As novas expressões artísticas da Rua Justino Teixeira
Nas casas abandonadas, na prateleira de uma loja de antiguidades, no palco ou até numa galeria escondida, a arte flui como a água e passa na rua Justino Teixeira. Rejuvenescida, a mítica rua de Campanhã conta com novas iniciativas artísticas que projetam a rua para além das suas fronteiras físicas, expandindo o contacto com novos circuitos e comunidades.
[Texto de Vicente Ribeiro. Fotografias de Catarina Seemann, Ricardo Garzón]
Às três horas da tarde do dia 18 de abril de 2023, o espaço de estacionamento da porta de entrada da loja “Coisas do Tempo do Mundo”, de Pedro Cabrita, é um atarefado ponto de cargas e descargas. Da mala do Toyota Corolla deste colecionador, chegam as caixas carregadas que ocupam o chão da loja, interrompendo os pontos de passagem que obrigam os passos a fazer manobras labirínticas.
Espalhados pelos seus quatro cantos, paredes e inclusivamente no teto, nesta loja de antiguidades, todas as peças de cerâmica e de latão, os eletrodomésticos, as miniaturas, ou mobílias, encontram o seu lugar entre as centenas de peças e objetos, juntamente com as próprias criações e restauros do proprietário.
À primeira vista, este espaço, situado no nº679 da Rua Justino Teixeira, destoa daquela que é a identidade histórica e atual dos negócios da rua Justino Teixeira, mais relacionada com a indústria fabril e o negócio de oficinas de reparação automóvel. Em constante alteração, a fachada da loja de passados longínquos reinventa-se, enquanto os novos artigos ocupam a montra em exposição da loja repleta de relíquias.
Durante o dia, a loja relembra um museu dedicado ao colecionismo vintage. Durante a noite, ganha uma nova vida: as luzes dos candeeiros, expositores e neons iluminam-no com várias cores, à medida que a música clássica oriunda do disco de vinil preenche o espaço da sala. Os ponteiros do relógio de parede marcam as horas e anunciam o tempo, com os seus martelos metálicos dourados, soltando esporadicamente uma melodia.
Atrás da sua secretária, virado para a entrada da loja, Pedro da Silva Cabrita conta-nos a sua história. Nascido em 1979, o vendedor de antiguidades é natural da cidade de Alcochete e cresceu no Montijo, rodeado desde cedo pela prática da sua família: a caldeiraria. Foi ainda durante a sua adolescência que decidiu largar os seus estudos e dedicar-se a essa arte, uma aprendizagem que entende ser “exigente e demorada”.
O caldeireiro trabalha na fabricação e na reparação de componentes mecânicos, reservatórios, tanques, tubulações, equipamentos e outros utensílios de cobre ou latão. A origem desta profissão remete aos tempos da idade média, na confeção de armaduras militares, adquirindo uma nova dimensão e importância nas revoluções industriais do século XVIII e XIX. Até hoje, a caldeiraria mantêm-se enquanto prática artesanal em algumas regiões do país. |
O trabalho por trás das peças e componentes de cobre deu-lhe vários ensinamentos que ainda aplica no seu dia a dia. “Ensinou-me a dar valor às coisas, a preservar o que é bom, a ter prazer em criar em vez de destruir”, entende Pedro, rodeado hoje por centenas de objetos que mantém e restaura na sua loja.
Mas a caldeiraria e as antiguidades não foram os únicos ofícios de Pedro Cabrita durante a sua vida, passando por caixas de supermercados, pela jardinagem e até trabalhos pesados. “Trabalhei em vários sítios e nunca me senti realizado pelo trabalho que fazia, mesmo dando o máximo”, comenta, “por isso, decidi montar o meu próprio negócio”.
Com a crise económica de subprime de 2008 e os seus impactos na própria prática da caldeiraria, nomeadamente a desvalorização das peças e a diminuição da procura, Pedro explica que “as velharias surgiram como uma solução”. Apesar de já ter trabalhado anteriormente em negócios transversais, o colecionador afirma preferir trabalhar por conta própria. “Pela primeira vez estou a fazer algo que realmente quero fazer, como quero fazer”, acredita, “não há nada como isto”. Aliás, defende que o ofício lhe deu muitas lições de vida, que guarda como coordenadas no presente.
“Ser caldeireiro ensinou-me a ser responsável, a ter uma orientação e maneira de ver as coisas da mesma maneira da vida: começar e acabar a mesma coisa como faço um restauro”. Para ele, o sentido da disciplina de fechar processos de trabalho vem dessa prática. “Tens de começar o restauro e tens que o acabar, por mais duro que seja, se quiser ter a peça feita”, reflete.
“Coisas do Tempo e do Mundo”
“Coisas do Tempo e do Mundo” ocupa um lugar recente e único naquela rua da freguesia de Campanhã. O proprietário compreende que o negócio de antiguidades “não é um bem necessário”, e que “mesmo com bom material”, manter o negócio é um desafio. Entre a dependência das vendas nas feiras que frequenta e as incertezas de um negócio pouco rentável, o colecionador salienta também o facto da rua ser pouco movimentada, algo que afeta o seu negócio.
“A maior parte das pessoas que cá vêm, vêm por interesse”, afirma o proprietário, “mas são mais as pessoas mais velhas do que os jovens”. Ele admite que esperava maior dinâmica na rua após as obras de requalificação, em 2022, período no qual abriu o seu negócio, mas espera agora por futuros investimentos na região, uma vez que a sua atividade depende da passagem de pessoas.
Face às dificuldades, não esconde a possibilidade de ter de reabrir a sua loja noutro local. “Estou-me a aguentar sozinho, com muito trabalho e muito esforço e sem inflação, porque ainda tenho que baixar os preços quando vendo”, conta. “Só quem tem um negócio como este sabe o quanto custa.”
O colecionador de antiguidades afirma não se sentir valorizado, mas sim apoiado. “Tenho muita gente aqui da rua que me tem ajudado muito. Estão sempre lá quando preciso, e são amigos”, considera recordando as várias amizades que fez com a vizinhança.
Mesmo perante as adversidades e desafios, o vendedor de antiguidades afirma manter o seu otimismo. “Acho que as más fases existem, mas as boas também. Negócios abrem, outros fecham, é assim a vida. Talvez um dia tenha que fechar, não sei, mas estou a trabalhar para que não”, acredita, “pelo menos, se fechar, posso dizer que tentei.”
Ideias que mudam o mundo: Pedro, o andarilho
Longe de Montijo ou de Campanhã, a vida de Pedro Cabrita fez-se também fora de Portugal. Viveu brevemente em Laguardia, uma vila situado no País Basco, onde abriu um negócio durante meio ano. Já na Turquia, Pedro fez de estátua viva durante dois anos. Ele entende que a população portuguesa tem algumas parecenças com o povo turco. “Apesar da religião, na “parte europeia” da Turquia, a maneira de estar, pensar e até de viver é idêntica à dos portugueses”.
Agora, em Portugal, rodeado de centenas de antiguidades, Pedro ainda encontra o mundo que conheceu nas antiguidades que coleciona, restaura e vende. Entre as possíveis ideais que podem ser encontradas no meio das prateleiras e exposições da sua loja, resgata aquelas que “possam mudar o mundo, num bom sentido”, e dá alguns exemplos como o upcycling para a decoração.
A originalidade e a criatividade são constantes na vida de Pedro, e por isso na sua própria loja. “É assim que eu me sinto bem, no meio da diversidade”, afirma, “por isso é que tento ter um bocadinho de tudo, coisas que até que nem gosto, mas normalmente, gosto tudo que tenho aqui.”
“O valor das coisas“
Com centenas de peças e objetos em exposição, entre os quais: arpões de caça marítima, projetores cirúrgicos, escotilhas de navios, moldes de peças industriais, relógios de parede, miniaturas de aviões, e dezenas de candeeiros, peças de cerâmica, latas e figuras, as luzes da loja de Pedro refletem-se no gigante logótipo cromado “FIAT” colocado sobre uma das paredes.
Por sua vez, o “boneco da shell” feito pelo colecionador dá as “boas vindas” a quem entra na sua loja. Nesta loja, a história rodeia-nos. Os objetos, parados no tempo, encontram agora novas oportunidades e assim um novo valor potencial.
“As coisas têm o valor que a gente lhes dá”, explica Pedro, “o que é que me serve ter um Picasso se eu olho para aquilo e aquilo não me diz nada?”. O vendedor de antiguidades explica como cada peça cria uma sensação única e individual:
Contudo, ao avaliar uma antiguidade, o colecionador não se baseia somente pela sua ligação pessoal e emocional. “Quanto mais antigo melhor, normalmente é essa a base”, explica, “olhas para a peça, vês a qualidade, se for uma peça de porcelana, por exemplo, vês a pintura, o tipo de acabamento, a marca.”
Momentos antes de nos guiar pela sua loja, o colecionador partilha que não se arrepende dos trabalhos que o levaram até à abertura do seu próprio negócio. Apesar de ter ultrapassado várias dificuldades, Pedro Cabrita valoriza as suas aprendizagens. “Uma coisa que aprendi é que para ter um trabalho a vida toda, tem que ser algo que tu gostes, mesmo que isso não te traga estabilidade financeira.”
Um teatro Visões Úteis voltado para a comunidade de Campanhã
Quem sai da loja de Pedro Cabrita e desce a Rua Justino Teixeira no seu sentido norte-sul encontra, na loja nº653, uma fachada cinzenta e discreta. Na topo da porta de entrada, em letras pequenas, encontra-se o endereço de um website. A figura estampada dos três olhos numa formação acrobática apoia-se sobre as palavras “Visões Úteis” à sua direita, obtendo uma visão privilegiada da rua. O único indício de cor surge no preto e roxo presentes no cartaz promocional do espetáculo performativo “Chá das Cinco“, da associação cultural e artística Coração nas Mãos, colado no exterior da entrada.
Num primeiro encontro, não se percebe bem que esta sinalética se refere à sede da companhia de teatro profissional “Visões Úteis” e que rompe com o padrão desta região de Campanhã. A companhia de teatro fundada em 1994 mudou as suas instalações para a Rua Justino Teixeira em 2020, “enquanto parceiro da Câmara Municipal do Porto, para o polo de Campanhã do Programa Cultura em Expansão”, um programa anual de promoção cultural e artística da cidade, lê-se no website.
O Visões Úteis é um projeto artístico sediado no Porto, onde foi fundado em 1994. O teatro foi a raiz de uma atividade constante e intensa que rapidamente se alargou a outras áreas das artes performativas, como a Performance na Paisagem e a Performance em Comunidade. A criação artística é o núcleo de uma atividade que se alastra por variados domínios como a programação, a circulação nacional e internacional, a edição, o desenvolvimento de públicos e territórios, a edição, a investigação e a formação da equipa. Aqui, os sentidos e limites do estético e do ético, da arte e da política, são debatidos e negociados todos os dias, o que explica as transformações que o projeto constantemente atravessa, e que a seguir se explicam em detalhe. |
No dia 16 de junho de 2023, é Helena Madeira quem nos recebe para contar a história. Natural da cidade do Porto, pertence à estrutura permanente do Visões Úteis. Com passagens por várias iniciativas culturais da cidade e da Câmara, integrou a área do Secretariado na companhia de teatro entre 2009 e 2012, e de 2016 a meados de 2021, retomando esta função no início de 2022.
Já Ana Azevedo, atriz, é responsável pela formação artística de dezenas de alunos. A formadora de Vila Nova de Famalicão colabora com a companhia de teatro profissional desde 2001, integrando a sua equipa técnica e artística. O seu trabalho envolve um contacto próximo com diversos grupos, passando por aulas de teatro, performance em comunidade, grupos com Asperger/autismo, crianças, adultos e seniores.
No mapa das várias comunidades com que a companhia estabelece um contacto e relação de proximidade, encontra-se também a da freguesia de Campanhã. Ana e Maria explicam que as razões da mudança do Visões Úteis para a Rua Justino Teixeira está diretamente relacionada com o trabalho que a companhia de teatro já desenvolvia com as comunidades e, por isso, fruto de uma parceria no contexto do Cultura em Expansão, numa ligação mais estreita à freguesia de Campanhã.
Com passagens pela freguesia do Bolhão e uma estadia na Fundação José Rodrigues, a companhia de teatro Visões Úteis encontrou na Rua Justino Teixeira o seu espaço de ensaios. No interior da loja nº653, surgem espalhados os vários elementos que assinalam a vida artística da companhia de teatro: desde os cartazes promocionais das suas criações passadas, como a performance “Corpo Casa Rua” de 2013, até aos eventos mais recentes, como a 10º edição do Cultura em Expansão e o Espaço Comunitário de Criação “Zha!”.
A relação e trabalho próximo com as outras instituições é visível através dos certificados de agradecimentos expostos no corredor principal da loja, entre os quais se destacam o Centro Juvenil de Campanhã e a Fundação Luso-Galaica de Espanha e Portugal.
Enquanto uma companhia de teatro profissional, a Visões Úteis compreende várias linhas de funcionamento. “O visões tem uma parte de programação, de espetáculos e de criação”, explica Ana Azevedo, havendo ainda uma divisão entre os espetáculos em palco e outros que descreve sendo “mais fora da caixa”. Explorando “novos conceitos e tipos de dramaturgia” diferentes, a atriz dá o exemplo da integração da realidade virtual numa das criações mais recentes da sua companhia.
Atualmente, a companhia de teatro não faz “textos de autor”, desenvolvendo temáticas através da “criação coletiva, improvisações e escrita” para os seus espetáculos. A atriz explica como a primazia temática das problemáticas sociais resulta em duas linhas de espetáculo distintas.
Zha!: Diálogos com a comunidade cigana
A criação de peças através de novos formatos tem sido um dos principais objetivos criativos da companhia de teatro, integrando a participação conjunta de atores profissionais com os alunos de teatro, ainda em formação. Já o trabalho próximo e dedicado com comunidades da cidade do Porto levantam alguns desafios.
Ana Azevedo e Maria Madeira dão o exemplo do “Zha!”, um projeto que envolve jovens da comunidade cigana dos bairros de Contumil, Lagarteiro e Cerco, envolvendo a ação conjunta de diversos intervenientes: “Vários formadores de diversas áreas, incluindo eu com a parte da interpretação, trabalham oficinas especificas”, explica a formadora.
A atriz e a Secretária explicam como este projeto, que irá culminar num documentário, videoclipe e espetáculo, representa um dos vários exemplos do trabalho de mediação presente no trabalho com as comunidades.
A mediação enquanto ponte que liga a companhia com as pessoas é uma peça fundamental para a construção das relações de proximidade e confiança. “Este tipo de parceria tem que existir para permitir que se consiga trabalhar com tanta gente”, entende Ana Azevedo, “desde as escolas, a junta de freguesia, as instituições, até à própria comunidade cigana, os seus mediadores e representantes”.
A formadora sublinha que o fator de proximidade à comunidade revelou-se como um fator importante na decisão da companhia instalar-se na freguesia de Campanhã. “A reposta [das comunidades] é positiva exatamente porque existem relações de proximidade em conjunto com um trabalho de mediação”, explica a formadora, que sublinha o “trabalho de adaptação” à realidade das pessoas e dos locais.
Um serviço educativo para escolas
Mas a ação da Visões Úteis passa também pelas escolas da freguesia, próxima dos alunos do ensino básico e secundário. Com a criação da iniciativa “Novos Percursos de Campanhã”, a companhia de teatro pretende “implementar estratégias para uma transição justa, igualitária e inclusiva, no sentido de um acesso efetivo das comunidades jovens às oportunidades na (sua) educação artística”, lê-se no website. A formadora conta que o projeto visa essencialmente “esclarecer e promover as possibilidades que os alunos têm de ir para uma escola de teatro”, contrariando a falta de informação e oferta na ingressão no ensino artístico. À exceção de três alunos bolseiros, “nenhum dos nossos alunos é daqui [freguesia de Campanhã]”, acrescenta Ana Azevedo.
O programa de formação atual da companhia de teatros conta com duas turmas de adultos. Com alunos de idades compreendidas entre os 20 até aos 60 anos, as turmas são compostas por diversas faixas etárias, “e funcionam muito bem”, garantem Ana e Maria. Provenientes de várias zonas do Porto e de Vila Nova de Gaia, os alunos encontram maior acessibilidade e facilidade de acesso à Rua Justino Teixeira, algo que não acontecia na antiga sede, situada no centro do Porto, garante a Secretária.
“O facto de descer a rua e ter o metro e comboio é muito mais acessível do que quando estávamos no centro”, entende Ana Azevedo. Segundo a formadora, a mudança para a zona mais remota da cidade fez com que a procura à formação da companhia de teatros aumenta-se, o que possibilitou a abertura da segunda turma ainda este ano.
“[Os alunos] não estão aqui por que querem ser profissionais do teatro, são amantes do teatro”, explica a atriz, que conta com a presença de professores, médicos, jornalistas, dentistas ou até estudantes nas suas aulas. Os alunos da companhia de teatro procuram o teatro por gosto ou enquanto uma ferramenta para o seu dia a dia, como por exemplo, o desenvolvimento das capacidades de comunicação. O resultado são relações marcadas pela diversidade, unidas pela paixão do teatro, entende a formadora.
“[Nas turmas] são criadas relações muito interessantes de pessoas muito diferentes, que vêm de contextos e áreas muito diferentes, e que encontram aqui uma coisa em comum: a paixão de fazerem teatro”
Ana Azevedo
Com um extenso envolvimento pelas comunidades dispersas de Campanhã e da cidade, o facto da companhia de teatro se situar numa rua como a de Justino Teixeira – fora do centro e das suas confusões, “levanta alguma curiosidade” – compreende Helena Madeira. Apesar de alguns moradores da rua ainda desconhecerem o trabalho da companhia de teatro, tanto Ana como Helena destacam a relação harmoniosa de proximidade com a vizinhança.
“A relação com a vizinhança é boa, temos boas relações com o café [Casa Fonseca], o Pedro das Antiguidades, com a “Associação Viver de Afetos”, exemplifica a secretária, que desejando também “que os vizinhos comecem a perceber que aqui faz-se teatro e que se dão aulas”, com uma atitude notavelmente promissora.
Os atos de cooperação entre as pessoas da rua nas iniciativas da companhia de teatro são também comuns. A Secretária conta como a escultora Marta Lima, moradora na rua Justino Teixeira, participou nas oficinas do espetáculo “Cidades de Bronze”, que teve a sua estreia no mês passado. Ainda recentemente, Pedro Mesquita cedeu um dos seus projetores cirúrgicos, igualmente para um espetáculo. “Portanto, as relações são também de trabalho e vizinhança”, concluem Ana e Helena, quase que em uníssono.
Desde a mudança do novo espaço da companhia de teatro em 2020 que ambas afirmam sentir uma evolução clara da rua, que passou por uma fase de requalificação no último ano. A secretária e a formadora refletem sobre o período de obras de pavimentação da rua entre o mês de setembro de 2022 e março deste ano, juntamente com os desafios levantados para os moradores e comerciantes:
“Nessa altura, apercebemo-nos que a rua é muito importante enquanto um acesso para cortar caminho”, afirma Ana Azevedo, “porque mesmo com o trânsito cortado, os taxistas faziam sempre questão de cortar por aqui [Rua Justino Teixeira]”. Helena Madeira conta ainda que, no decorrer do período obras, o trânsito não foi completamente interrompido: “mesmo em obras, nunca conseguiram cortar o trânsito nesta rua”.
Para a formadora, o aumento do movimento na Rua Justino Teixeira é benéfico para a sua companhia de teatro. “O facto das pessoas conhecerem este local é ótimo”, acredita Ana Azevedo, “quanto mais gente passar aqui à porta e aperceber-se de quem somos e o que fazemos, melhor ainda”.
Com uma longa história, a companhia de teatro Visões Úteis continua a encarar a transformação da criação artística e o seu potencial nos mais diversos domínios e suportes, redefinindo a fronteira existente entre a arte, as pessoas e os seus locais.
“Nós tentamos que todos os nossos diferentes projetos se cruzem de alguma forma”, explica a formadora, “tentamos que os alunos se cruzem com as produções, com os atores, os diretores e os próprios espetáculos”, exemplifica. Para ambas, o envolvimento pessoal e a criação de laços de familiaridade entre as estruturas da companhia representa uma das suas principais características, por muita que seja a diversidade entre os membros ou os próprios projetos.
“Quando falamos em companhias como esta, as pessoas acham que só se faz teatro, mas o Visões Úteis vai além desse objetivo”, partilha Maria Helena. A Secretária destaca algumas das particularidades da sua companhia de teatro entre as restantes da cidade, ao envolver diferentes faixas etárias e criar e captar novos públicos através da formação e dos projetos de intervenção com as comunidades. Já entre a Ana Azevedo e Helena Madeira, uma palavra define a génese da sua companhia de teatro: a diversidade.
Spa com vista para a rua Justino Teixeira
No topo da rua Justino Teixeira, situada entre as ligações com a Rua Dom Lopo de Almeida e, mais à frente, com a Avenida 25 de Abril, uma moradia de 2 andares abriga, no seu interior, um autêntico mundo esculpido. Entre as duas portas de entrada, uma peculiar estrutura de arame preenche o interior da janela principal da casa, acompanhada por uma descrição: “Janela Indiscreta ou Spa com vista para a rua”, da autoria da artista Rute Dias. Esta obra, pertencente à exposição “Caminhos – Paths”, foi inaugurada em abril deste ano, aqui, na galeria de artes “Spa-saluteperart” (saúde pela arte, em francês), do casal de artistas Marta Lima e Rui Ferro.
Moradores na rua Justino Teixeira há 14 anos, os artistas de belas artes partilham uma relação duradoura com aquela região de Campanhã. Marta Lima cresceu com a sua família na rua Dom Lopo de Almeida, estabelecendo desde cedo uma relação da proximidade e familiaridade com os espaços e pessoas da Rua Justino Teixeira. Já Rui Ferro, natural da capital de Angola, Luanda, regressou com a sua família para Portugal após a revolução de abril de 1974, situando-se na cidade de Matosinhos. Ambos iriam cruzar caminhos pela primeira vez no decorrer das suas licenciaturas na atual Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, na qual Rui Ferro é hoje docente.
Ainda no decorrer da sua formação artística, o casal recorda frequentar o armazém de metais “O Tinoco”, anteriormente situado na rua Justino Teixeira:
Após uma passagem na rua Duque da Terceira durante oito anos, na freguesia de Bonfim – onde viveram e inauguraram o seu primeiro atelier de artes – o casal instalou-se em 2009 na sua atual moradia em Campanhã, dado a proximidade com a família de Marta Lima. Construída em madeira, a origem da casa remonta à primeira metade do século XX, no ano de 1937. Outrora, no interior da atual habitação – que conta com uma armazém e uma oficina – funcionou um estabelecimento de fabrico de colas, com o seu dono sendo conhecido na rua como “O Quim das colas”.
O casal explica como a própria estrutura da sua casa revelou-se como um espaço de trabalho ideal para a sua prática artística da escultura:
“No fundo, um atelier tem que ter todos estes espaços: oficinas, sítios de limpo e zonas de exposição, que também se tornam em galeria para outros poderem fazer as suas exposições”, entende o artista que recebe artistas várias nacionalidades na sua residência. “Têm sido aventuras artísticas muito interessantes, numa escala reduzida”, sublinha.
Uma rua com buracos na memória
Em tempos passados, subir a Rua Justino Teixeira no seu sentido sul-norte significava encontrar, no atual entroncamento oblíquo com a Avenida 25 de Abril, um beco sem saída. Na antiga rua repleta de negócios e indústria – antes das obras de requalificação da estrada e dos passeios – as covas e buracos preenchiam aleatoriamente as vias de paralelos, utilizadas diariamente pelos camiões que por ali se cruzavam.
O casal de artistas relembra a condições passadas da rua Justino Teixeira, numa altura em que atravessar as suas vias era comparável a uma “montanha russa”:
Marta Lima entende que as recentes obras representaram um período difícil para os moradores, que não só perderam os seus lugares de estacionamento, como também sofreram uma considerável redução de mobilidade no decorrer do período de requalificação, especialmente a população mais idosa da rua. Para Rui Ferro, o investimento na reestruturação da rua reflete “uma certa compreensão de que a cidade é cada vez mais para os pedestres”, entende o professor universitário, que explora a dualidade existente nos projetos de requalificação urbanísticos da cidade entre a identidade e a comodidade:
“Numa rua em que o comércio se estava a ir embora e em que as pessoas estavam envelhecidas, de um momento para o outro tens uma rua rejuvenescida em todos os sentidos”, afirma Rui Ferro, nomeando os novos negócios e iniciativas, como a loja de antiguidades e a companhia de teatro Visões Úteis.
Humildade na inclusão
Após três décadas de produção artística, o escultor afirma que a sua experiência pessoal e criativa nas belas artes ensinou-o a ser “cada vez mais humilde”. Desde os primeiros momentos na sua formação até ao trabalho com diferentes materiais em diversos contextos, as vivências no meio artístico permitiram que hoje consiga encontrar “novas potencialidades que remetem-me a olhar para os outros de uma forma mais inclusiva”.
“Já fizemos tantas coisas em tantas áreas”, comenta Marta Lima, cuja a formação também atravessou o design urbano e a arte pública, juntamente com Rui Ferro, que acrescenta: “desde a pedra, à fundição e à cerâmica, já andamos pela ortodoxia toda”.
O escultor estabelece uma comparação da arte como o elemento da água, “que passa por qualquer atelier e qualquer oficina e ambiente de trabalho artístico”. O pensamento e o processo criativo só podem ser garantidos pela liberdade, mas segundo o casal, essa mesma condição pode ser encontrado em qualquer lado, desde o pão, como material, e até nas próprias pessoas, acrescenta a escultora.
“A nossa galeria não é um lugar comercial, mas sim muito mais um espaço de encontro”, entende Marta Lima, que encara a sua galeria como “um sonho maior de estar e reunir as pessoas”. Sem pretensão de se estabelecer nos principais circuitos artísticos da cidade portuense, a escultora comenta a projeção da sua galeria na atual economia da arte:
Ao acolherem no seu espaço artistas “fora do enquadramento do mercado geral”, Rui Ferro percebe que promove “novas soluções” à “repetição do circuito artístico” que o mesmo critica: “dentro do circuito há uma espécie de repetição que tem mais haver com as leis do comércio do que as leis artísticas”, entende o professor universitário.
O escultor esclarece não ter “problema nenhum” com o comércio da arte, mas entende que ainda faltam ainda espaços que não sejam determinados por essa mesma economia da prática artística:
Uma galeria aberta a todos
Os diferentes espaços da moradia do casal artista organizam-se pelas suas diferentes divisões: uma zona de habitação, uma galeria de artes, uma oficina e até um quintal. Mas apesar das divisões, a arte ocupa um espaço central e de destaque em toda a parte: esculturas, desenhos, moldes, peças em madeira, gesso e pão, objetos de estudo ou trabalhos que englobam o período da formação artística de ambos até à atualidade:
A porta para a galeria SPA já esteve diariamente aberta ao público, explica a artista Marta Lima, mas mesmo assim, as pessoas resistiam a visita ao seu espaço. “Nós já tivemos a porta aberta, mas as pessoas aqui da rua não entravam”, contam os artistas, que identificam um padrão inverso com os visitantes estrangeiros: “Entravam vários estrangeiros na galeria, exclusivamente vários alemães, que entravam sempre sem nenhum problema ou constrangimento”, conta Rui Ferro.
Durante as inaugurações das exposições, os convívio com amigos e artistas próximos acontece regularmente: “a ideia não é só fazer uma amostra de arte na galeria”, entende o professor universitário, “é também fazeres uma reunião com as pessoas que estão em volta dessa mesma necessidade”, abrindo um espaço para “novas conversas” em torno da arte.
A arte urbana na Rua Justino Teixeira Na Justino Teixeira, a arte também sai à rua. Espalhados aleatoriamente pelos muros, superfícies, fachadas em ruínas e pelas casas e fábricas abandonadas, o grafitti, enquanto forma de expressão artística, marca a sua presença em vários locais da rua. Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 Arte urbana na rua Justino Teixeira. Fotografia: Vicente Ribeiro. maio e junho de 2023 |