As memórias portuenses da revolução de abril

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As memórias portuenses da revolução de abril

A Revolução dos Cravos teve o seu ponto alto na capital do país, no entanto, a cidade invicta já demonstrava ser um baluarte contra o fascismo que durou 48 anos.

[Texto de Adriana Ferreira e Mateus Carvalho]

A receção ao general Humberto Delgado, no Porto, no dia 14 de maio de 1958 foi um dos marcos da resistência ao fascismo, em Portugal. Segundo o historiador António Miguel Santos, nesse dia, a praça Carlos Alberto chegou a ter mais de 200 mil pessoas a apoiar a candidatura do general contra o regime salazarista. O “General Sem Medo”, apelido que lhe foi atribuído pela sua coragem e a sua abertura para criticar o regime, apresentou-se, sem qualquer filiação política, batendo-se de frente com o partido União Nacional, fundado por Salazar.

Ainda assim, nas eleições a 8 de junho desse ano, o presidente eleito foi Américo Tomás. De acordo com António Miguel Santos, esta foi uma das formas do regime “gozar” com a população, não só falsificando as eleições nacionais, mas também ao apenas “dar” 236 mil votos, número bastante similar aos seus apoiantes apenas na cidade do Porto.


Bispo Dom António Ferreira Gomes

O antigo bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes, foi também uma figura com discurso aberto contra o regime. No mesmo ano das eleições presidenciais, redigiu uma carta a António de Oliveira Salazar onde expressou as “condições de grande privação de bens materiais, económicos e sociais” da região do Porto e arredores. Ao receber esta carta, à data, o presidente do conselho de ministros, ordenou o exílio do bispo. Este tempo em que esteve ausente de Portugal, de forma forçada, acabou por durar dez anos, primeiro em Roma e, depois, na diocese de Valência, em Espanha, onde assumiu funções pastorais.

A faculdade, um espaço ingovernável para o regime salazarista

O antigo estudante universitário de engenharia civil, Renato Soeiro, relembra a faculdade de ciências como um espaço ingovernável para o regime.  No seu segundo ano de engenharia civil, conseguiu vencer as eleições para a associação de estudantes e, pela primeira vez, uma direção associativa estudantil da esquerda revolucionária chegou ao poder no Porto.

A universidade era um sítio onde havia imensa agitação e denúncia do regime, tínhamos um verdadeiro movimento de massas!

Renato Soeiro, Engenheiro Civil


A partir daí, as reuniões da associação e as medidas ficaram cada vez mais complicadas, a polícia chegava a fechar as salas onde se faziam reuniões e também a impedir a contagem de votos.


Já perto do 25 de abril de 1974, Renato arrecadou seis processos e um sétimo atribuído pela universidade, que acabou por expulsá-lo e, também, proibi-lo de frequentar qualquer instituição de ensino superior, fosse ela em qualquer território nacional (incluindo as então denominadas colónias portuguesas: sobretudo Angola, Moçambique e Guiné-Bissau).

No vídeo seguinte, o próprio explica com mais detalhe todos os procedimentos da faculdade face às ações “rebeldes” da sua associação de estudantes bem como o julgamento ao qual foi submetido, pela realização de um plenário na praça do leões. “A reitoria mandou fechar os portões todos connosco lá dentro e mandou chamar a polícia”, conta.

O resistente, bem como outros 90, recusaram a pagar a multa imposta pela polícia, levando o caso para julgamento, “não cabíamos no tribunal que era suposto e passaram para São João Novo”, referiu Soeiro, “foi absolutamente épico!”. Contou com mais de 90 réus, cerca de 60 advogados mais as famílias, relembrou. Após o julgamente, Renato acabou condenado, no entanto, no decorrer da pena, deu-se o 25 de Abril anulando todos os processos até à data.

Renato Soeiro fala dos processos que lhe foram aplicados e a respetiva expulsão da universidade

Café Piolho, um lugar de resistência ao fascismo

O Café Piolho era um dos centros de reuniões destes grupos clandestinos e, acima de tudo, de movimentos estudantis. Devido a essas intensas movimentações, o café também ficou a ser conhecido para a PIDE, que tornava os encontros muito difíceis no local.

Café Rialto

O Café Rialto não viu chegar o fim do fascismo, esteve ativo entre 1944 e 1972 para dar lugar a uma agência bancária. Segundo António Miguel Santos, o café também serviu para dar lugar a encontros entre membros anti-fascistas. Atualmente, esse espaço alberga uma loja de fast-fashion com um moral que esteve presente nas antigas instalações do café.

Café Progresso

O Café Progresso “o mais antigo do Porto” é também um histórico da cidade. Fundado em 1899, era um espaço de confraternização de várias personalidades portuenses, principalmente artistas. No entanto, as informações relativamentes ao seu papel durante o Estado Novo são poucas. Hoje apresenta-se refundado muito mais como restaurante do que a sua função inicial, ainda assim, mantém a sua fachada parecida com a original.

Casa mais estreita da cidade do Porto

De acordo António Miguel Santos, a casa mais estreita do Porto conta com 3 pisos e vários cómodos, era no primeiro da casa mais estreita da cidade, situada entre a igreja do Carmo e a igreja dos Carmelitas, que se realizavam reuniões com as personalidades mais ilustres do Porto para discutir ideias contra o Estado Novo. Este pequeno edifício tem mais de 250 anos e mesmo antes do Estado Novo já contava com um historial de secretismo. Foi palco de vários reuniões durante percursos históricos marcantes, durante as Invasões Francesas, no Liberalismo e logo após a proclamação da República.

O historiador António Miguel Santos revela um dos locais de resistência ao fascismo no Porto

Para não se esquecerem jamais que as ruas que trilham todos os dias, cada rua, cada praça, cada lugar, tem uma história, agora podemos estar rodeados de cafés e restaurantes, mas antigamente isto eram sítios com outro tipo de vida e com pessoas que eram contra o regime

António Miguel Santos, Historiador

Campanhas eleitorais no Estado Novo?

De acordo com José Manuel Lopes Cordeiro, historiador natural do Porto, uma das particularidades presentes no regime era a falta de liberdade de expressão e a opressão exercida aos movimentos de resistência. Ainda assim, Comissão Democrática Eleitoral (CDE) teria um espaço na rua Júlio Dinis onde se efetuavam reuniões e troca de propaganda, no ano de 1973. Estas práticas eram, aparentemente, reconhecidas pelo regime e as suas funções toleradas. Mas, se abordassem temas como a então denominada guerra colonial, considerados sensíveis pelo estado, as sessões eram interrompidas pela polícia.

O historiador José Manuel Lopes Cordeiro conta que, embora a CDE tenha realmente levado avante as suas campanhas, acabavam por desistir dias antes dos atos eleitorais, ao contrário de outros partidos maoistas que se oponham à ideia de participar em eleições e por outro lado denunciar as suas fraudes com a população.

José Manuel Lopes Cordeiro de 70 anos, revela onde era a antiga sede da CDE durante a ditadura no Porto

O dia 25 de Abril de 1974 no Porto

De acordo com o jornal O Comércio do Porto, após o almoço verificavam-se pequenas aglomerações populares na baixa da cidade. A partir das 15:00, juntavam-se estudantes e trabalhadores, preenchendo a Praça da Liberdade e a Avenida dos Aliados. Às 16:30 um placard anunciava que o Presidente da República, o chefe e membros do Governo estavam cercados no quartel da GNR do Carmo. Daí, inicia-se um desfile ao som de slogans como “o povo unido já mais será vencido”. Pelas 17:00, a PSP surge, armada, na Praça da Liberdade. Slguns elementos da PSP são apedrejados, um deles ficando gravemente ferido. Às 18:00 verifica-se atropelamentos e manifestantes feridos. Ao contrário da confusão vivida na Praça da Liberdade, na Praça de Dona Filipa de Lencastre e na Praça dos Leões a situação estava mais calma, sem contar com a presença de forças militares.

Por volta das 19:30, chegam à Praça dos Clérigos elementos da tropa, que são recebidos com ovações ao descerem em caminho da Avenida dos Aliados. Já às 22:10, a Baixa é preenchida por euforia, ouvem-se buzinas e saudações.

Página 7 da edição da manhã de 26 de abril de 1974 do jornal O Comércio do Porto, fotografada por Adriana Ferreira

O 25 de abril para Fernanda Castro

Fernanda Castro, 72 anos, conta que, apesar de residir em Gaia, trabalhava numa fábrica de fios e cabos elétricos muito próximo à ponte da Arrábida, na autoestrada A1. A empresa contava com uma delegação em Lisboa. “O meu marido passou às 7:30 e ainda não havia nada”, conta. A manhã no Porto permaneceu calma em contraste com a capital. Pelas 09:00, já no seu posto de trabalho nos serviços comerciais, o primeiro contacto com a revolução foi graças as chamadas vindas das colegas em Lisboa.

“Estava um dia de muito calor, lembro-me que até já vestia uma camisola caveada”, conta Fernanda já na sua pausa para almoço. Em Lisboa o clima era de festa e já ninguém trabalhava. As suas colegas continuavam a atualizar a informação por via telefónica e de boca em boca o 25 de Abril foi passado para a população portuense, “eu lembro-me que fui à mercearia e contei a todos ‘ai não pode ser! Estão mesmo soldados na rua?´ Estão!”, recorda o espanto de todos no espaço.

“O extâse do 25 de abril foi no 1º de Maio!”, refere Fernanda. Embora o dia tenha sido mais calmo, lembra que essa semana contou com muita agitação sendo a erupção no dia do trabalhador. Esse dia contou com 300 mil pessoas nas ruas portuenses, “mesmo sendo convocado por partidos como o PCP, rápidamente foram engolidos pela multidão”, referiu o historiador José Manuel Lopes Cordeiro.

Fernanda Castro relata como tomou conhecimento sobre a manifestação

Os dias seguintes ao 25 de Abril

O pai de Fernanda Castro, desde muito jovem que esteve ligado à política. Quando tinha apenas 17 anos, foi preso por vender a edição do jornal Avante!, na rua do Heroísmo, perto da antiga sede da PIDE. Após 3 meses dentro da prisão, conseguiu voltar para junto da sua família, no entanto, nunca conheceu o sentimento de votar, “desde que foi preso com 17 anos não teve mais direito ao voto, nunca mais teve o direito ao voto”, menciona Fernanda Castro.


Quando se deu a revolução, no próprio dia, conta que o pai se apressou para a cidade e festejou a liberdade que nunca sentiu. Perto da sede da PIDE, na rua do Heroísmo, onde esteve preso, Fernanda conta conta como o seu pai recebeu um dos presentes mais preciosos e bem guardados: “ao meu pai aconteceu uma coisa muito bonita (…) ele contou a história (…) a um soldado disse ‘olhe, já que o senhor esteve aqui preso, há uma coisa que não vai acontecer: eu não vou disparar um tiro que seja’ e abriu a espingarda e tirou duas balas e deu-lhas”.

Fernanda Castro lembra a história do pai no atual museu militiar

No dia 26 na Invicta, Renato Soeiro lembra um dos episódios mais memoráveis da conquista de Abril.

“Ocupámos várias”, diz Renato Soeiro, sobre as antigas sedes dos partidos ligados à extrema direita. “Lembro-me de uma grande marcha que nós fizemos, talvez no dia 26, de ocupação de sedes fascistas” acrescenta o engenheiro civil. Os manifestantes, na euforia dos festejos, conquistaram estes edifícios, que, posteriormente foram atribuídos a partidos que se classificavam como oposição. Foram atribuídas ao Partido Comunista Português (PCP), na rua Aníbal Cunha, “havia lá Mocidade Portuguesa Feminina e atribuímos ao PCP que esteve lá durante anos”, mencionou Renato Soeiro. E também à MDP-CDE, que veio a tornar-se na primeira sede do Bloco de Esquerda no Porto.

Atualmente, na opinião de Soeiro, o museu militar deveria ser reestruturado de forma a se tornar num museu da resistência, “sempre defendemos há muitos anos que deveria ser um museu da resistência, como em Caxias, o Aljube”, o museu militar não apresenta condições suficientemente boas para albergar certos artifícios como os canhões, segundo refere.

Renato Soeiro de 70 anos, relembra as manifestações nas sedes fascistas do Porto

O jornalismo portuense após o 25 de Abril de 1974

No arquivo municipal Sophia Mello Breyner, em Vila Nova de Gaia, encontram-se preservadas páginas do jornal O Comércio do Porto, que surgiu em 1854, publicando edições diárias até 2005. O Comércio do Porto possibilitou observar relatos jornalísticos de abril de 1974 na cidade do Porto. Apesar de não ter ocorrido neste jornal, alguns outros jornais iam escrevendo mais edições ao longo do dia, o que foi uma forma de dar a conhecer os acontecimentos aos restantes locais ao redor do país.

A edição do dia 26 de abril de 1974 do jornal O Comércio do Porto é dedicada ao dia da Revolução dos Cravos. Na capa deparamo-nos com frases como “derrubado o Governo” e “êxito do golpe militar”, assim como fotografias do movimento em Lisboa, junto dos Generais António Spínola e Costa Gomes, o Coronel Galvão de Melo, o Comandante Pinheiro Azevedo e Brigadeiro Silvério Marques.

Já no dia 27 de abril é ressaltado o entusiasmo vivido de norte a sul do país, devido ao golpe militar ter sido bem sucedido, com imagens de manifestações em Aveiro e Braga. Como já se verificava à data, os jovens foram uma grande reforçar os eventos de abril, como podemos ver no sub-título, “Milhares de jovens de Aveiro manifestam o seu regozijo”.

No dia 30 de abril, é anunciado o feriado nacional de 1 de maio, “a festa maior do trabalhador”. Neste dia, vários partidos de esquerda apelaram à vinda dos portugueses às ruas. Ainda conseguimos detetar que os reitores e vice-reitores estavam a ser exonerados pelos estudantes, o que assinala a continuação do efeito do 25 de Abril.

No dia 2 de maio, sai uma edição especial com o título “Que povo e que dia: 1 de Maio”, junto de duas fotografias das celebrações feitas pelo povo, imagens que valem mais do que palavras, a avenida dos aliados contou nesse dia com cerca de 300 mil pessoas, uma das maiores manifestações de sempre na cidade.

O jornal descreve como o povo português, passados anos de repressão e sem se poder expressar, finalmente teve o direito a uma voz livre. A primeira grande expressão do 25 de abril no Porto surgiu no dia 1 de maio, dia do trabalhador, que contou com muitas vozes ativas contra o recém caído regime fascista.

Imagens de Adriana Ferreira