Alexa: “O 25 de Abril nasceu em África” e José: “Os Ciganos e os Africanos são muito discriminados”

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Discriminações étnica, racial e de género são ainda parte de um legado autocrático. Alexa Santos e José Fernandes abordam as invisibilidades associadas ao 25 de Abril, especificamente no que diz respeito à comunidade LGBTQI+, à comunidade cigana e à comunidade negra.

O 25 de Abril é um marco muito importante na história de Portugal, celebrando a revolução que trouxe liberdade e igualdade para muitos. As minorias enfrentavam desafios adicionais na luta por essa igualdade e reconhecimento.

Alexa Santos é descendente de africanos e pertence à comunidade LBGTQI+. José Fernandes, presidente da Associação Romani que defende os direitos da comunidade cigana. Os dois têm em comum o facto de defenderem a igualdade e os direitos humanos. Para eles, o 25 de abril trouxe mudanças na vida das minorias em Portugal. No entanto, Alexa relata que, ao ler muitas autoras, apercebe-se que o 25 de abril “não trouxe uma mudança tão significativa” como ela gostaria que tivesse sido.

Antes do 25 de abril, a vida era extremamente difícil para as pessoas negras, ciganas e pertencentes à comunidade LGBTQI+. Não tinham direitos básicos, muitas trabalhavam como empregadas domésticas, não tinham acesso à documentação, educação e muitas vezes viviam com medo e em condições desfavoráveis.

Alexa fala sobre a importância do feminismo negro: “aquele que dá voz às mulheres negras”, pois fornece as ferramentas para discutir a especificidade da mulher negra no mundo. “Ajuda-nos a pensar o mundo a partir do escurecimento, propondo uma complexificação das questões normalmente ocultas e ignoradas.” O feminismo negro é uma prática, uma ação de estar, de cuidar e de agir no mundo, que permite olhar para as mulheres negras a partir de suas próprias vivências, suas condições e as discriminações que enfrentam.

“Sem as ferramentas que o feminismo negro nos traz, hoje não conseguiríamos abordar as questões de forma tão complexa como fazemos”, reforça. Portanto, é crucial considerar o feminismo a partir da perspetiva do feminismo negro. “Caso contrário, estaríamos a ignorar e a desvalorizar uma grande parte das mulheres: as mulheres negras”, afirma.

Alexa conta, a partir da narrativa pessoal, a luta das mulheres negras que emigraram de países africanos.

“Muitas mulheres negras migraram das ex-colónias para encontrar uma vida melhor em Portugal. Minha avó foi uma delas; emigrou de Cabo Verde, estabeleceu-se no Barreiro e trouxe minha mãe aos 11 anos para buscar uma vida melhor”, conta. “Hoje, minha mãe é uma cake designer no Algarve, talvez uma das poucas mulheres negras em Portugal a se identificar dessa forma”, acrescenta. Para ela, tal mostra que, “embora existam oportunidades, as mulheres negras ainda enfrentam muitos desafios”.

As mulheres negras não conquistaram direitos ao mesmo tempo que as mulheres brancas em Portugal, expõe Alexa Santos. Após o 25 de Abril, as mulheres brancas obtiveram alguns direitos que as mulheres negras só conquistaram mais tarde, como o direito ao voto, à educação, direitos trabalhistas, entre outros. Segundo ela, ainda hoje, “vivemos num país que limita significativamente o acesso das mulheres negras à cidadania, saúde, educação, entre outros direitos”.

“Raramente associamos mulheres negras a cargos de relevância. O que nos vem à mente são imagens de empregadas em centros comerciais ou em casas de família. Apesar das mudanças ao longo do tempo, muitas realidades de opressão ainda permanecem. E há situações em que a mulher negra ainda vive uma realidade paralela à da escravidão”

Alexa Santos

Durante a ditadura, as mulheres negras em Portugal viviam como escravas, sem direitos. Eram trazidas das colónias para servir pessoas brancas, vivendo em lugares reservados das casas das famílias mais abastadas. “A mulher negra era vista não como uma pessoa, mas como uma empregada”. Para Alexa, essa narrativa ainda persiste em muitas situações atuais no país.

“Raramente associamos mulheres negras a cargos de relevância”, diz, acrescentando que “o que nos vem à mente são imagens de empregadas em centros comerciais ou em casas de família.” Apesar das mudanças ao longo do tempo, “muitas realidades de opressão ainda permanecem”. E há situações em que a mulher negra ainda vive uma realidade paralela à da escravidão”.

As mulheres negras tiveram uma participação significativa nos eventos da revolução, desempenhando papéis importantes na educação, no cuidado e nas discussões. O livro “Tribuna Negra”, de Cristina Roldão, relata esse processo de luta pela liberdade das pessoas negras em Portugal, destacando a contribuição de muitas mulheres como é o caso de Carolina Beatriz Ângelo, primeira mulher a exercer o seu direito a voto, em Portugal e outras ativistas como Beatriz Nascimento, Ana Maria Casimiro e Marina Vieira que foram fundamentais na luta pela liberdade e igualdade de pessoas negras em Portugal.

Ainda hoje, surpreende-nos ouvir que pessoas negras não são portuguesas. Há muita história apagada sobre as mulheres negras no 25 de Abril devido à invisibilização de suas contribuições. Um exemplo é Virgínia Quaresma, uma jornalista negra e lésbica presente em várias publicações durante a ditadura, que acabou exilada no Brasil. Existem muitos outros relatos de mulheres que contribuíram significativamente ao longo desse processo.

Para Alexa, é inegável que o 25 de Abril contribuiu para a melhoria da igualdade racial e de género. “Vivemos numa democracia há 50 anos graças a esse marco histórico. A possibilidade de nos beneficiarmos de uma política global só existe porque, em algum momento, decidimos abrir nossas fronteiras e portas, e isso só foi possível graças ao 25 de Abril.”

Alexa Santos: “Uma Sociedade que nos diz que duas mulheres não podem ser mães”

“Nós vivemos numa sociedade patriarcal, machista, capitalista, colonial e racista”, denuncia a ativista. E continua: “Apesar de termos leis bastante avançadas, que permitem às pessoas LGBTQI+ casarem, terem filhos e adotarem, ainda não é seguro para elas andarem de mãos dadas na rua sem correr riscos e medo”.

“Um exemplo disso é a dificuldade que duas mulheres enfrentam ao tentar inscrever uma criança que tem duas mães na creche. Nos formulários, há campos para “mãe” e “pai”, e uma das mães precisa riscar “pai” e escrever “mãe”. Muitas vezes, a secretaria insiste que deve haver um pai”, declara Alexa.

Essa sociedade impede que todas as pessoas tenham os mesmos direitos, afetando mulheres, pessoas LGBTQI+, pessoas com deficiência, pessoas negras, pessoas racializadas e migrantes. É crucial entender que a nossa sociedade é composta por sistemas e normas que não se aplicam à diversidade dos seres humanos.

“Nesta sociedade ainda há muito por fazer. Quando digo que há muito por fazer, refiro-me ao desmantelamento desses sistemas que mantêm essas pessoas em diferentes níveis de poder e opressão”, diz Alexa.

José Fernandes: “O 25 de Abril mudou a lei cigana e a nossa maneira de estar na vida”

Os ciganos são um dos grupos que mais sentiram a liberdade proporcionada pelo 25 de Abril, pois tiveram a oportunidade de deixar de ser nómadas. Isso abriu portas para muitos serviços, especialmente na habitação, saúde, emprego e, acima de tudo, na educação. Enquanto eram nómadas, os ciganos não tinham a possibilidade de oferecer educação aos seus filhos. Após se tornarem sedentários, essas oportunidades se tornaram possíveis.

” Antes do 25 de Abril, 90% dos ciganos eram analfabetos. hoje, os ciganos já podem frequentar a escola e posteriormente seguir carreira. Durante a ditadura, os ciganos eram tratados quase como escravos, perseguidos pela polícia e impedidos de permanecer mais de 48 horas no mesmo local. A polícia não abordava os ciganos pacificamente. Chegavam com munições, forçando-os a fugir constantemente”, disse o presidente José.

Segundo o estudo nacional sobre as comunidades ciganas, feito em 2014, a taxa de analfabetismo encontrada é de 15,5% , 30% não têm o 1º ciclo completo ou nunca frequentaram a escola e 39% completaram apenas o ensino básico, principalmente o 1º ciclo com apenas 3% concluindo o 3º ciclo.

“A maneira como os ciganos eram tratados mudou completamente. Antes, não tinham condições de fazer higiene pessoal, nem acesso a serviços básicos, e eram muito discriminados. Isso mudou significativamente após o 25 de Abril”, recorda José Fernandes.

Além disso, continua, “o serviço de saúde era o único serviço em que nunca sentimos discriminação”.

Segundo o presidente da Associação Romani, “os ciganos desconheciam o que era um golpe de estado e não se aperceberam da mudança trazida pelo 25 de Abril, pois eram nómadas e não se interessavam por política.” Segundo ele, não participaram nos eventos do 25 de Abril. Ao contrário do que muitos pensam, os ciganos fugiam das guerras, por este motivo também é que muitos vieram parar na Europa. Em Portugal, existem pelo menos 21 associações para apoiar as pessoas ciganas, todas contra a ditadura e o fascismo. A Associação Romani foi inaugurada a 18 de abril de 1974, apenas uma semana antes do golpe de estado, e só existe por causa da Revolução, pois sem ela, os ciganos continuariam a ser perseguidos pela polícia.

“O que mais me marcou na ditadura foi o momento em que os ciganos fugiam do serviço militar. Eu vivia na rua do Bonjardim, era o único cigano da região e tinha um sótão em casa. Houve familiares que, para fugir da tropa, foram para a nossa casa e dormiram no sótão”, afirma fala José.

 “No 25 de Abril, eu estava em Lisboa e, no caminho para o Porto, vi uma multidão e um homem caído. Decidi descer para ajudar, mas um homem me impediu, dizendo que eram agentes da PIDE, então não o ajudei. Os próprios agentes da PIDE também fugiram para não serem agredidos”, relata.

“O 25 de Abril influenciou a mudança da lei cigana, que está a desaparecer. Antes, os anciãos, mais velhos da comunidade ditavam as sentenças, o que eu acho ridículo”, defende. “Prefiro ser condenado pela justiça portuguesa, que é mais branda”. Para ele, a lei cigana era muito rígida, chegando a aplicar a pena de morte.

Hoje, esses casos são raros, mas antes do 25 de Abril, os ciganos viviam mais de pequenos roubos, como galinhas, para alimentar seus filhos. Isso lhes deu má fama, especialmente quando alguns roubos resultavam em mortes por medo. Atualmente, a comunidade cigana em Portugal tem uma variedade de estilos de vida, assim como a população em geral. Muitos ciganos vivem em áreas urbanas e rurais, preservando a sua cultura e tradições. Relativamente as suas profissões, os Ciganos envolvem-se em uma variedade de campos, como: o comércio, artesanato, música e empreendedorismo.

“Uma coisa que me preocupa é que, em Portugal, há duas justiças: uma para os pobres e outra para os ricos, sendo os ciganos os mais discriminados. Cada vez que um cigano responde por algum delito, é mais castigado do que as outras pessoas não ciganas. Isso acontece diariamente em Portugal”, lamenta José Fernandes.

Para ele, apesar dos avanços de integração social e de projetos que objetivam a inclusão, ainda há muita discriminação contra os ciganos. “Isso dificulta a integração da comunidade cigana na sociedade”.

Contudo, há boas práticas de integração como por exemplo “Histórias do Povo Cigano”, sugestões de atividades para o ensino básico do Ministério da Educação, documentários como “Ser Cigano, o valor da integração” e o Observatório das comunidades Ciganas (ObCig), enquadrado na Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (ENICC), criado com o objetivo central de promover a realização e edição de estudos sobre estas comunidades.