A raiz dos malmequeres: histórias contemporâneas do lugar onde nasceu a associação
- Diana Loureiro
- 21/06/2022
- #Social Arte e Culturas
O futuro presente de Noêda: um lugar atemporal onde o passado, o presente e o futuro florescem numa só voz. A família Saldanha e a família Moutinho têm, no seu baú, histórias que misturam os três tempos, sobre a zona que batiza a Associação Recreativa “Os Malmequeres de Noêda”.
[Texto de Diana Loureiro e Diogo de Sousa]
Noêda é a zona que dá nome à associação que caminhou para a Travessa de Miraflor e que, para trás, deixou um trilho de malmequeres que agora florescem com a Primavera. É na parte de trás de Campanhã que se inicia este trilho.
“Creio no mundo como num malmequer. Porque o vejo. Mas não penso nele. Porque pensar é não compreender…”
Fernando Pessoa
O tesouro de Noêda
É entre a Rua de Noêda com o Largo de Noêda que se encontra um tesouro. Três pequenas casas pitorescas que, apesar de partilharem a mesma cor branca, diferem entre si em pequenos detalhes. A primeira ostenta roupas no estendal, que descansam ao sol como se de três octogenários se tratasse.
O terceiro domicílio conquista a visão através do jardim de rua que fica em casa. Tilândsias, cactos e plantas suculentas demonstram os dias solarengos que douram o tesouro de Noêda. Todas elas parecem carecer de hidratação, acrescentando à rua, onde não passa vivalma, o carácter de deserto.
A casa do meio vangloria-se com esculturas em cerâmica, que fazem o papel de adorno mas também de troféu. Uma figura de uma idosa que alegremente se assemelha à responsável por trás da residência. Um cinto marítimo de conchas que abraçam a caixa do contador de água. Vasos, canecas de barro, uma placa que informa quem vive aqui: a Família Saldanha. E por fim, três andorinhas.
As andorinhas representam saudade, esse tão típico sentimento português. Em entrevista ao National Geographic, o arqueólogo Ricardo Brochado afirma que “as andorinhas só saem do ninho quando todas as suas crias saem e regressam sempre.”
Esta ligação ao “ninho” – ao lar ou à pátria – é tão importante na cultura portuguesa que até existe uma palavra para a descrever: saudade. O arqueólogo explica que este conceito “é como aquela sensação de ligação melancólica que sentimos quando provamos a comida da nossa avó, ou cheiramos um aroma que nos leva de regresso à infância”. “A andorinha é considerada a personificação desse sentimento”, acrescenta.
E é esse sentimento que a casa da Família Saldanha, no tesouro de Noêda, transmite.
A casa da família Saldanha
Cortinas brancas, com detalhes em renda floreada, ocultam os vidros das janelas e da porta da casa da Família Saldanha. Ao fazer ressoar o pequeno sino de ferro que se encontra do lado direito da porta, aproxima-se uma silhueta que se vai perdendo pelos raios de luz que timidamente entram pelas cortinas. Glória Saldanha tem 85 anos e é o último reduto de memória da casa, que está alugada à mesma família há 80 anos.
“Isto antes era um armazém”, conta a atual matriarca da família Saldanha, “sem água, sem luz, sem nada…”, acrescenta. Conheceu o esposo quando este regressou da Índia e mudou-se para esta casa para viver com ele e com o sogro. “E eu dei um jeito a isto”, explica Glória, “pus isto com aspecto de casa de bonecas”. Foi na “casa do Portugal dos pequeninos”, como lhe chama, que criou os filhos.
A casa de bonecas continua, até aos dias de hoje, sem casa-de-banho. Por trás, existe um armazém onde o falecido marido trabalhava nas horas livres como carpinteiro. É para lá que Glória se dirige, por não ter espaço em casa para o fazer. “Agora também hei-de me arrastar daqui lá dentro, com a bengala”, conta a matriarca, “as pernas já não ajudam muito mas ainda me arrasto”, adianta.
A vida foi-lhe madrasta e deu-lhe outra que a maltratou. “E eu passei tão mal bocado, nem conheci a minha mãe”, lastima, “ela morreu, era tão pequenina”. “Depois tive uma madrasta que me deu cabo do corpo”, acrescenta.
Nos 55 anos em que viveu na casa da Família Saldanha, já viu dias mais agitados. “Agora anda tudo sossegadinho, tudo calmo, sossegado”, certifica Glória. Diz não se incomodar com a vizinhança. “Conheço as casas daí, a maioria, porque são duas ilhas para ali para trás”, orienta. Como o marido era carpinteiro, sempre que as vizinhas partiam alguma coisa, era Glória que ajudava a levar as portas e janelas. “Não vou para casa de ninguém”, avança, “não me incomoda, tudo o que eu souber aqui é porque me vêm aqui à porta e dizem”, explica.
“De resto, eu não saio”, conta a octogenária, “eu levanto-me de manhã, ando um bocado, tenho os recados para fazer e depois sento-me aqui a bordar”, complementa, esclarecendo a sua rotina.
Bordados Gloriosos
Apesar de a arte de bordar ser a sua primeira paixão, neste momento não lhe pode dar tanta atenção como gostaria. A linha do tempo enferrujou a agulha e também o seu corpo. “Não posso estar nem muito tempo sentada, nem muito tempo de pé, nem muito tempo a bordar”, conta Glória, “tenho de ter um bocado de tudo”, lamenta.
Os bordados que faz são grandes, o que exibe com orgulho na fotografia tem dois metros. “Agora demora bastante porque faço mais devagar”, demonstra, “porque me dói aqui a coluna, tenho dificuldades e tenho que parar”, explica, com a mão apoiada no dorso. Confessa que a exigência do cliente também tem peso no tempo que demora a bordar, “se for para pagar, tento fazê-la mais depressa”. A toalha que traz nas mãos demorou “muito tempo”, “são doze cores de linha”, descreve. Tirou a amostra de uma revista que comprou na papelaria, “quando a vi disse “eu vou comprar aquela revista, vou ver se tiro a amostra antes de morrer”, completa Glória, com uma ironia que se lê no seu sorriso.
A matriarca da família Saldanha tinha oito anos quando se aventurou no mundo dos bordados. Hoje, acha que “a mocidade não quer nada”. Vê pelas suas netas que as novas gerações não têm interesse nesta cultura perdida. “Dei-lhes umas caixas cheias de coisas para o enxoval”, ilustra Glória, “com coisas bonitas e bordadas por mim, em crochet e tudo”, acrescenta. “No outro dia, eu disse “olha, precisava de uma caixa da que vós levastes”, e a minha neta respondeu “Oh ‘Vó, ainda nem sequer as abri, tu já viste o trabalho que aquilo dá depois a passar a ferro?”, conta a bordadora, com desilusão nos olhos. “Por isso é que já não faço, porque elas não querem ter trabalho”, justifica.
“Hoje em dia”, confessa, “é raro vender-se”, lamentando que as pessoas acham bonito, mas que se assustam com o preço. “Mas as linhas, uma pessoa perde tempo”, explica, “agora não estou para estar a trabalhar para aquecer”. Diz preferir ler uma revista, privando-se do contacto com a televisão. Não gosta dos programas que chegam pela caixa mágica e diz-se chocada com a exposição de alguns entretenimentos que por lá passam.
A Escola Básica de Noêda
A Escola Básica de Noêda, antiga escola primária, está localizada mesmo em frente ao tesouro e atualmente já não tem crianças pequenas. Especializada também em ensino inclusivo, dá agora novas oportunidades a estudantes dos quinze aos dezoito anos que queiram seguir vias mais específicas como fotografia, hotelaria ou turismo.
“Costuma-se dizer bonitos e feios, mancos e tortos, há de tudo”, brinca a matriarca Saldanha, assegurando que não tem nada de mal a dizer sobre quem frequenta a escola. “De manhã o padeiro vem-me deixar aqui o saco, quando chegam vêm aqui buscar o saco do pão”, explica. “Ai a senhora quando precisar de ajuda”, imita Glória, referindo-se aos estudantes. “Eu não quero precisar de ninguém”, garante, “quero é que as pessoas me deixem em paz”, diz, entre risos.
A vizinha da frente da escola garante que esta é “muito segura e muito jeitosa”. Estando “muito bem arranjada”, com “uma cozinha estupenda”, “ainda para mais agora que eles modificaram a cozinha para os rapazes aprenderem hotelaria”, desenvolve.
“Esta escola foi feita há coisa de 63 anos”, conta Glória com nostalgia, “antes de terminar a guerra na Índia”, acrescenta. O marido auxiliou na construção da escola. Depois da libertação de Goa, veio trabalhar como carpinteiro e deixou um pouco do seu toque nas janelas e madeiras da instituição.
Conta ainda que no início do ano havia a ideia “para um lar para crianças e para velhotes”, coisa na qual não tem muito interesse. “Eu já disse às minhas netas: não me tirem daqui para fora a não ser para o cemitério”, ridiculariza Glória. “Gosto de estar aqui sossegadinha na minha casa”, conclui.
A casa 215
Apesar da casa do meio do tesouro de Noêda estar sob a alçada da família Saldanha durante 80 anos, há uma outra casa familiar que supera essa longevidade. Os pés da família Moutinho pisam o solo da casa 215 da Rua de Noêda há 150 anos.
Uma árvore de laranja-azeda espreita por entre a ferrugem do muro, ambos partilham a mesma cor, apesar das tonalidades diferentes. Tal como a laranjeira espreita pelo muro, um olhar indagador vigia ceticamente por trás do tronco, de perfil. A desconfiança é muita, mas a curiosidade é mais forte, fazendo-o aproximar-se, sob a segurança que confere ao portão enferrujado. Moutinho* tem 82 anos. É fruto da segunda geração que já germinou nesta casa. “O meu pai já nasceu aqui, eu também já nasci aqui”, conta.
Estão 25ºC, todavia, a falta de vento atribui uma maior autoridade ao calor. Apesar disso, um casaco polar, da mesma cor que os olhos, e uma boina de tecido fazenda servem como armadura ao corpo do octogenário. Assegura que nesta parte baixa de Noêda não há vizinhança. “Aqui são só estes e eu”, explica timidamente, “mas é quase tudo primos e parentes”.
Não obstante a justaposição do verde da natureza com o cinzento da civilização, é o metal que salta à vista. Desde telhas fixas em estruturas de ferro, arame farpado e um pequeno cavalo prateado que adorna a laranjeira.
O sorriso meigo que se rasga por baixo do bigode branco é adornado por rugas, prova das várias primaveras passadas. Mas a casa da família Moutinho nem sempre se apresentou assim ao longo dessas primaveras. As construções recentes com elementos de zinco contrastam com a casa centenária.
Da miscelânea de material reaproveitado, blocos de cimento, o verde das plantas e da pequena horta, confunde-se a cidade com o campo. A casa 215 parece um portal de volta para a cidade. É aqui que a cidade acaba, onde os materiais citadinos vão parar, ao estilo de um ferro-velho. É também aqui que começa. A última casa da Rua de Noêda tem vista para as auto-estradas que servem de cintura à cidade do Porto, onde a bolha rural de Noêda se fura, mas a natureza parece reivindicar o seu caminho.
* Moutinho não se sentiu confortável em revelar o primeiro nome.