 169, Vila Nova de Gaia, que a Som Norte se situa. É nas paredes losangulares e nos respetivos corredores com as cores verde e vermelha – simbolizam a Bandeira Nacional Portuguesa – que mais um dia de trabalho começa. Jorge Paupério de 63 anos é ator e diretor de dobragem, Rui Oliveira de 56 anos, ator e Flora Miranda de 37 anos, atriz trabalham nesta empresa.
Computadores, interfaces de áudio (tem como objetivo principal fornecer as conexões necessárias para transmitir os sinais áudio), monitores de estúdio (acentuam certas faixas de frequências para melhorar a questão sonora), painéis acústicos, armadilhas de graves (um género de espuma acústica), são alguns dos materiais visíveis num dos estúdios da Som Norte. É neste ambiente que Jorge Paupério relembra o início de um projeto e da vontade de criar uma indústria que “na altura, ainda nem sequer existia em Portugal, havia só um estúdio de dobragem em Portugal, que era a Nacional Filmes em Lisboa.”
Estúdio de edição da Som Norte, fotografias de: Maria Châtillon.
O diretor de dobragem explica que no início em Portugal havia uma rejeição muito grande à dobragem, sublinhando que “agora há cada vez menos porque tecnicamente foi-se evoluindo.” Jorge enfatiza, “as dobragens há 30 anos eram muito más. Primeiro porque como nunca se dobrou em Portugal os atores pensavam que iam todos criar, que iam fazer Shakespeare para as dobragens e não funcionava.”
O autor Mark Nornes, no ano de 2007 no artigo “Cinema Babel, translating Global Cinema” refletiu sobre a aversão que se criou nos primórdios desta indústria, e justifica com a fraca qualidade da sincronização entre o som e a imagem. Estava-se numa fase inicial da tecnologia áudio em que a música, os diálogos e o som encontrava-se numa só faixa.
“Atualmente é uma indústria com algum relevo e alguma força”, ao longo da linha temporal o ator e diretor de dobragem enfatiza que a dobragem – apesar de ser considerada por muitas pessoas um trabalho artístico – “não é bem, é mais uma indústria.” Isto porque a dobragem implica ser-se eficaz e que os profissionais sejam capazes de fazer uma cópia “quase rigorosa” do original para que fique o mais credível possível. Uma “traduction totale” – segundo o autor Cary Grant.
“Nós durante muitos anos caímos nesse erro de tentar adaptar tudo”, refere Jorge – que tem uma experiência vastíssima nesta área – a dicotomia existente entre o mundo da dobragem em Portugal e no resto da Europa: “descobri sobretudo em França, que se dobra muito, eles realmente não adaptam nada. Os locais, os nomes, fica tudo no original sempre.”
Isto porque após a Segunda Guerra Mundial o Estado Novo proibiu a dobragem em Portugal, enquanto que Espanha, Itália, Alemanha e França preocupavam-se em estabelecer a obrigatoriedade da dobragem não só no cinema, como também na televisão. A legendagem tornou-se, efetivamente, num hábito depois desta proibição e, por isso, só foi legalizada em Portugal no ano de 1993, cresceu exponencialmente nos anos 90.
A dobragem – segundo Montero Dominguez – no artigo “Una aproximación a la traducción para el doblaje en Galicia” no ano de 2005, define-se como uma modalidade de tradução audiovisual em que a faixa sonora traduzida substitui o som original. No entanto, a imagem aliada ao som nunca poderá ser posta em segundo plano porque Jorge explica que se o ator extrapolar na interpretação e no tom de voz com que dobra certa personagem, a dobragem não é eficazmente passada ao público. O autor Ascheid (Speaking tongues: voice dubbing in the cinema as cultural ventriloquism) no ano 1991 foi mais longe, considerando que a obra fílmica dobrada se torna num novo e recontextualizado produto, o que acaba por emanar aos olhos do espectador o fator novidade, como se de um produto original se tratasse.
A imagem e o som têm de “rimar“
A esfera que integra a dobragem é complexa e enfrenta desafios e diferenças abismais perante a legendagem por inúmeros fatores: em primeiríssimo lugar a dobragem é mais custosa, passa por um processo mais demorado, possui exigências de sincronização labial, porém vê-se como uma mais valia por respeitar e fornecer mais informação ao original, permite que o espectador se concentre nas imagens e uma maior ilusão cinematográfica.
Todos estes pontos fazem com que o trabalho e a procura de profissionais tenha de possuir um caráter exímio, de excelência. Neste sentido Jorge Paupério afirma que a Som Norte investe mais em atores por uma simples razão: “a dobragem implica ter uma boa dicção, ter uma boa capacidade interpretativa e sincronismo. Se não fores ator tens que resolver três ou quatro problemas ao mesmo tempo, o que não quer dizer que não se chegue lá também, só que se demora mais tempo.”
O autor húngaro Istvan Fodor (Linguistic and Psychological Problems of Film Synchronization) no ano de 1969 considera indispensável que seja feita uma reprodução fiel e artística do diálogo original e uma exímia substituição dos sons do profissional da dobragem – ator – com os movimentos labiais visíveis. Segundo o diretor de dobragem, a imagem e o som têm de “rimar.”
Quando os ficheiros e os guiões chegam à empresa, são transformados num ficheiro leve para poder ser enviado à tradutora que o irá traduzir. Segundo os autores Hatim e Mason, a tradição afigura-se como um processo comunicativo enquadrado num contexto social e cultural em que o tradutor, é o comunicador e, por isso, tem de manter o equilíbrio entre os objetivos comunicativos e os recetores.
O produto chega de volta ao estúdio, onde o espera um adaptador – que vai dirigir a série e adaptar as falas das personagens à imagem. Os atores dirigem-se, um a um, ao estúdio para gravar a dobragem. O prazo de entrega da tradução dependerá do produto e da sua duração, enquanto o casting das vozes para as personagens é feito pelo diretor. Por norma são feitos castings de três vozes por personagem.
Rui Oliveira, ator, encontra-se na cabine de gravação para mais uma dobragem, um desenho animado já no oitavo episódio: “O cão adora Peças de Teatro.” Já faz dobragens há 33 anos e, por isso, mostra um à vontade acrescido na cabine e na eficácia com que se adapta às falas.
Flora Miranda perceciona que a dobragem “é diferente de representar em palco, mas não é diferente de interpretar porque aqui conhecemos a personagem e interpretamo-la logo a seguir. À medida que vamos conhecendo a personagem, então já temos esse chip e a dinâmica daquela personagem.”
Rui corrobora: “a dobragem geralmente é uma tentativa de nos adaptarmos à voz original ou do boneco ou da pessoa de carne e osso. Não é bem um tipo de representação onde o ator tem a liberdade para fazer o que lhe apetece em palco”, no entanto, expressa-se como se num palco se encontrasse, num conjunto de gestos e expressões afirma que assim o trabalho vê-se facilitado.
Já dobrou o Génio do filme Aladin em Português, a Zebra do filme Madagáscar, o Joker do filme Batman animação, a título de exemplo. A dobragem acaba por se ver, maioritariamente, direcionada para o público infantojuvenil (divide-se, segundo Pereira 2009, em três grupos, o pré-escolar, entre os dois e os cinco anos, o grupo infantil, com idades entre os seis e os 11 e, por fim, o juvenil constituído por jovens com idades entre os 12 e os 16 anos.)
Jorge Paupério recorda com nostalgia e um sorriso o primeiro trabalho de dobragem da Som Norte, lembrando que foi, precisamente, uma dobragem direcionada para este público.
Alguns filmes e séries dobrados, fotografias de: Maria Châtillon.
Existe para o público infantojuvenil, em Portugal, como José Navarro de Andrade no ano de 2007 explicita uma concordância em relação à utilização da dobragem no caso dos públicos mais jovens: “Há uma âncora fundamental nos desenhos animados que é a língua. Os Pokémon são portugueses, porque falam português e nem pensar em legendar, têm de ser mesmo dobrados.”