Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda: Viver para a coletividade

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Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda: Viver para a coletividade

Filipe Lourenço, presidente, Mário Gonçalves, ex-presidente, duas histórias que se unem numa só voz para falar de um passado marcante, um presente difícil e um futuro incerto da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda, em Campanhã. 

[Reportagem de Guilherme Caroço e Mariana Venâncio]

São duas da tarde do dia 21 de abril de 2022 e a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda acaba de abrir as portas. Quem caminha pelas pedras da calçada da Travessa de Miraflor, quase não se apercebe que há uma entrada no número 17. Só os mais atentos e aqueles que “pertencem” à casa sabem o caminho de cor. Conhecem-na como a palma da mão. Pelo corredor escuro e sinuoso, subindo 23 escadas encontra-se o acesso para a coletividade, fundada em 1952.

Numa vitrina repleta de fotografias, troféus e medalhas estão imortalizados momentos que constroem um percurso com 70 anos. Em destaque, duas fotos que revivem o dia em que o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou as instalações. Filipe Lourenço, 42 anos, não o conheceu, não era líder da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda nessa altura, mas é com entusiasmo que recorda a visita. 

Som ambiente da subida dos 23 degraus da Associação
Filipe Lourenço | Presidente da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda | Fotografia de Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

A lista de nomes que já presidiram a esta coletividade é extensa, e Filipe destaca-se como o segundo mais jovem a assumir o cargo. Cresceu em Campanhã e ainda hoje vive na casa que guarda as melhores memórias do seu pai. Dividido entre ruas, a Travessa de Miraflor e o “outro lado da estação”, em Noêda, ele passou a infância e momentos que recorda. Quando não estava a jogar futebol com o primo, apelidado de Duda, era na coletividade que passava tempo, local “onde fez amigos para a vida”.

“Aqui fiz amigos para a vida”

Filipe lourenço

“Na altura, o meu pai era diretor e eu acompanhava-o para todo o lado.” Foi este o laço que o uniu eternamente à coletividade. Apesar da memória já não ser a melhor, guarda com carinho recordações para reviver os tempos da infância. Na época natalícia, a associação fazia uma festa. Os filhos de associados dirigiam-se ao palco para receber uma prenda. Filipe era um deles, lembra-se perfeitamente da atmosfera de entusiasmo que se sentia. Depois, o rancho foi uma atividade que praticou na associação. Na dança e no canto estreou-se pela primeira vez. 

Festa de Natal dos Filhos dos Associados de Os Malmequeres Noêda | 1984 | Fotografia cedida por MIRA FÓRUM
Futebol organizado pelos Malmequeres Noêda | Fotografia cedida pela coletividade

Aos nove anos perdeu o pai. “A vida deu muitas voltas, deixei de parar aqui durante muitos anos”, diz. No futebol encontrou um refúgio, uma dedicação, o sonho de tornar-se jogador profissional. Começou no Bairro do Falcão, “num ringue de pedra” onde deu os primeiros passos até ao clube do coração – O Desportivo de Portugal – “o campo atrás da estação de Campanhã” que, atualmente, “não existe.” Viveu para o futebol e apostou toda a sua energia, com o objetivo de consolidar e progredir nesta carreira. Juntamente com Duda, foram a um estágio ao Vitória Sport Clube, em Guimarães. “As burocracias futebolísticas”, afirma, não permitiram a continuidade de Filipe no novo clube, permanecendo na equipa da terra. Com 21 anos conquista um lugar na terceira divisão portuguesa, acabando o sonho neste capítulo derivado a lesões. 

Até então ao som de um tique taque da vida, o “ponteiro” estagnou e o presidente sentiu-se “perdido”, não sabia que rumo levar. Com o nascimento do filho sentiu a “obrigatoriedade de abandonar” o país à procura de melhores condições de vida. Procurou trabalho fora, não “via uma escapatória por lado nenhum.” Durante 11 anos, a sua vida foi entre Portugal e o estrangeiro. Emigrou para a Alemanha durante um ano e esteve uma década na Suíça. Nos momentos em que regressava à sua “terrinha” era cliente assíduo na associação, onde estavam sempre “os amigos e as pessoas conhecidas”. Regressou em definitivo para Portugal há três anos e não pensa mais em sair, declarando que o “tempo de aventura já passou”. Desempregado e com uma proposta em cima da mesa, decidiu concorrer para presidente. Um incentivo extra fez com que aceitasse o projeto: “houve uma situação em que mexi numas fotografias” e “vislumbrei a fotografia do meu pai em cima do palco, foi o meu incentivo.” 

Filipe Lourenço revela que foi a fotografia do pai que o levou a concorrer à presidência da associação

O amor pela associação foi passando de geração em geração. Pai e filho. Serafim Machado e Filipe Lourenço numa paixão pela coletividade. 

“É o gostar disto. É o gostar desta casa. É o gostar de parar aqui. É o gostar das pessoas que cá param porque isto é a nossa “terrinha”. Campanhã é a nossa “terrinha”

Filipe Lourenço

Dos mais pequenos aos mais graúdos. Homens e mulheres. Moradores e passageiros. Com possibilidades ou sem possibilidades económicas. A associação tem uma “importância muito grande” para as pessoas que “vivem em redor”, ou “mais longe”, mas que “gostam muito desta casa”. Independentemente de consumirem produtos no bar ou não, existem muitos associados “que não passam sem vir cá.” Este espaço é o refúgio para muitos. Se fechasse, a dinâmica perdia-se. “Quando saem do trabalho, o bocadinho de lazer é vir aqui: ler o jornal, ver o futebol, ver um filme e jogar às cartas”, momentos que fazem parte da rotina de vários. Isto é a “segunda casa.”

É o caso de José Neves, mais conhecido por Bu, o qual faz parte da “mobília” desta associação, sendo já uma presença habitual e obrigatória para quem vai à Associação. “Ele passa mais tempo aqui do que propriamente em casa”, diz Filipe. São histórias como esta que incentivam o presidente da coletividade a cuidar da “casa” e a continuar os dois mandatos restantes. 

Meio século de paixão à coletividade

Mário Gonçalves | Antigo Presidente da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda | Fotografia de Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

Mário Gonçalves é um dos atuais 283 sócios da associação. É uma figura emblemática para a história da coletividade e para a evolução do espaço. Com 68 anos, está reformado de uma vida cheia de atividade em redor de Noêda, local onde nasceu e viveu. Estudou e trabalhou pela zona. De um negócio de família, uma empresa de cromagem – Francisco Gonçalves & Filhos Lta. – fundada pelo pai, Mário assumiu as rédeas durante 15 anos. Apesar da grande paixão e força para manter viva a memória da empresa recorda que, nos anos 2000, passou um período “muito complicado com a Construção Civil”. “Nem conseguia dormir de noite”, confidencia dado que todos os meses tinha “dois mil, três mil euros de prejuízo e não dava”.

Travessa de Miraflor | Fotografia de Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

Mário vivia uma vida de dupla atividade. Os dias eram passados entre a empresa e a associação. Desde pequeno tinha uma relação com a coletividade. O avô, Arnaldo Martins Monteiro, foi um dos fundadores.

O nome daquela que é hoje a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda chegou a ser originalmente “Grupo de Rapazes e Raparigas”. Também o local onde está hoje não é o mesmo.

Mário nasceu em 1954, dois anos após a fundação. Explica que andaram “dois ou três anos a vaguear [entre] a Eira e Santo Ildefonso, depois foi para o Freixo, depois para Miraflor e ficou aqui, veio para aqui e nunca mais saiu daqui [Travessa de Miraflor].” Apesar de saber este trajeto, a verdade é que não o vivenciou, mas a ligação à coletividade permite-lhe falar de cor. “Passei a minha infância na associação, já vinha para a sede com três anos.”

Viu a associação crescer ao mesmo tempo que ganhava maturidade e experiência de vida. Aos 20 anos foi cumprir serviço militar, “na tropa” e, aos 22 anos, intregou o quadro administrativo da coletividade: “comecei como quarto lugar desse ano, depois fui para segundo-secretário, primeiro-secretário, vice-presidente e presidente.” 

“Aquilo que está lá dentro fui eu que fiz, tudo”

Mário Gonçalves

Entre 1993 e 1994 torna-se vice-presidente. Passados dois anos, assume o cargo da Presidência. Ao leme da associação, considerou que o espaço “tinha de dar uma volta muito grande”. “Tinha o teatro, o folclore, o futebol salão e achei que a sede não dava para aquilo que a gente queria, então pus os pés ao caminho”, diz com grande orgulho. Conhecido por ser uma pessoa pró-ativa, Gonçalves decidiu que a associação devia dar uma volta de 360 graus. Decidiu fazer obras. 

Logo da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda

Com o apoio da Câmara Municipal do Porto e da Junta de Freguesia de Campanhã, “com orçamentos para aqui e acolá” a conclusão das obras foi um sucesso. Primeiramente teve de pedir orçamentos e com “cinco mil contos conseguia fazer a obra e fiz”, o que, nos dias de hoje, equivale a cerca de 25 mil euros. Mário tinha conhecimentos e pediu a uma pessoa amiga o projeto da obra. “Andei uma semana, todos os dias de manhã a ir lá [Câmara Municipal do Porto]”, recorda. Manuela Melo, então vereadora da câmara, garantia-lhe “uma certa verba” e foi, depois, à Junta de Freguesia e disse que “eram capazes de fazer a obra.” O ex-presidente já sentia orgulho dos passos que tinha dado, mas a construção não ficou por aí. “Como a sala de teatro ficava à beira do palco, não era bom para as pessoas descerem as escadas, estavam sujeitos a cair” e decidiu voltar a pedir apoio ao poder local. Falou com o Rodrigo Oliveira, que garantiu que a Junta “pagava três placas” para o palco, mas não era o suficiente. Voltou a contactar com a vereadora que prometeu “arranjar o resto até ao final do ano.” A partir desse momento “foram nove anos que fiquei com os cabelos brancos, passei muito para deitar o palco abaixo”, garante. “Foi uma obra bonita, tenho pena agora porque não vão dar continuidade a certas coisas.”

Passado e Presente: A maratona da nova geração

Uma separação entre o antes e o agora. 70 anos depois, tudo está diferente. Ao tempo ninguém escapa. Sócios antigos, sócios novos que somam na contagem. Atividades diferentes. Direções diferentes. Tal como o tempo, os gostos mudam e Mário vê hoje uma juventude que “não passa cartão.” A energia e amor dedicado à coletividade têm-se perdido, aquilo que foi feito no passado parece hoje, para muitos, que não valeu a pena. “As pessoas antigas fizeram muita coisa e as coletividades estão a acabar.”

As atividades que existem hoje representam a decadência da associação. “Nos tempos de ouro” existia o folclore e o teatro, atividades que “eram mais comuns” e muito importantes. Mais tarde surgiu o futebol salão, o que levou à conquista de vários títulos. O bilhar também conquistou “glória” várias vezes. A representar a coletividade havia um grupo de dança: as Estrelinhas. Em dias de festa, elas não faltavam, eram presença obrigatória, animavam a “malta”.

Nos dias de hoje, “a nível cultural temos dois grupos que representam a coletividade”: dois grupos de dança, um para os mais novos e para os mais velhos, refere o Presidente atual. Por via de Ana Sousa e amigas nasceu os MK Dance em 2013, uma forma recreativa para todos aqueles que se querem expressar através da dança. 

Recuando no tempo, os grupos que representavam a coletividade eram de maior envergadura. Havia mais atividades, o que conduzia a um maior número de participantes. Todos eles sócios. 

Na altura em que Mário assumiu a liderança investiu muito dinheiro. Relembra que o folclore tinha muitos custos associados. “Havia muita procura de músicos para o folclore e eles exigiam, mesmo nos ensaios, um determinado valor e para as deslocações outro.” O dinheiro não cai do céu e “às vezes a gente não tinha dinheiro para pagar as coisas, a gente andava aí a arriscar para pagar aos músicos.” Mesmo com todas as dificuldades monetárias, a verdade é que trabalhava sempre para o sucesso da sede.

Esteve envolvido no 3º Festival de Folclore que se realizou na Estação de Campanhã. Um evento que atraía muitos espetadores e participantes. Os dois primeiros eventos foram pela mão de José Armando. Todo um trabalho por de trás que é desconhecido para aqueles que não fazem parte da casa. “Nem imaginam o trabalho que dá e os gastos que dão para fazer um Festival Folclore, estão uns a atuar e outros a lanchar, uns preparados para entrar e outros para sair”, refere o antigo presidente. 

Tal como Mário deu muito à associação, a coletividade deu-lhe uma paixão, o teatro. 

Teatro “Pouca Vergonha” | 1978 | Fotografia cedida por Mira Fórum
Teatro | 1978 | Fotografia cedida por Mira Fórum

“Eu adorei fazer teatro”

Mário Gonçalves

Foi um elemento importante. Estava em falta um membro para uma peça de teatro e foi substituí-lo a pedido do seu grande amigo, Artur Costa. Inicialmente pensou que “não tinha vocação”, já que “nunca tinha feito teatro, nem sabia estar em cima do palco”, admitindo que quando se dirigia ao palco ficava a “tremer.” Abriu-se a um novo mundo. Um mundo desconhecido, mas que o cativou. Uma memória que guarda com muito carinho e um exercício de “afirmação” foi quando atuou pela primeira vez fora. “Vi tanta gente na plateia e achei aquilo assustador”, referindo que na coletividade se acontecesse um erro “metia um grupo qualquer, mas fora é totalmente diferente.” É apaixonado por esta arte. Pela arte da representação. “Ainda hoje era capaz de fazê-lo, mas a coletividade não tem, não se pode fazer nada.”

Com uma visão ambiciosa, Gonçalves não parou por aí. “Fiz muitos bailes, muitas noites de fado, naquele salão cheguei a ter 42 mesas para ouvir o fado.” Organizou eventos com “muita categoria”, caracteriza. Os “fadistas diziam: “já fui cantar a muitos sítios, mas como a associação não” e as pessoas gostam do fado e, por isso, tinha sempre a casa cheia”, admite com um sorriso no rosto. O esforço para preparar as festividades com classe era notório, “cheguei a por mesas a cinco contos com uma lagosta, tinha três indivíduos sócios que trabalhavam em restaurantes a servir à mesa. Foi dias que passei e bailes que fazia para os associados, tinha que fazer porque a gente não tinha outras maneiras de angariar dinheiro.”

O mês de Julho é um período especial para a coletividade, o “mês de festas.” A 25 de julho a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda faz anos e Mário teve a oportunidade de o organizar e participar.

Filipe não é deste tempo, mas recorda que, com a direção antiga, a associação tinha a casa sempre cheia. Chegaram a ter “300/400 pessoas”, diz. Constata que atualmente ainda não tiveram “possibilidades” de receber um grande evento. “Três é a conta que Deus fez” e é o número de eventos organizados por Filipe. Manuela e João são os responsáveis pelo Espaço Mira que se encontra localizado a poucos metros da Associação Noêda. Um “britânico vinha apresentar uma peça de teatro nesse espaço [Mira] e o homem ficou encantado com a coletividade e quis apresentar a peça de teatro aqui”, diz o antigo jogador da bola. A isto soma-se o lançamento de um livro e um espetáculo de dança. Ideias não lhe faltam. Procura também não. A adversidade que encontra pelo caminho são as licenças, uma burocracia em falta que não permite à coletividade receber eventos até tarde.

A associação é capaz  de “arranjar licença [até] à 1h da manhã, máximo dos máximos até às 2h da manhã, mais para a frente não conseguimos, não temos hipóteses.” Como não têm o espaço isolado para som, as atividades poderiam tornar-se um incómodo para a vizinhança. O presidente tenta sempre “jogar” com tudo isto, mas a verdade é que já teve de dizer não. E quando é que um jogador diz não? Quando “dribla” e corre contra o tempo até ao momento de marcar pontos.  

Para os jovens o objetivo não é marcar pontos. A paixão aguerrida e o suor imposto na camisola à muito que se perdeu. Apesar de haver um esforço para manter esta coletividade viva, perdeu-se o espírito porque a “juventude não se interessa, não tem amor, gosto ou não querem perder tempo”, pressupõe Mário Gonçalves. Um exemplo desta falta de “amor à camisola” são os seus filhos. Trabalham para o Estado e apesar de serem sócios não “têm o tempo necessário” para empregar na coletividade. “Isto é uma coisa de que quando se gosta perdesse muito tempo.” É dedicação. É dar tudo por tudo. É abdicar de muitos momentos. É colocar a associação em primeiro lugar. Este é o caminho de sucesso para o ex-presidente. Mário, se voltasse à liderança, uma das diligências que faria era o resgate de memória do teatro. Tempos com grande história para a sede. 

“A nossa coletividade ainda é uma das que estão abertas e tentam pelo menos fazer alguma coisa porque nas outras [coletividades] não vejo nada”

Mário Gonçalves

Mário recua no tempo. Antigamente, “o orfeão do Porto era muito grande, só em folclores era imenso e agora está a acabar.” Como uma história existe um princípio, um meio e um fim. Espera-se que o fim não seja para agora.

Dificuldades: Serão as memórias suficientes para salvar o presente e o futuro?

“Potencial” é a palavra utilizada por Filipe Lourenço para caracterizar a associação. Mas, para ele o “potencial” foi se apagando, tornando-se menos percetível para aqueles que a frequentam com regularidade. “Neste momento, ninguém se quer agarrar a isto”. O tempo pessoal é dedicado somente à sua segunda casa e Filipe admite que não tem qualquer tipo de lucro. 

Mariana Venâncio (MV) e Guilherme Caroço (GC): Como sobrevive a associação?

Filipe Lourenço (FL): Não é associação que paga as despesas aqui, é o bar.

Ao lado do presidente, Paulo Batista é o braço direito nas tarefas desempenhadas por trás de um balcão de mármore acinzentado. A tarefa de há uns anos para cá não é fácil, a associação tem passado por diversas dificuldades, tempo que Filipe caracteriza como não “muito famoso.”

“Estou a batalhar na pior fase disto, na pior fase disto”

Filipe Lourenço

Sócios na lista não faltam. Pessoas que se dediquem de corpo e alma também não, mas os hábitos e os costumes perderam-se. Quando Filipe assumiu a presidência, em 2020, tiveram “duas semanas excelentes e pensei mesmo que as coisas se iam endireitar porque havia falta de muita coisa e as minhas ideias estavam a dar certo.”

O inimigo que toda a gente atinge e ninguém vê, Covid-19, trouxe muita instabilidade e insegurança a todos os estabelecimentos e a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda não fugiu à regra. “Tivemos que fechar e isto descambou para todo o lado”, refere.

“O que estamos a passar são coisas já de trás. Estava tudo em dia, mas com o fecho levou-nos a muita coisa, não tivemos hipótese”

Filipe Lourenço

A pandemia não só afetou financeiramente a associação como introduziu uma nova rotina à comunidade. “As pessoas começaram a acomodar-se em casa.” Filipe dá como exemplo o grupo de oito pessoas que se reuniam ao sábado à tarde “para jogar bilhar, consumir e ajudar na coletividade” e “desapareceram completamente” devido à pandemia.

Mário era uma presença assídua na sede, “chegava a casa às duas ou três da manhã, agora chega às seis horas e não saio mais.” O hábito perdeu-se. De longe a longe, mete os pés pelo caminho que tão bem conhece. Ao sábado está sempre lá. Leva amigos. Joga uma sueca e bebe uma cerveja. “Quando não vou, eles sentem logo a minha falta”, afirma. 

As gargalhadas foram substituídas pelo silêncio, especialmente durante a semana.

“Ao fim de semana é onde a gente aproveita para trabalhar mais um ‘bocadinho’, é onde aparecem mais alguns sócios, mas durante a semana é muito complicado trabalhar aqui”, admite sem receio. Sem querer referir valores, o presidente reforça a ideia de que “é muito complicado” manter as portas abertas. Sem essa obrigação coloca dinheiro do seu bolso. Investe tempo, dinheiro e energia. Se não o tivesse feito, “isto já estava com as portas fechadas.” 

Mariana Venâncio (MV) e Guilherme Caroço (GC): Neste momento, quantos sócios tem a associação?

Filipe Lourenço (FL): Somos bastantes. Agora se me perguntarem quantos é que pagam…

“Todos os dias estão cá dez a 12 clientes. É com esses que eu posso contar”, diz o presidente. Bar e direção. Dois ativos onde se vai buscar dinheiro. Na direção, a “única parte monetária” é as “quotas que os sócios pagam.” Todos os meses deixam um euro na casa. “Um euro ou nada, nem sei, às vezes era melhor não pôr nada e aparecer cá mais gente”, sublinha. Na visão do antigo Presidente, as quotas “são baixas”, nem sequer dá para pagar as despesas. Associados com ou sem possibilidades. Para estabilizar as contas, o presidente refere que um aumento nas quotas poderia ser benéfico, mas os “problemas” iam surgir, pessoas que iam aceitar, outras não. Daí preferir “deixar conforme está e batalhar ali dentro”, no bar. 

“Quem quiser voltar e quem gostar é só subir as escadas que a porta está sempre aberta”

Filipe Lourenço

Filipe acredita na importância dos passos pequenos. “Tem de ser mesmo devagarinho porque não temos ajudas de ninguém.” A primeira ação da qual se orgulha foram as pequenas intervenções ao espaço. Apesar de não serem muitas, todo o processo foi árduo e complicado. “Isto estava com um ar pesado”, começou por pintar paredes, mas não parou por aí. Recorda-se que passou um dia inteiro a limpar o chão de esfregão verde, “a caixa trazia 20 [embalagens] e gastei tudo, com o pezinho pusemos o chão limpinho”, acrescentado que no dia a seguir não podia de dores na perna direita. Luta “sem ajudas”. A coletividade teve de se reinventar para sobreviver. Não há apoios da Junta de Freguesia de Campanhã e da Câmara Municipal do Porto, afirma Filipe: “duas entidades que poderiam “botar” a mão para a gente equilibrar aqui as coisas.” 

Fotografias cedidas por Malmequeres de Noêda | Fotografia retirada por Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

A Junta de Freguesia de Campanhã aprovou um protocolo com os Malmequeres de Noêda. De 16 de dezembro de 2020 a 30 de setembro de 2021 foi estipulado um valor global anual de 450 euros. Este incentivo visa apoiar as despesas nas suas deslocações do Grupo de Dança Recreativa MK Dance para atividades socioculturais compostas por 35 crianças e jovens.

O executivo da Junta é hoje diferente e na passagem de testemunho, os protocolos com as associações foram encerrados. No dia 1 de janeiro de 2022 as condições permaneceram as mesmas no que respeita ao incentivo às associações.

Anuncio do Karaoke | Fotografia de Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

Filipe não esconde que há medidas de regularização que ainda precisam de ser feitas. A associação ainda não está inscrita na Segurança Social e a situação não está regularizada nas finanças. Realça a importância de ter estes assuntos em dia. “Entre este mês e o próximo, quero ficar com todos os documentos direitinhos porque podemos concorrer a várias coisas e não conseguimos porque não temos nada disso em ordem.” Mas há outro entrave a resolver. “O contabilista que tratava de todos os problemas da coletividade, ninguém sabe se ele morreu, se não morreu, se está vivo, se não está vivo e essa pessoa é que tem a [palavra] passe da coletividade.”

Sem baixar os braços e ainda a pensar na solução, acredita que “existe alguma coisa que se possa fazer para pôr isto em condições”. Para equilibrar as contas, no dia 30 de abril de 2022, estreou o Karaoke, uma dinâmica que chama sócios à sede para uma noite de sorrisos, convívio e união. Nem nesses momentos se esquece da sua missão: “ter tudo organizado, ter as despesas [resolvidas] que ficaram para trás na altura que tivemos fechados, deixar isto tudo em ordem”.

“O foco é pôr tudo em dia. Como presidente é o meu foco”

Filipe Lourenço

Por seu lado, Mário Gonçalves relata que “há 50 anos atrás os dinheiros não eram muitos e as pessoas iam todas para as coletividades.” Mesmo com as dificuldades económicas, o apoio da Câmara e da Junta não faltava. Um exemplo disto foram as obras que mudaram o espaço da sede e as atividades implementadas na altura. Ao longo destes anos, o desinteresse foi sendo semeado até ser o que é hoje. As entidades desinteressaram-se, “não dão dinheiro.” Para o ex-presidente é uma deceção “porque as coletividades tiravam muitos jovens da rua, agora vê-se jovens a andar à porrada e à facada, na minha altura não.” Antigamente organizavam passeios para as crianças visitarem vários locais, fretando camionetas para esse efeito, conta. “Enquanto a Câmara ajudou as coletividades ainda foram sobrevivendo, as Juntas não ajudam porque não podem, não recebem financiamento [das Câmaras] para esse fim, não há hipótese de sobrevivência.” 

“A Câmara Municipal do Porto foi a culpada de tirar certos e determinados apoios”

Mário Gonçalves

Na década de 50 do século XX, as pessoas iam à coletividade para ver televisão, aparelho que nasceu depois de Mário. O Grupo dos Rapazes e Raparigas “era uma fuga onde as pessoas passavam a maior parte do tempo para conviverem e se entreterem.” Este era o fim. Apesar de o dinheiro não ser felicidade, o companheirismo e união perderam-se. “Desde o ano 2000 perdeu-se o interesse”, justificando que a “Câmara deixou de dar apoios e as coletividades não sobrevivem só com os associados.” As quotas não permitem pagar todas as contas. As rendas são “caras” e, por isso, vão “abaixo”. Mário não mantém a esperança “se não houver quem pegue nisto, mais ano ou menos ano, vai acabar”, sublinha. 

Fotografias cedidas por Malmequeres de Noêda | Fotografia retirada por Mariana Venâncio e Guilherme Caroço

Futuro de Os Malmequeres: “A coletividade não deve morrer”

A nova geração deve ser responsável por levar a bom porto a coletividade. Para Mário existe uma lacuna que influencia a falta de interesse pela camada mais jovem. “A coletividade não pode dar nada à juventude porque não tem ninguém que dê algo à coletividade”, diz. 

Para ele, a Câmara Municipal do Porto é “poderosa”, por isso, a simples ação de investir na coletividade viria a motivar as pessoas que se dedicam à causa e consequentemente ter a capacidade de organizar atividades que atraiam os jovens para a associação. O espírito enraizado na sede “não deveria morrer porque é bom para a juventude, tira muita juventude da rua e se houver uma coletividade que tenha desporto, cultura e companheirismo é a coisa mais importante atualmente.”

“Quando chegar a altura em que seja dito que é preciso entregar as chaves, alto lá, vamos estar aqui para resolver a situação”

Mário Gonçalves
Fotografia cedida pela Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda

Mário tem muitos anos de casa e se for necessário “dar uma mão” também ajuda. O importante é não “deixar morrer a associação”, afirma com todas as forças. Para tal, há que colocar a coletividade na boca do povo. Apesar de ser conhecida na zona, o presidente admite que face a todas as adversidades, precisa de um “upzinhos”, alguém com capital para investir e com interesse. “Precisamos daqui de uma injeção, uma injeçãozinha de alguém que se interessava por isto, mas não está fácil.”

Logo da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda

Com benefícios. Sem benefícios. O futuro passa por chegar aos ouvidos de alguém. Que se fale da comunidade de Miraflor. Que se fale da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda. Que o passado e o presente continuem a fazer história. Todos deram um pouco de si a esta casa e certamente que a casa lhes deu algo. Que estas memórias perdurem no tempo, sejam relembradas e revividas num futuro próximo. 

Mariana Venâncio

Mariana Venâncio, 20 anos. Com muitos sonhos por realizar. Hoje, estou a concretizar mais um, estar no curso de Ciências da Comunicação. Ainda com sonhos pela frente, mas cada vez mais próxima de os realizar. Acreditar. Sempre! Gosto de sonhar. Faço parte da editoria de Saúde e é por lá que me quero aventurar!