“Acho que algumas pessoas se vão aperceber que conseguem viver sem o carnaval”

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“Acho que algumas pessoas se vão aperceber que conseguem viver sem o carnaval”

Os ovarenses Núria Pereira, presidente do conselho fiscal da escola de samba Costa de Prata, e Jorge Maia, membro do grupo carnavalesco Zuzucas, exprimem com alguma incerteza que, em tantos anos de realização anual da festividade carnavalesca, “esta é a primeira vez que o Carnaval de Ovar é cancelado por completo”. Devido à pandemia — e dado que o Carnaval se prepara com meses de antecedência — a festividade acabou por ser cancelada para 2021. Núria e Jorge afirmam que, sem uma vacina garantida, seria impossível realizar-se este grande evento, que é já um ex-libris da cidade de Ovar.

Eles afirmam que a anulação do Carnaval nunca aconteceu ao longo da história deste grande acontecimento para a cidade de Ovar. Aliás, atentam, quando há um cancelamento do Carnaval é apenas dos desfiles dos grandes corsos carnavalescos “quando está a chover, o desfile não sai à rua” expressam os dois membros da organização da festividade.

Há uma exceção. O Carnaval de Ovar foi cancelado em 1975, devido às consequências da pós-revolução do 25 de abril. As tensões entre grupos de esquerda e de direita não permitiram a realização do Carnaval em 1975 nos moldes habituais. Assim, em 1976, o desfile carnavalesco foi considerado “precário”, visto que os grupos de Carnaval desfilaram com fantasias de anos anteriores.

O cancelamento do Carnaval é certo na cidade de Ovar, mas Núria Pereira e Jorge Maia informam que a Câmara Municipal de Ovar vai proceder à realização de cerimónias festivas para assinalar a data. “É um marco importante na cidade”, sublinha Maia.

Núria e Jorge confessam com algum pesar que se a tradição se realizasse em 2021, iria ser “um descalabro” devido ao grande aglomerado de pessoas. A enorme afluência de turistas que visita a cidade de Ovar nestes dias festivos “é absurda”, nota Pereira. Os aglomerados dentro da Cidade não facilitariam na prevenção contra a propagação do da doença respiratória covid-19.

O cancelamento por si só tem um peso para a cidade e os ovarenses. No entanto, Núria e Jorge apresentam duas perspetivas. A sambista afirma que apesar de o Carnaval estar cancelado, a escola de samba Costa de Prata fez um plano de contenção para que as pessoas possam ir à sede, dentro das regras impostas. Esta exceção ajuda as pessoas a não desmotivarem do Carnaval. Todavia, a ovarense teme que haja pessoas que vão deixar cair o carnaval no esquecimento. “Acho que algumas pessoas se vão aperceber que conseguem viver sem o carnaval”, lamenta Núria Pereira, com tristeza.

Além disso, a também solicitadora, exterioriza alguma preocupação em relação às desvantagens que o cancelamento do Carnaval de Ovar vai trazer. “Se alguns têm aquele amor que ainda vai mover, acho que outros que estavam há pouco tempo, podem desmotivar”.
Por seu lado, Jorge Maia, devido ao aumento de casos no concelho de Ovar, apela para que hala cautela. “É tudo uma questão de saúde pública”.

Aliás, a 18 de março, a cidade Ovarense chegou mesmo a conhecer uma cerca sanitária, numa tentativa de conter o vírus. “As pessoas estão mais conscientes do que é a covid-19” reflete Núria, acrescentando que “o povo de Ovar está muito mais sensibilizado”. Ainda assim, há exceções. “Há pessoas que resistem um bocado, como por exemplo: vamos desfilar de máscara?”, diz Núria Pereira, deixando escapar uma gargalhada.

A controvérsia do cancelamento do Carnaval de Ovar, em 2021

A Sambista Núria Pereira desfila no Carnaval de Ovar há 20 anos. Solicitadora e presidente do concelho fiscal da Escola de Samba Costa de Prata, carrega um cargo de elevada responsabilidade. Confessa que entrou no mundo do Carnaval através da influência de uma amiga: “a mãe dessa minha amiga era na altura a presidente da escola de samba”. Aos 14 anos de idade, altura em que entrou na Costa de Prata, a solicitadora via o samba como um hobby. Mais tarde, em 2014, passou a integrar um cargo na direção da escola de samba.

Atualmente aos 34 anos de idade, passou a olhar com outra perspetiva este hobby, tendo começado a “integrar cargos com mais responsabilidade” na escola de samba. “Além da minha posição enquanto presidente do conselho fiscal, passei também a ser coordenadora do grupo responsável das mulheres. Aqui, planeia-se os ensaios e os esquemas de cada ala”, explica.

Ao longo da participação enquanto membro da escola de samba, a sambista conta com quinze vitórias. Tem o título de “Campeã Nacional de Escolas de Samba”, em 2015, o “Globo de Ouro Nacional”, em 2018, e ainda o inédito hexacampeonato no Carnaval de Ovar (2013-2019).

Fotografia cedida por Núria Pereira

Este ano, o cancelamento do Carnaval atrasou tudo. Núria relembra que nas circunstâncias de hoje, não há condições para se preparar um Carnaval ao nível daquele que se está habituado. “Por esta altura, em pleno mês de novembro, os ensaios já estavam a decorrer, estávamos a ir contra o relógio”, diz , completando que “há grupos e escolas de samba que já tinham apresentado a maquete para aprovação na Câmara”.

A escola de samba Costa de Prata conseguiu angariar uma maquete para o Carnaval 2021, durante o mês de maio, mas acabaram por suspender tudo, até a Câmara Municipal de Ovar decidir sobre iria ou não acontecer a festa ovarense. A maquete é o projeto que a escola de samba leva no desfile do grande corso carnavalesco. Engloba o tema e a pesquisa que é feita sobre o tema, para depois se proceder à realização dos fatos, do carro alegórico e da divisão das alas (divisões de grupos de pessoas que ajudam a contar a história sobre o tema escolhido).

Além da suspensão da maquete do Carnaval 2021, Pereira mostra-se apreensiva com algumas dúvidas que surgem perante o cancelamento da festividade ovarense. A Costa de Prata organiza, anualmente, alguns eventos que permitem a angariação de fundos, que serão utilizados para o pagamento de despesas. “A Gala da Costa de Prata, a Costa Summer Week, o arraial e o jantar de natal são os eventos que nos ajudam na angariação de dinheiro, que depois permitem uma melhor organização do rendimento”
diz.

Com o cancelamento dos eventos devido à propagação da covid-19, a preocupação no pagamento de contas aumentou.

Em consonância, Jorge Maia também possui cargos de elevada responsabilidade. É treinador de Basquetebol, faz parte da União de Freguesias e é presidente em exercício na direção dos Zuzucas. Ele alega, com um enorme sorriso no rosto, que entrou como participante no Carnaval de Ovar, através da “influência de amigos do pai”.

Hoje, aos 43 anos de idade considera que os Zuzucas é “um passatempo com algumas responsabilidades”. Jorge é responsável por algumas tarefas dentro do grupo carnavalesco, nomeadamente a gestão de recursos humanos, onde lida com o capital angariado ao longo do ano. Mas o mais desafiante é a gestão de recursos humanos, de forma a conciliar todas as expectativas. “O trabalho com as pessoas é um desafio constante, porque cada um tem a sua personalidade e os seus gostos pessoais. É preciso uma adaptação” explica.

Perante todo o percurso no grupo carnavalesco, o treinador acarreta já três vitórias, em 1991, 1998 e 2001.

Fotografia cedida por Jorge Maia

Ao contrário da escola de samba Costa de Prata, o grupo carnavalesco de Jorge não tem esquemas e coreografias definidas. Não é necessário tempo de preparação para que os Zuzucas, no dia do desfile do grande corso carnavalesco, apresente uma coreografia. No entanto, “devido à pandemia, isto atrasou tudo”, relata Jorge, acrescentando que o grupo tinha algumas ideias em mente, mas não chegaram a um consenso entre os membros participantes. “Por isso, as ideias que surgiram anteriormente, nunca foram formalizadas”.

O treinador de basquetebol, apesar de concordar com o cancelamento do Carnaval de Ovar, admite, com algum pesar, que a anulação da festividade ovarense, traz algumas desvantagens “Quem tem responsabilidades no grupo, como eu, pensamos sempre onde vamos buscar o dinheiro”.

A paixão pelo Carnaval

O Carnaval de Ovar é considerado como um dos festejos mais emblemáticos do país e cujo nome da cidade deu um novo Carnaval a Portugal. Não se conhece o início das tradições carnavalescas, mas os vareiros referem-se ao Carnaval de Ovar em 1887, conforme consta no jornal “O Ovarense”.

A paixão pelo Carnaval é notória no rosto de cada participante. Os olhos azuis do treinador de basquetebol brilham quando fala do Carnaval e a emoção de Núria é visível através do sorriso constante enquanto articula cada palavra.

Jorge Maia conta que o cansaço é imenso. “Quem corre por gosto não cansa, mas às vezes cansa”. O tempo é pouco quando há muitas coisas para organizar, pois “são muitas as noites perdidas, muitas noites na sede a trabalhar para levar um bom carnaval à rua” relata Maia. Ele ressalva ainda que como tem de “conciliar o trabalho com os ensaios do carnaval por vezes não é fácil, pois os ensaios são quase sempre no horário pós-laboral e o descanso é muito reduzido.” No final tudo compensa porque, “é tudo feito por amor”.

Núria Pereira refere que o amor pelo Carnaval é enorme, e quem a rodeia acaba de uma forma ou de outra, por ser influenciada por este sentimento. “Temos mães, pais, avós e amigos que nos ajudam, costuram para nós dia e noite”.

A ajuda e a união são duas caraterísticas que definem a escola de samba Costa de Prata. Para a sambista, todas as pessoas que ajudam na organização e qualidade da Costa de Prata, sejam elas participantes ou não, “sentem emoção quando veem a escola de samba a desfilar na avenida, pois têm um bocadinho delas ali”.

Este amor pelo Carnaval é uma referência de quem vive em Ovar e principalmente por quem participa na festividade. Todos os anos, quando acaba esta vitamina de alegria, pensa-se já na do próximo ano.

A ausência de turistas e as dúvidas que isso traz para a cidade de Ovar

A solicitadora Núria revela que “a escola de samba Costa de Prata neste momento está parada”. Iniciou os ensaios, mas devido ao agravamento da situação no Concelho de Ovar, teve de suspender a atividade. Ela indica que existe uma rede de ligação entre Ovar e a cidade de Viseu. Anualmente, na época de Verão é realizada uma feira popular, mais conhecida por Feira de São Mateus, em Viseu.

Todos os anos, Ovar costuma levar o Carnaval à feira de São Mateus, onde são apresentadas algumas amostras da festividade ovarense. Tal como o Carnaval de Ovar, Viseu atrai também milhares de turistas à feira popular e, por isso, a Câmara Municipal de Ovar tem a iniciativa de apresentar algumas amostras carnavalescas na feira popular, de forma a captar uma maior atenção das pessoas ao Carnaval de Ovar. Mas devido à pandemia esta é mais um tradição suspensa.

O Carnaval de Ovar é considerado como a maior manifestação cultural da cidade, devido à atração de milhares de turistas, vindos de todo o país. Atualmente e prolongando-se ao ano 2021, a cidade não vai contar com a presença de milhares de participantes e curiosos. Atrás disto, segue-se outras consequências, nomeadamente os dois mil participantes e ajudantes na organização da festividade ovarense, colocados em causa. As contas para pagar são um dos pontos mais críticos.

O comércio local também é afetado em grande escala. A restauração e os comerciantes de materiais que ajudam na realização da maquete de cada grupo carnavalesco deixam de vender. Com isso, a angariação de grandes rendimentos a que estão habituados na altura carnavalesca diminui.

A pandemia do novo coronavírus não só colocou em causa o Carnaval de Ovar como também, outras atividades festivas de regiões diferentes. Está cancelado o Carnaval em Estarreja, Mealhada, Figueira da Foz e Torres Vedras. Estas localidades não têm condições para realizar a edição do Carnaval 2021 nos moldes habituais.