A pandemia não parou o colecionismo: “Chego a comprar artigos que não gosto ou nem conheço”
O colecionismo é uma prática que continua em vigor em 2021. A pandemia não conseguiu travar os colecionadores, que continuaram a comprar em lojas, feiras e, agora principalmente, online. Os discos de vinil, artigos de pokémon e pop figures são alguns dos objetos que persistem nas coleções.
Ao entrar na casa de Carlos Araújo, na Maia, deparomo-nos logo com uma grande coleção de CDs à esquerda, na sala de estar.
Segundo o artigo de Teresa Pinhal, “A poética do colecionador- um caso de estudo”, publicado em 2012, “Colecionar implica, em boa parte, selecionar emocionalmente objetos pelo valor subjetivo que atribuímos”. Para isto, vendem-se, trocam-se e negoceiam-se variados objetos. A mais comum é a coleção de selos, denominada filatelia.
De acordo com a psicanalítica, é difícil traçar o perfil de um indivíduo colecionador, pois provém de algo que, aparentemente, nada traz de prazeroso. De postais a relógios de marcas luxuosas, as coleções nada têm que ver com o preço do artigo, mas sim com o indivíduo que coleciona.
“O preço para mim não é importante. Para mim o importante é ter o maior número possível, a discografia mais completa de cada artista, principalmente dos portugueses”, garante Carlos, sem desviar o olhar da coleção.
Embora tenha uma vasta coleção, não possui sequer um leitor de discos compactos e supõe que terá ouvido no máximo 5%, através do computador. Compra discos de vários géneros, porque o gosto está em “pegar nos discos, manusear, ver as edições diferentes, folhear o livrinho”.
“Chego a comprar de artistas que não gosto ou não conheço e nem é pela capa nem nada, é mais um para a coleção”.
A paixão iniciou-se há cerca de 30 anos, quando começou a ter dinheiro para a sustentar. “Eu gostava de vinis, mas não tinha possibilidades para os ter. Quando comecei a ganhar um ordenado comecei a comprar”.
Recorda-se do primeiro disco de vinil e do primeiro CD. O primeiro disco foi o seu pai que comprou da banda internacional ABBA. Já o primeiro CD, alusivo ao Festival Eurovisão da Canção, foi comprado por Carlos, que se fascinou por ser “novidade”. Foi este evento, que se realiza desde 1951 e que Carlos começou a ver desde 1979, que originou a coleção. No ano seguinte participaram as Doce, um grupo constituído por quatro cantoras, responsáveis por temas de sucesso como “Amanhã de Manhã” e “Bem bom”.
O conjunto acaba por se estender quando admira um determinado artista ou evento. As revistas, jornais, DVDs, das Doce ou da Eurovisão são também um complemento essencial.
Ao circular pela casa, conta-nos que, desde março de 2020 deixou de frequentar feiras de antiguidades e vai raramente a lojas físicas. A internet apoderou-se de si e é lá que encontra as maiores promoções. “Deixei de frequentar as lojas e feiras, mas a internet substitui perfeitamente, se calhar é ainda melhor”.
“Já comprei repetidos, tenho uma lista, mas às vezes não está atualizada, penso que não tenho e compro”, exprime com risos. “Depois de comprar, custa-me vender, nem que seja repetido. Só se aparecesse alguém que pagasse mais do que aquilo que custou ou então fica para troca”.
Este gosto pela música já o transportou até Vigo, em Espanha. “Já cheguei a comprar discos portugueses em Espanha, que aqui não arranjava e mais baratos”.
Por não ter nenhum familiar colecionador, sublinha que a família em geral não apoia e que afirma ser só “mais lixo”. Contudo, isso nunca teve repercussões em si. “Nunca me influenciou a parar de colecionar, às vezes também penso que compro demasiados seguidos, mas também há outras vezes que estou sem comprar nada. É consoante a oferta que aparece”.
Existem três divisões onde guarda os seus bens preciosos, a sala de estar, o corredor que encontramos ao subir as escadas e, ao lado, o sótão.
“Sótão”, que é também o nome que faz parte de uma das mais prestigiadas lojas de antiguidades no Porto, “O Sótão da Tia Becas”. O nome foi pensado em homenagem à falecida irmã de António Paulo Machado, o dono da loja.
São poucos os artigos que esta loja não possui e ao entrar, somos invadidos com tantos objetos, que existe dificuldade em direcionar o olhar para algo em particular. Brinquedos, louça, bandeiras, quadros, relógios, aviões e até bicicletas, são alguns dos artigos que podemos encontrar pendurados no teto. De postais à grandiosa bailarina, existem relíquias de todos os tamanhos e preços, que o cliente pode observar, enquanto é embalado pela música ambiente. O movimento na loja continua estável e são muitas as chamadas que a loja vai recebendo.
Foram os vários ajuntamentos de António Machado, mais conhecido por “Paulo” que o obrigaram a abrir uma loja, por falta de espaço e dinheiro. A louça das Caldas da Rainha era a que mais lhe suscitava interesse, mas também a mais dispendiosa. Todavia, o lojista nunca se considerou um colecionador. “Um colecionador é uma pessoa que tem um determinado objetivo, não compra tudo, tem uma seleção. Eu sempre comprei o que gostava”.
São muitas as histórias que Paulo tem para contar ao longo destes 10 anos, sobre os seus clientes. Uma delas, é sobre um pai, que queria incitar o gosto pelo colecionismo ao filho.
Muitos dos objetos do estabelecimento têm um valor sentimental para si, pela sua história e quando tem de os vender, torna-se complicado. “Custa… Tenho coisas que me ficam por aqui”, relata Paulo, a apontar para a garganta.
“Tenho vendido coisas que quem me dera a mim tê-las, mas é assim, também se dá alegria a outros. Isto não é nosso, é passageiro. Nós vamos e as coisas cá ficam, na mão de quem as estima”.
Paulo defende que, com a atual situação que o país ultrapassa, “quem vem à loja ‘hoje’ é porque gosta disto”. Através de conversas entre o responsável pela casa e os aliados do colecionismo, apercebemo-nos que estes muitas vezes ensinam o próprio lojista, por terem tanto conhecimento e dedicarem grande parte do seu tempo àquela área em específico.
A influência das lojas nos funcionários
António Gonçalves tem 30 anos e é natural de Paredes. Trabalha na loja há praticamente 10 anos e assegura que a sua paixão pelo colecionismo começou desde que foi para lá trabalhar.
Remete-nos para um desenho animado, Pokémon. A nostalgia da infância foi o fator que o impulsionou a começar. A arte de colecionar, para António, também não está diretamente ligada ao preço, mas sim ao valor emocional. Tem uma consola do Pokémon, que só existem 112 no mundo. “Eu por acaso tenho uma por pura sorte, estava destinado e a pessoa também cedeu-me a mim, porque sabia que era para coleção”. Para além disto, António tem também um conjunto de pop figures, que nasceu por causa da sua personagem favorita.
Fotografias cedidas pelo entrevistado.
Tanto Carlos como António tiveram alguns anos em que não colecionaram, no entanto acabam por considerar um “vício”, porque a tendência é sempre “aumentar”.
“Em vez de beber ou fumar, gasto dinheiro em coisas para mim ou para os outros, que ficam aí para sempre”, esclarece o maiato.
A maioria das lojas de velharias permanecem abertas
Da Rua dos Mártires da Liberdade à Travessa de São Carlos não faltam lojas de antiguidades conhecidas por Carlos Araújo. Para além da loja de António Machado, também “Velharias & Curiosidades” e “Antiguidades” continuam a funcionar.
A pandemia agravou inevitavelmente o negócio para todos. Ainda assim, Paula Fonseca, dona de “Velharias & Curiosidades” considera-se uma sortuda pelo seu público ser maioritariamente português.
“A nossa sorte é que os nossos clientes são portugueses. Acabam por vir sempre cá todas as semanas ou uma vez por mês. Para quem funciona ligado ao turismo é mais complicado”, declara.
Fotografia: Mariana Oliveira
Paula Fonseca e Jorge Farias, o marido, afirmam que os colecionadores, por norma já vêm com algo em mente para comprar. As coleções mais comuns são de quadros, discos, livros antigos, postais, artigos militares, relógios, despertadores, credifones e máquinas fotográficas. Colecionar é também, para eles, quase uma “moda”, “Quando foi a feira do vinil em Lisboa, já sabíamos que iria haver muita procura”.
A relação próxima que têm com os clientes faz com que se lembrem deles ao efetuar uma aquisição. “Muitas vezes compramos a pensar naquela pessoa [colecionador] e a pessoa chega cá e já tem”. Paula Fonseca julga que “as pessoas acabam por ser compulsivas a comprar”, por levarem quase todos os objetos da loja necessários para a sua coleção. Reconhece ainda que as pessoas continuaram a colecionar, nem que seja comprar pela internet. A loja “Velharias & Curiosidades” possui uma conta no OLX, como outro meio de subsistência.
Não existe aparentemente rivalidade entre as lojas de antiguidades, no Porto. “Damo-nos todos bem, costumamos fazer um almoço de Natal todos juntos”.
O impacto da pandemia em “Velharias & Curiosidades”
O estabelecimento que sentiu com maior peso o efeito da COVID-19 foi “Antiguidades”, localizado na Travessa de São Carlos, mesmo em frente ao “Sótão da Tia Becas”, pelos consumidores serem, na maioria, estrangeiros. Aqui, é possível encontrar artigos construídos no século XVII e XVIII, mas os donos queixam-se do custo dos portes para outros países.
Fotografia: Mariana Oliveira
Artur e Teresa Faro são o casal responsável pela casa. Ao entrar é logo percetível o cheiro a incenso e a mobília antiga. Teresa, de 68 anos, acredita que isto são as verdadeiras antiguidades e que atualmente vendem-se algumas com “meia dúzia de anos”, e que o seu negócio está a perder o valor.
“Esta arca que está aqui era para ir para os Estados Unidos, mas o transporte e os direitos eram tão caros que o senhor desistiu”, diz o casal, completando-se, a apontar para a arca vinda da Índia. “Uma antiguidade para entrar nos Estados Unidos paga direitos enormes, só não paga, se a pessoa que comprou declarar que, à morte dela, a peça reverte para o Estado”, explica Artur, natural do Porto.
Não se identificam com ajuntamentos, porque apenas compram aquilo que gostam. Para além disso, ambos suspeitam que “os colecionadores devem ser pessoas que não tiveram possibilidade de ter os objetos quando eram pequenos”. Contudo, aparecem muitos clientes à procura de peças para acumular, como baralhos de cartas, latas de atum, medicamentos antigos e rolhas de champanhe.
Rodeados de antiguidades, todas elas com mais de 100 anos, admitem que a importância está na história e no facto de ser tudo feito à mão. “Agora poucos portugueses compram, os que compravam a maioria já morreu e os filhos venderam, deram cabo de tudo”. Porém, ainda têm alguns clientes jovens que compram as antiguidades por terem crescido naquele ambiente.
A falta de turistas na atual situação pandémica do país está a contribuir para uma quebra no negócio de “Antiguidades”, no entanto as restantes lojas de colecionismo não sentiram grandes diferenças, pois o seu público sempre foi maioritariamente português.