Armazém: um espaço que reúne autênticas relíquias vintage
- Ruben Marques
- 29/06/2022
- Agenda e Lazer Arte e Culturas Portugal
O local que outrora armazenava as pipas de vinho da Real Companhia Velha, hoje em dia expõe peças de arte com um passado histórico. Neste espaço alternativo, que é já uma das atrações da cidade do Porto, tudo o que tem valor ganha uma segunda vida.
[Reportagem de Ruben Marques]
Passam poucos minutos das duas da tarde, do dia 20 de abril, e no Armazém Shops Vintage Bar, localizado no número 93 da Rua de Miragaia, no Porto, é um constante entra e sai de pessoas, sendo uma grande parte turistas. Assim que entram, toda a envolvência e “singularidade” do espaço fazem com que o olhar de cada um percorra as peças em exposição, desde as maiores até às mais pequenas, das mais vistosas às mais discretas. A história de um dos objetos que mais se destaca neste espaço é desconhecida pela maior parte das pessoas que o aprecia. O shaker utilizado para fazer cocktail’s – mistura de bebidas – passou por três fases até chegar à forma atual.
O primeiro shaker, o original, tem bico e asa. Só que com a guerra foi preciso material para fazer armas. E onde é que foram “roubar” o material? Às peças de luxo. E este objeto era uma dessas peças. Portanto, cortaram a asa e ficou só com o bico. Mas foi preciso ainda cortar mais material para fazer as armas, o que fez com que também tirassem ao bico. Dizem que, geralmente, a seguir às guerras há uma loucura da população, de querer festas, sendo que, nesta altura, não foi exceção. Face a isto, nos anos 40/50 do século XX, quando a Segunda Guerra Mundial acaba, são os franceses que criam o shaker normal, que é o conhecido nos dias de hoje”, explica Batata Cerqueira Gomes, proprietário do Armazém.
A vontade de colecionar estas obras de arte, em particular, começou por ter a ver com a atividade do portuense, sendo que o primeiro shaker da coleção veio de uma feira, de Inglaterra, e foi-lhe oferecido pela mãe. Atualmente, tem-nos tanto em casa, como no Armazém, e refere que a limpeza das peças é feita, somente, por ele. Diz, ainda, que sempre que viaja traz mais uma para fazer face às vendas do objeto, ainda que tal aconteça de uma forma bastante esporádica.
“Como sou colecionador de shakers, em minha casa, tenho um com asa e bico e as pessoas muito curiosas perguntam-me para quê que é aquilo. Tanto que, antes de abrir este espaço, eu era dono de uma discoteca aqui no Porto, a Twins, e cheguei a ter 380 shakers.” E foi, precisamente, através deste espaço de animação noturna, nas décadas de 80 e 90 do século XX, que Batata Cerqueira Gomes – que sonhava ser médico – se tornou numa das figuras portuenses mais emblemáticas.
Já em 2015, depois de ter tido três lojas de dimensões mais pequenas, inspirado num conceito descoberto através de viagens feitas ao estrangeiro, desenvolveu esta ideia pioneira em Portugal. “Nós gostamos muito de viajar à procura deste tipo de peças. Vamos a muitas feiras, a muitos leilões e este conceito — que é um bocado tudo que está aqui está à venda, desde o banco onde se senta para almoçar ou para lanchar, até ao bule onde vem o chá, tudo está à venda. Como sempre estivemos ligados a este ramo, quando apareceu o espaço foi, olhe: nem é tarde nem é cedo! É mesmo isto! Tiro e queda! Pronto e abrimos o Armazém que veio para ficar e para durar.”
Desde velharias a artigos mais modernos, passando pelas antiguidades e pelas coisas vintage, o espaço reúne o melhor de vários mundos artísticos. Como o portuense não se cansa de enfatizar, cá é possível encontrar um “bocadinho de tudo, porque o engraçado é esta junção que é as coisas vintage, as velharias, as antiguidades com peças novas. E no fundo é isso que nós encontramos aqui.”
Logo que é passado o portão do recinto, é avistada uma esplanada, que se divide entre o lado esquerdo e o lado direito, onde a mistura de idiomas, por entre o verde das árvores que permitem sombra a quem ali se senta, faz com que a lotação desta área esteja quase completa. Os funcionários responsáveis pelo bar ao ar livre fazem quilómetros por dia, num entra e sai constante entre o interior e o exterior do Armazém, ao ritmo da música ambiente.
À medida que são percorridas as longas passadeiras coloridas sob o chão, encontra-se inúmeras peças de mobiliário expostas, objetos para decorar habitações – tais como candeeiros – louças com as mais variadíssimas funções, em que, numa das lojas destes artigos se encontra Isabel Sousa, funcionária desde setembro de 2021, e que considera este “conceito interessante. É um espaço bonito e não deixa de ser interessante pelo facto de ter várias lojas, o bar, em si, ser um espaço diferente de tantos outros que a gente vê por aí.” Recomenda este espaço a quem nunca o visitou, “justamente, por ser um espaço diferente. Acho que por isto já vale a pena vir cá.”
O proprietário que costuma dizer que a “estrelinha da sorte” é fulcral para o sucesso de um negócio, admite que o “fator sorte” contribuiu para o sucesso deste local. Expõe que ao fim de seis meses após a abertura, dois jornalistas do The New York Times visitaram o espaço e fizeram uma reportagem de meia página sobre o Armazém. Ao fim de 15 dias, quando publicaram o artigo, “foi mesmo um tsunami autêntico. Eu quando digo que foi um tsunami é porque tive de contratar uma pessoa que falava seis línguas e escrevia muito bem, só para estar aqui a dar entrevistas para os quatro cantos do mundo, desde para jornais australianos a tudo o que é ligado à arquitetura na Europa. Inclusive tivemos a sorte e o privilégio de ter aqui a BBC, um canal de televisão muito importante. Portanto, isto tudo ajudou porque as pessoas gostavam muito deste conceito e do edifício.”
Mais para o interior deste local, é possível encontrar uma secção de estantes repletas de livros diversificados, coleções de personagens do mundo infantil que, inevitavelmente, despertam a atenção dos mais novos que visitam o local acompanhados pelos familiares. Relíquias ímpares nunca faltaram à “chamada”. “Já tive aqui uma lancha, uma Chris Craft, do ano de 1954, que era de uma família do Estoril. O rei de Espanha, naquela época, viveu bastante tempo no Estoril, conheceu muitas famílias portuguesas daquela zona e andou no barco. O facto de haver registos fotográficos do rei neste barco fez com que eu o vendesse a um senhor muito rico da Corunha. Ele gostou muito da lancha, quando viu a história, toda a documentação e as fotografias, comprou-a num instante.”
Geralmente, peças com história são muito valorizadas e vendem-se com bastante facilidade”, remata o fundador. Também é exemplo disto, atualmente, um piano, uma mesa de bilhar, uma mota e um automóvel de coleção, um MG de 1933, que participou quatro vezes nas “24 horas de Le Mans”, tendo saído vencedor de uma delas. Embora já tenha tido uma proposta de um cidadão americano para comprar o veículo por 350 mil euros, a história desta “máquina” faz com que pertença ao ínfimo círculo de peças que não estão à venda. “Tenho aqui peças que não têm preço”, enfatiza.
Noutra das lojas encontra-se Celeste Pereira, funcionária há quatro anos. “Isto é muito simples, é fazer uma viagem ao passado. E eu recomendo a visita a este espaço por isso. Tanto a jovens, que ficam a conhecer a realidade do antigamente, como a mais velhos que revivem coisas que já viram antigamente e em bom estado, que é o que nós temos aqui. Portanto, vir aqui é quase como vir a um museu.”
O portuense classifica toda a dinâmica que envolve o Armazém como um “vício”. “Eu costumo dizer que isto é um bom vício porque muitas vezes até com a minha mulher nós dizemos assim: bom, agora não se compra mais nada temos aqui muita coisa, vamos, mas é, vender. E eu: boa, ok. Agora não se compra mais nada. Toca o telefone e é uma senhora a dizer: olhe, morreu a minha avó, nós temos que vender a casa e temos aqui o recheio da casa para vender. Caramba, metemo-nos logo no carro, vamos ver o recheio e já estamos a gastar dinheiro. Porque isto, realmente, é viciante.”
Cerqueira Gomes confessa que não é fácil vender tudo o que compra em feiras e/ou leilões, pois há peças que o marcam pelo significado que lhes atribui. Quando alguém as quer adquirir “é um aperto e uma dor brutais.” Continua, explicando como é trabalhar neste ramo em específico. “Isto tem muito que se lhe diga. Há pessoas que dizem assim: que rica vida! Mas não. Nós vamos para feiras, onde está a nevar, às quatro da manhã, noite serrada, de lanterna, em que uma pessoa não sente as mãos e compramos peças completamente desfeitas, que depois trazemos para Portugal, restauramos e depois ao vender dói muito. Mas pronto, é o nosso negócio.”
Ainda que grande parte dos visitantes sejam de outros países, há sempre um português por cá. Neste caso é uma portuguesa, Francisca Batalha, de Vila Nova de Gaia, que já tinha vindo até este espaço e decidiu voltar por considerar que seria o melhor para a ajudar num trabalho universitário. “Achei que o espaço era o ideal, tem muitas peças diferentes e seria perfeito para o meu trabalho”, justifica. Para além da diversidade dos artigos, “a playlist que se escuta oferece alguma nostalgia e é interessante por causa disso.” Conclui, recomendando a vinda a este ponto de visita, avistado em frente à Alfândega do Porto, “porque tem peças muito únicas para decoração e, além disso, tem um local onde podemos, simplesmente, sentarmo-nos e comer. Então, é bom ter a parte de passear e ver o espaço e ter a parte de sentar e poder aproveitar a companhia.”
O proprietário confidencia que, às vezes, fica “um bocado aflito, porque há muita gente que diz assim: olhe, agora diga-me outra coisa do género para nós irmos visitar. Sejam turistas nacionais ou internacionais, eu digo: olhe, não há. E tenho medo que as pessoas pensem: olha este malandro, egoísta, não quer dar a conhecer outros sítios. Mas, realmente, não há. Isto é um conceito inovador e eu não conheço nenhum igual no país, com toda a humildade, muito menos aqui na cidade do Porto.”
Antes de ser o Armazém, o espaço já era um armazém
Segundo Batata Cerqueira Gomes, foi há mais de um século que a Real Companhia Velha se instalou neste espaço, propriedade, agora, do próprio. Contudo, antes de se tornar proprietário destes 1500 metros quadrados de área, o armazém pertenceu à drogaria Moura, acabando por, de seguida, ficar muito tempo abandonado. “A drogaria Moura, quando veio para cá, desfez-se de tudo o que era da Real Companhia Velha. Portanto, só mesmo o edifício é que fala.” Ilustra as afirmações com o exemplo de as traves de madeira, algumas com 15 a 18 metros, que suportam o edifício, serem “muito antigas e boas”. “Só para ter uma prova, onde eu tenho o fogão de sala, eu tive um problema, um pequeno incêndio. Ainda arderam uns barrotes de madeira e quando veio cá o carpinteiro para arranjar o telhado e recuperar tudo ele disse: ó senhor Cerqueira Gomes, eu podia enganá-lo e tirar estes barrotes que estão aqui queimados e pôr uns novos. Mas olhe, estes barrotes que estão aqui, mesmo queimados, valem muito mais do que eu lhe trazer uns novos. Portanto, isto foi a única coisa que ficou.” Finaliza, revelando que quando o edifício era da Real Companhia Velha, a estrada na parte de cima onde passam, atualmente, veículos e pessoas não existia, tal como a Alfândega. “Ou seja, descia-se a rampa, entrava-se pelo areal dentro e vinham os barcos rabelos com as pipas para serem descarregadas aqui.”
Importa salientar que a Real Companhia Velha é a mais antiga empresa de vinhos de Portugal, tendo celebrado 265 anos de existência e de atividade ininterrupta ao serviço do Vinho do Porto.
Ainda a respeito do edifício, muitas vezes, alguns professores da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto vêm até cá para dar palestras a alunos, visto que “a arquitetura, realmente, é magnífica.”
À exceção do dia 25 de dezembro, o Armazém está de portas abertas, todos os dias, das 11 e meia da manhã, até às oito da noite, pronto a receber todos, até porque, os animais têm luz verde para entrar, tal como os humanos. Para além de tudo o que é possível fazer por aqui, também há a possibilidade de realizar eventos de empresas e particulares neste espaço.
Chamo-me Ruben Marques, tenho 20 anos e sou de Gondomar. Decidi seguir o curso de Ciências da Comunicação, uma vez que, foi a área que sempre me fascinou e é o que me vejo a fazer no futuro.