As marcas profundas numa democracia fragilizada e “a memória do que foi o fascismo”
No ano em que se comemora os 50 anos de liberdade, vivemos rodeados de vestígios que nos remetem para uma época autocrática na história do país. Desde o Porto até Lisboa, percorremos as duas cidades para redescobrir os lugares que reforçam as memórias que por muitos nunca serão esquecidas.
[Textos e Fotos: Ana Vasconcelos e Diana Cunha]
De norte a sul, existem diversas marcas do fascismo e que, nos dias de hoje, ainda moldam pensamentos e comportamentos na sociedade. Ouvimos quatro histórias, todas elas distintas, mas com um objetivo em comum: o combate à perda da liberdade.
António Miguel Santos, historiador, mediador cultural e investigador científico, foi uma ponte para as descobertas de diversos locais não identificados como parte do antigo regime. Quando questionado sobre a possível existência de elementos fascistas atualmente em Portugal, António Miguel Santos responde que estamos rodeados deles. “Apesar de estarmos em 2024, o fascismo está a aumentar cada vez mais. Por isso, quer seja através de debates ou de manifestações, deve-se abrir as consciências e os horizontes de pensamento para que percebam que o período do fascismo ficou noutra época”.
Através de uma lista de vestígios, fornecida por António Miguel Santos, inicia-se percurso pela Casa dos 24, localizada em frente à Sé do Porto. Na fachada deste edifício, onde anteriormente existiu a Câmara Municipal do Porto, encontra-se ainda o seu antigo símbolo. Este é constituído por um dragão que desapareceu das insígnias da cidade, mas que ainda perdura em alguns locais, como no símbolo do Futebol Clube do Porto. Este desaparecimento deve-se ao Estado Novo (1933-1974).
A próxima paragem levou-nos até aos Clérigos, onde está exibida a estátua de Dom António Ferreira Gomes. Segundo António Miguel Santos esta estátua é um “símbolo contra o fascismo que as pessoas passam quotidianamente e que nem sempre se recordam da sua importância”.
O antigo bispo do Porto foi exilado por escrever uma carta a Salazar onde anunciou as situações de carência económica que existiam em Portugal, caracterizando-se como um símbolo antifascista.
Após uma caminhada encontramos outra marca da resistência ao fascismo na cidade do Porto, neste caso a pintura “Síntese da História”, da autoria de Abel Salazar. Está localizada na atual loja comercial, em frente à praça D. João I. Esta obra representa os ofícios da época com referências sociais que antecipam o movimento neorrealista na pintura portuguesa. O autor da obra sempre foi reconhecido como um resistente ao regime salazarista.
Também o cinema da Batalha, na praça com o mesmo nome, e em frente ao Teatro Nacional São João, revela uma obra de arte de simbolismo ideológico importante: o painel da autoria de Júlio Pomar, que representa um manifesto antifascista. Esta obra foi escondida a mando da PIDE durante 75 anos, mas atualmente após a restauração do cinema da Batalha já pode ser apreciada por todos.
Na próxima etapa do percurso, viajamos até Lisboa para visitar o conhecido “Padrão dos Descobrimentos”, um dos maiores elementos arquitetónicos promovido pelo governo de Salazar por “Ocasião da Exposição ao Mundo Português”. Este monumento simboliza uma caravela, conduzida pela figura do Infante D. Henrique, seguido por 32 personalidades históricas que contribuíram para a época dos Descobrimentos, como é o caso de D. Afonso V, Vasco da Gama, Fernão Magalhães e Pedro Álvares Cabral.
No decorrer da viagem pela capital, destacamos o Museu do Aljube, localizado perto da Sé de Lisboa. É um museu instalado na antiga Cadeia do Aljube, inaugurado nas celebrações do 41º aniversário da Revolução, em 2015. É dedicado à história e à memória do combate do período fascista e ao reconhecimento da resistência em prol da liberdade e da democracia. Neste museu conseguimos ter uma experiência próxima daquilo que foi de facto o 25 de abril. Ao percorrer o museu é possível escutar sons ambientes como músicas que remetem para a revolução.
A repressão policial como herança sistémica do fascismo?
Ricardo Esteves Ribeiro é jornalista do Fumaça e no dia 10 de abril está sentado na mesa da sede da redação, na Rua de Arroios em Lisboa. Desde de 2018 que este jornalista está a realizar uma investigação sobre policiamento em bairros guetizados. No decorrer da investigação, para além de entrevistar vários polícias, participou em várias manifestações, onde começou a identificar elementos que se interligavam com a investigação. Durante essas manifestações, episódios como brutalidade policial e a presença de agentes de autoridade sem identificação, revelaram-se importantes para o seu trabalho.
O jornalista começou por “tentar perceber como é que polícias dialogavam ou não com movimentos sociais”. Em dezembro do ano passado, foi agredido na via pública, por um agente de autoridade, enquanto fazia reportagem sobre uma manifestação. Ricardo Esteves Ribeiro afirma que estas situações são atualmente “um dos sinais” do fascismo.
Para além de partilhar a sua história, Ricardo Esteves Ribeiro fala sobre o papel da comunicação social e como esta pode perpetuar o fascismo. Atualmente está a ocorrer uma “transformação de órgãos de comunicação social em máquinas produtoras de conteúdos”, afirma.
Para Ricardo Esteves Ribeiro “o papel do jornalismo deve ser vir com tempo, profundidade e detalhe, criticar decisões políticas, criticar sistemas de opressão”, assim como devem “perceber quais são as injustiças e desigualdades no mundo, expô-las e tentar perceber como é que elas foram criadas e como é que se sai dessas situações”.
É possível ocorrer uma mudança no jornalismo, no entanto, só através da criação de alternativas. O jornalista acredita ser possível criar órgãos de comunicação social que quebrem o paradigma instaurado pelos atuais meios de comunicação.
Poucas horas antes da viagem de regresso ao Porto, visitamos dois dos lugares relacionados com a revolução de abril. Em vários locais da cidade foram inaugurados, em 2023, pontos de referência que identificam os acontecimentos da revolução, permitindo a todos conhecer a história daqueles lugares. A Ribeira das Naus (imagem 1) e o Banco de Portugal (imagem 2). O reconhecimento de lugares históricos é importante para manter as memórias vivas.
No Porto, está Renato Soeiro. Após presenciar o 25 de abril de 1974 e, atualmente com 70 anos tornou-se um dos principais defensores do Museu da Resistência. Situado na Rua do Heroísmo, o atual Museu Militar, outrora sede da PIDE, é uma instituição que pertence ao exército português, vocacionada para a preservação da história popular. No entanto, foi criada uma Comissão Promotora do Museu de Resistência e Liberdade no Porto para relançar a transformação da antiga sede num espaço de memória e luta contra o fascismo. Segundo Renato Soeiro, o Museu da Resistência deve acontecer para recordar e homenagear as mulheres e homens que foram presos, torturados e, em alguns casos, mortos. “Tem mais impacto ver as coisas no sítio em que de facto aconteceram. O Museu Militar tem de sair do local onde está e ser construído um Museu da Resistência”, afirma.
Esta petição foi criada pelos membros da URAP na aproximação ao 50º aniversário do 25 de abril. Tem o objetivo de apelar a que, entidades competentes, Governo e Chefias Militares, tomem as medidas necessárias para que seja possível a criação do Museu de Resistência Antifascista no edifício do atual Museu Militar.
Teresa Lopes, representante da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), criada em 1976, fala sobre o papel da URAP no combate ao fascismo. “A URAP tem desenvolvido um papel importante sobretudo dirigido à memória do que foi o fascismo. Quem não tem memória também não tem futuro e não pensa naquilo que aconteceu, para que as coisas não se voltem a repetir”, afirma. Esta Organização Unitária, que é constituída por pessoas de todas as condições e ideologias também se baseia nos princípios e valores da Constituição Portuguesa e das declarações do direitos humanos. Para além de atividades de âmbito nacional, a URAP mantém contacto com organizações antisfascitas de outros países que defendem a mesma causa.
Ela refere quais são os principais indicadores de elementos fascistas atualmente na sociedade. Os discursos de ódio e as manifestações de censura aos imigrantes, a falta de liberdade de expressão e a desigualdade social são os maiores fatores que a sociedade ainda enfrenta, destaca Teresa Lopes.
“Haver no Portugal burocrático uma tão grande desigualdade entre ricos e pobres, haver uma mancha tão grande de pobreza é um elemento que faz parte do fascismo”, garante Teresa Lopes. Para combater os elementos fascistas na sociedade, a representante da URAP afirma que a juventude tem um papel fundamental, uma vez que, lutam por um futuro melhor.
Concluindo, a persistência de elementos fascistas no contexto atual em Portugal é evidente. Embora o país tenha superado o regime autoritário do Estado Novo, as ideologias extremistas e as práticas autoritárias em discursos políticos, movimentos sociais e na esfera pública demonstram que as ameaças à democracia estão longe de ser apenas um fenómeno histórico.
Os meios de comunicação social têm a responsabilidade de promover um jornalismo ético e imparcial, que denuncie práticas autoritárias e combata a desinformação. Atualmente, os meios de comunicação que procuram manter as audiências, acabam por perpetuar a “promoção do fascismo”.
Para evitar que os erros do passado se repitam, é fundamental promover uma educação cívica, fomentar o debate crítico e reforçar a importância da memória. Só assim, Portugal poderá garantir um futuro democrático, inclusivo e resistente a qualquer forma de autoritarismo.