Ao abrigo da Educação: os jovens maiores de 18 anos que estão nas casas de acolhimento

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Ao abrigo da Educação: os jovens maiores de 18 anos que estão nas casas de acolhimento

Várias crianças e jovens em Portugal encontram-se em casas de acolhimento até aos 18 anos. Agora, têm a alternativa de prolongar a sua estadia até aos 25 anos se prosseguirem os estudos. Miguel Silva, de 23 anos, conta ao #Infomedia esta realidade que vivencia.

A reportagem dá a conhecer este jovem que, abrangido pela Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, não pode dar rosto à história.

A Rua Pinheiro de Campanhã está condicionada pelas obras. Dificultam o acesso ao Centro Juvenil desta zona da cidade do Porto, apesar de ser normalmente elogiado pela sua boa localização: perto das estações de comboios e de autocarros. O caminho é feito a pé pelo meio do pó originado pelas recentes reformas nas estradas.

Perto do edifício principal passam vários rapazes, alguns sozinhos, outros em grupo. Este espírito jovem não se enquadra com o desgaste e envelhecimento do prédio que os acolhe.

À entrada aparece Sandra Pires, técnica superior de Educação Social, que mostra o caminho em pedra até um anexo relativamente mais moderno e luminoso, nas costas do Centro Juvenil de Campanhã. Uma sala já está preparada para receber pessoas que visitam o espaço. As mesas de madeira clara contrastam com a estante escura, mas condizem com os quadros de cortiça que dispõem alguns desenhos de crianças.

Intimidado pelo tripé e pela câmara logo ao entrar, Miguel Silva senta-se numa das quatro mesas da sala de visitas. O rapaz de 23 anos reside no Centro Juvenil de Campanhã desde criança e neste momento continua ao abrigo desta instituição, pois está a estudar no Ensino Superior. É aluno de Mestrado em Justiça Juvenil na Universidade Lusófona do Porto, estando a um ano de concluir o seu percurso académico.

Na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99), está previsto, desde 2017, que jovens maiores de 18 anos possam permanecer em casas de acolhimento até aos 25 anos, exclusivamente se continuarem a estudar (Lei n.º 23/2017).

Miguel conta abertamente como a casa o apoiou numa escolha que há quatro anos não era sequer possível – a ida para a universidade enquanto jovem institucionalizado: “nós tínhamos cá um psicólogo que me fez a orientação vocacional e claro que contei com a ajuda da instituição porque eu não tinha conhecimento e não sabia qual era o processo”.

Além disso, beneficia da bolsa de mérito da Direção Geral do Ensino Superior (DGES), reforçando a necessidade de, igual aos outros jovens, preencher os requisitos (concluir os 36 créditos, não desistir ou trocar de curso). A técnica superior de Educação Social do Centro Juvenil de Campanhã, Sandra Pires, confirma que os jovens nesta situação específica “têm o valor máximo da bolsa de estudos”.

Um técnico superior de Educação Social é gestor de casos das crianças e jovens que residem na casa de acolhimento. As principais funções são: contacto com famílias, com escolas, com a Segurança Social e com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens; elaboração de relatórios sociais; organização do processo de cada criança/jovem.

Segundo o Relatório CASA 2019 do Instituto da Segurança Social, o número de jovens com mais de 21 anos em situação de acolhimento cresceu devido à recente alteração legislativa.

Gráfico retirado do Relatório CASA 2019 – Instituto da Segurança Social. Apenas 4% dos jovens em acolhimento frequentam respostas educativas pós-ensino secundário.
O conforto do acolhimento

Pela porta entreaberta da sala de visitas percebe-se a passagem de adolescentes que falam alto entre si. As máscaras não abafam o som. Sandra Pires desinfeta as mãos e mantendo a distância de segurança explica: “de seis em seis meses é enviado um relatório social e uma parte é um parecer do jovem, onde ele escreve ao tribunal a sua perspetiva [da situação de acolhimento]”.

“Eu gosto de cá estar”, confessa Miguel Silva. Desde os cinco anos que este centro é a sua casa e por isso com um olhar sério diz: “sempre estive bem resolvido com a situação”. Passar tempo com os miúdos mais novos faz parte da sua rotina. Tenta fazer algumas atividades que os entretenham, como jogar bilhar ou ping-pong.

Nós fazemos parte da casa, somos uma espécie de filhos. – Miguel Silva

Mas os seus interesses vão além disto. É também voluntário no VOU – Associação de Voluntariado da Universidade do Porto e no CATL – Associação de Solidariedade da Zona das Fontainhas.

A supervisora de casas de acolhimento, Sónia Rodrigues, comenta: “as atividades do jovem de uma casa deviam ser sempre definidas pelo próprio porque ele é que sabe quais são os seus interesses”.

O supervisor de casas de acolhimento (escolhido pela própria casa) ajuda a qualificar o espaço para as crianças e jovens que lá residem. Cabe a este zelar pelos Direitos da Criança e pela Lei que a protege.
O acolhimento em fase pandémica

No panorama atual da pandemia, a supervisora pensa que “voltamos atrás no tempo porque cada vez mais estes ambientes [de acolhimento] deixaram de ser casa e passaram a ser mais artificiais”. As crianças são distanciadas umas das outras e os seus cuidadores, que as acompanham habitualmente, estão o dia inteiro de máscara: “o principal fator de qualidade de uma casa de acolhimento é o clima afetivo. A relação é uma componente essencial da satisfação [das crianças e jovens] com o acolhimento”, esclarece Sónia Rodrigues.

Se eu quero de alguma maneira dar um contributo para que haja uma adequação dos serviços e recursos da casa às necessidades das crianças, eu tenho de conhecer as crianças para conhecer as necessidades delas. – Sónia Rodrigues

Sónia Rodrigues, supervisora de casas de acolhimento: Fotografia cedida pela entrevistada

Em abril de 2020 foi a única altura que os residentes do Centro Juvenil de Campanhã fizeram testes de despiste à Covid-19. A técnica de educação social revela que, até ao momento, não houve casos positivos e só são realizadas testagens quando alguma criança ou jovem fica em isolamento profilático.

A pandemia para Miguel pouco influenciou. Apenas reduziu os encontros com a família. “Mantenho contactos regulares com a minha mãe e os meus irmãos”, esclarece.

Do acolhimento à autonomização
Em 2019, Portugal acolhia, em âmbito residencial, 6521 crianças e jovens.
O Centro Juvenil de Campanhã atualmente abriga 37, sendo relembrado que os números oscilam todos os meses devido às constantes entradas e saídas de crianças.

Os campos de jogos e o parque infantil estão vazios. Muitas das crianças da casa estarão a regressar das aulas. A sala de visitas, devidamente arejada, tem vista para a vida citadina de um final de tarde: a autoestrada congestionada pelo tráfego habitual e o sol sobre o Rio Douro.

Miguel em breve vai jantar, para ele próprio ir às aulas, pois está em regime pós-laboral. Encontra-se perto de sair deste sítio, que foi a sua casa por quase duas décadas: “o meu processo é de reunificação familiar”, clarifica, “quando terminar o meu tempo aqui na casa, regresso à casa da minha mãe”. Acrescenta que vai sentir falta de pessoas da sua idade para conversar.

No entanto, explica que outros colegas seus estão num processo de autonomização, onde têm de “desenvolver certas competências pessoais e sociais para a vida lá fora, como ir ao médico e tratar de documentos sozinho”. Ao contrário de Miguel, estes adolescentes ainda não têm certezas sobre a vida pós-acolhimento.

“Com algum tempo de antecedência, tentamos a integração [do jovem] no mercado de trabalho, se assim for possível”, diz Sandra Pires. A ajuda na procura de uma habitação ou de um quarto é igualmente prioridade: “partilham casa com outros colegas ou é mesmo um quarto porque os alugueres são muito caros.”

A altura da saída da casa de acolhimento é o ponto de viragem na vida destes jovens e também de Miguel. Sendo técnica social deles por tanto tempo, Sandra confessa: “tento manter um contacto mais presente nos primeiros meses. Se tiverem dúvidas, eles sabem que podem vir aqui”.

Miguel não vai pensando muito a longo prazo, mas certamente preocupa-se com o seu futuro. Para já, vai dar início a um estágio e espera estar inserido no mercado de trabalho quando sair da casa de acolhimento: “estou perto de terminar o Mestrado e vou tentar exercer nessa área [Direito Juvenil]”.