“Nós já crescemos num pedaço de betão”, a luta por um jardim na Boavista

Voltar
Escreva o que procura e prima Enter
“Nós já crescemos num pedaço de betão”, a luta por um jardim na Boavista

[Reportagem de Lourenço Hecker e Sara Silva]

[Imagem de destaque: @niconiconicolau]

Um movimento criado por moradores da Boavista visa a criação de um jardim público ao invés da construção de um centro comercial no terreno da antiga estação ferroviária.

Na rua do Capitão Henrique Galvão, uma perpendicular à Avenida da França, zona da Boavista, mora Dolores Filipe. Nasceu em Lisboa mas mudou-se para a zona do grande Porto há 20 anos atrás. Anteriormente morava na zona de Matosinhos, mas há 8 anos que já chama a Boavista de casa. Sempre trabalhou na Boavista e por essa mesma razão já conhece a zona muito bem. No entanto, relembra-se de momentos em que o trânsito e o stress não eram uma realidade tão presente como agora.

“Como é que era a Boavista há 20 anos atrás? Muito menos movimento, muito menos carros, muito menos pessoas, poucas construções, era muito diferente.”, esclarece Dolores.


Dolores Filipe à frente da antiga estação ferroviária da Boavista, imagem: Lourenço Hecker

Mas 20 anos depois a Boavista já não se encontra a mesma. Segundo dados estatísticos da Tomtom em 2020 o Porto tornou-se a cidade da Península Ibérica com maior trânsito, apresentando uma percentagem de 24% de congestionamento.

Do seu andar Dolores tem vista para a Casa da Música, para a Rotunda da Boavista e, em grande plano, a antiga Estação Ferroviária. Desconhecia do contrato promessa que havia, há 20 anos, com uma grande empresa espanhola para a construção de um centro comercial. No entanto, sabia que não era isso que desejava para o futuro dos 32 mil m2 da antiga estação.



A gerente de projetos e hotéis confessa não ter interesse nenhum em “mais um shopping” na zona da Boavista: “acho o El Corte Inglês bastante confuso e sinceramente não é preciso mais um pedaço de betão”.


Renata Andrade, por sua vez, “já cresceu num pedaço de betão”, referindo-se a que sempre viveu na grande cidade.

Renata Andrade na Boavista, imagem cedida pela entrevistada

Mora na avenida Sidónio Pais há cinco anos e adora a localização por estar perto de tudo, mas refere por exemplo que nas horas de ponta nem consegue ouvir a televisão na sala de estar, tamanho que é o barulho lá fora: “Como está, já é um caos, por isso imaginem com um El Corte Inglês ao fim da rua.”

Apesar de estar habituada a essa realidade, gostava de ter um espaço para relaxar perto da sua residência: “Quando quero espairecer não é à beira de casa. Vou à praia, ou ao parque da cidade, mas nunca à beira de casa. A cinco minutos dali, não há espaços para relaxar.”

Na sua opinião, o aumento do trânsito será claro, dado que “quem frequenta o El Corte Inglês não se desloca de transportes públicos”.

“As pessoas não têm como brincar fora de casa com as suas crianças ou como levar os cães a passear a um jardim. Têm que se deslocar ao parque da cidade por exemplo.”

Renata Andrade

Por isso afirma: “Já chega de enchermos a Terra com pedaços de betão”.


O movimento

Em 2019, após aperceberem-se dos planos para a antiga estação ferroviária da Boavista, um grupo de moradores veio dar voz a opiniões como as da Dolores e da Renata. Criaram uma petição pública intitulada “A favor de um jardim público no centro da Boavista e não mais um centro comercial” e gradualmente foram ganho o apoio dos portuenses. Hoje são bastante ativos nas redes sociais e continuam numa luta persistente para garantir que os 33 mil m2 abandonados da Boavista satisfaçam as necessidades de quem frequenta a zona diariamente.

“Bens públicos devem servir o bem comum.”

Movimento Jardim Ferroviário da Boavista

Retrato de Sofia Silva, imagem: Sara Silva

“Porque é que o futuro deste terreno público não está a ser decidido em auscultação à população?” Esta é a questão impulsionadora do movimento do Jardim Ferroviário da Boavista, conta Sofia Silva, co-fundadora. Sofia é uma das pessoas a quem a construção de um centro comercial irá interferir na rotina, enquanto residente na zona. O seu interesse em causas sociais assenta no facto de ser também socióloga com atividade numa ONG.


Depoimento de Sofia Silva

As propostas são claras:

-Classificação do terreno da antiga estação ferroviária da Boavista como área verde de fruição coletiva

-Classificação da antiga estação de comboios da Boavista como imóvel de valor patrimonial

Carolina Silva, imagem cedida pela entrevistada

“Para quem mora aqui, isto é uma causa muito evidente”, mas a verdade é que o movimento, que teve início em 2019, acabou por se extender para além da zona da Boavista, tornando-se numa causa de interesse para muita gente. É o exemplo de Carolina Silva. Estudante de arquitetura paisagista, apesar de não residir na zona, a jovem associou-se à causa por se rever nos valores do movimento: Considera que os terrenos públicos devem ser usufruidos pelas pessoas, para além de ser um tema do seu interesse pessoal.

Com a pandemia viral, a revolução faz-se em casa: o Jardim Ferroviário da Boavista tem redes sociais, uma petição pública, vídeos no youtube e até um website. Foi então das plataformas digitais que o movimento chegou à jovem estudante:

“Houve um ilustrador que partilhou nas redes sociais o movimento e deu imensa visibilidade à causa. Desde então comecei a acompanhá-la e decidi juntar-me depois que assisti à assembleia popular”.

A histórica invicta, que ao longo dos anos tanto tem se deparado com problemas ligados à gentrificação, começa agora a erguer-se em função da (não) existência de espaços verdes.

  • “Carência de jardins públicos sustentáveis no centro da cidade.” [imagem: @umjardimnaboavista]
  • “O centro da Boavista tem dos índices de calor e ruído mais altos da cidade e precisa de medidas urgentes de criação de zonas de acalmia e redução da temperatura.”. [imagem: @umjardimnaboavista]
  • “Excesso de grandes superfícies comerciais (impacto do trânsito e no comércio local).”. [Imagem satélite Google Maps]
  •  “Porque estamos perante a primeira estação ferroviária totalmente operacional do Porto. Inaugurada em 1875, faz parte da memória histórica e simbólica da cidade e o seu edifício deve, por isso, ser preservado.”. [Imagem de arquivo]
  • “Porque este quarteirão central da Boavista está votado ao abandono há 20 anos, impedindo que a população usufrua deste espaço e contribuindo para o estado de degradação e desvalorização crescentes desta zona da cidade.”. [imagem: Nuno Morão]
  • “É um dos últimos terrenos públicos não construídos no centro do Porto que pode dar lugar a um jardim público.”. [imagem: @umjardimnaboavista]

21 anos de contratos…

Em 2001 fechou oficialmente a primeira estação ferroviária do Porto. Desde então, os 31 mil hectares que antes eram ocupados por fumos, carvão, e passageiros é agora um terreno dado ao abandono. Um ano antes, um contrato-promessa foi feito entre a Rede Ferroviária Nacional (REFER) e o El Corte Inglês, para direitos de superfície dos terrenos ferroviários da Boavista durante 149 anos, válido até 2003. A empresa Espanhola teria de pagar 20 milhões de euros, dos quais já pagou 19 milhões até ao momento. Ainda assim, nada aconteceu nos dois anos que se seguiram. Foi então que se deu um prolongamento do contrato até julho de 2007. 

O contrato volta a expirar e desta vez, em 2007, o REFER deixa de ter qualquer obrigação legal com o El Corte Inglês. Surpreendentemente, o contrato é retomado, depois de novamente expirado, e é prolongado até abril de 2028. Em 2018 o contrato passa para as mãos da IP e o prazo é reduzido até julho de 2021, extensível por mais 1 ano. 

Passaram 21 anos e este espaço público continua a ser alvo de uma constante luta de privatização.

Domínio do capital vs Sensibilização ambiental

A decisão final deste espaço público dado ao abandono há mais de 20 anos pode também criar um nicho de visitantes, caso acabe por ser uma boutique como o El Corte Inglês. Em média, o salário líquido em Portugal era de 887 euros no segundo trimestre de 2018, segundo dados do INE. Apesar de ter sido o valor mais alto registado pelo menos desde o quarto trimestre de 2011, muitas das lojas que estão no El Corte Inglês têm produtos mais caros do que esse valor. Sendo assim, não é possível afirmar que o El Corte Inglês será um centro comercial para todos, mas apenas para aqueles que tiverem possibilidades monetárias para tal.

Por outro lado, se a decisão final for o jardim ferroviário, o mesmo não aconteceria. Este seria um espaço que aceitaria a entrada de todos independentemente de raça, sexo, orientação sexual e, mais importante de tudo, possibilidades monetárias, visto que seria de de usufruto gratuito.

“Nem todos nós recebemos o suficiente para ir comprar ao El Corte Inglês, já pensaram nisso? Sou totalmente a favor deste movimento, um parque faz mais sentido não só num ponto de vista ambiental, mas também de inclusão” afirma um assinante da petição.

A visão

[Imagem: Sara Silva]

No dia 11 de maio, o movimento foi à rua, mostrar-se aos cidadãos, com o apoio do projeto “Ecoante”, “uma instalação móvel que procura questionar a presença – ou falta dela – de espaços de participação cidadã na cidade do Porto.”

“Verem o que está para lá do muro. Isto é uma coisa muito importante porque muitas vezes as pessoas têm uma perceção errada do terreno, que é enorme”, explica a voz responsável, Sofia Silva.

Naquele dia, foi impossível passar pela Avenida da França e ficar indiferente à instalação amarela e aos cartazes que davam vida ao muro esbranquiçado. Gabriela Magalhães , uma das integrantes do movimento, esteve presente e partilhou a experiência do contacto com as pessoas, que muitas vezes, deixaram lembranças da sua vida, quando o terreno ainda era ocupado pela estação ferroviária.


Depoimento de Gabriela Magalhães

Sobre os cartazes que ilustraram a visão do movimento no muro, a Gabriela, que também é arquiteta paisagista, conta que algumas foram realizadas por ela mesma, com a ajuda de outros colegas, enquanto que outras foram enviadas pelo grupo Locument, em apoio ao movimento: “Elas são feitas a partir de fotografias realistas do espaço, foram feitas sobretudo em Photoshop e servem para estimular a imaginação e a criatividade das pessoas”.

As respostas dos portuenses

Na petição pública “A favor de um jardim público no centro da Boavista e não mais um centro comercial”, criado pelo Movimento Jardim da Boavista, 10 mil 699 pessoas estão de acordo com a construção de uma zona verde. Algumas deixaram até comentários com experiências e opiniões próprias, aqui estão alguns deles:

Vídeo: Lourenço Hecker e Sara Silva

A resposta de quem manda

A decisão do rumo deste processo encontra-se nas mãos da Infraestruturas de Portugal (IP) e da Câmara Municipal do Porto (CMP). Até ao momento não foi dada uma resposta final ao Movimento Jardim da Boavista. No entanto a Infraestruturas de Portugal já se manifestou diversas vezes a respeito do contrato que têm com o El Corte Inglês, tudo indica que não tencionam abdicar.

“A IP em 2000 entendeu que tinha condições para fazer a constituição de um contrato promessa e a constituição de um direito de superfície, mantém honra a esse contrato e mantém a mesma disposição agora” esclareceu António Laranjo, presidente das Infraestruturas de Portugal, numa audição com o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) em março.

A 16 de março António Laranjo anunciou uma reavaliação do contrato com a empresa espanhola, principalmente no que diz respeito ao preço final a ser pago. Até agora o El Corte Inglês já pagou 19 milhões de euros dos 20 milhões de euros estipulados pela Ex-Refer há 20 anos atrás, segundo o JN e a agência Lusa.

No entanto, o que assusta principalmente os apoiantes do movimento não é só a privatização dos 33 mil m2 da Estação Ferroviária, é também o facto do projeto pensado pela IP e o El Corte Inglês não incluir a fachada e os restantes componentes da antiga estação, que são património nacional. O presidente da IP chegou mesmo a afirmar que o objetivo é focarem-se nas Estações Ferroviárias ativas e que a visão, para além do que já foi acordado há 20 anos atrás, não é uma preocupação deles.


Depoimento do presidente da IP, António Laranjo

As respostas por parte da Câmara do Porto têm sido imprecisas e pouco animadoras para os apoiantes do movimento. A 24 de maio deste ano, foi a público que a Câmara não possui interesse na preservação da antiga estação ferroviária da Boavista, que operou desde 1875 a 2001 e sofreu um incêndio em dezembro do mês passado, que consumiu parte do interior e da cobertura do edifício.

Foi Pedro Baganha, vereador do Urbanismo da Câmara do Porto quem afirmou não haver “nenhum motivo fundado na lei que permitisse indeferir a operação urbanística”. O mesmo lembrou que o grupo municipal ‘Rui Moreira: Porto, O Nosso Partido’ votou contra por considerar que “não faz sentido uma discussão pública num terreno com interesses privados”, segundo a Lusa.

Publicação feita pelo movimento na sua página de Instagram

De considerar ainda a rapidez com que a câmara tratou de remover os cartazes aplicados no muro pelo movimento jardim na Boavista. No despacho do PIP aprovado, a CMP aceita prescindir de 24 mil 835 m2 do terreno, preferindo uma compensação financeira do El Corte Inglês.

A petição demonstra claramente a vontade dos moradores, no entanto, as pistas indicadas por parte de quem manda são pouco verdes. A verdade é que estão em jogo 20 anos de contrato com a empresa espanhola, envolvendo já quase 20 milhões de euros, e “não querendo o Estado reverter o negócio, compreenderá o problema que isto coloca a toda a cidade do Porto”, como afirma o autarca Rui Moreira.