O Associativismo na cidade do Porto

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O Associativismo na cidade do Porto

Interesses comuns juntam pessoas. Causas, crenças, liberdade, democracia e solidariedade são alguns dos pilares que sustentam uma associação. Com história, as associações têm vindo a perdurar em Portugal, porém correm o risco de se extinguir.

[Reportagem de Inês Matos e Mariana Azevedo]

Em Portugal a cultura da comunidade e da entreajuda está fortemente enraizada naqueles que fizeram o país crescer. “São incontáveis os grupos e associações que cresceram ao longo do século passado”, muitos deles com origem em pequenos grupos de amigos, como descreve o trabalho académico “A Associação Recreativa ‘Os Malmequeres de Noêda'” (2002) realizado por Paula Rocha, no âmbito da disciplina Técnicas de Animação Sociocultural I, na Universidade Portucalense Infante Dom Henrique. Atualmente estas “desempenham um papel verdadeiramente singular em termos sociais e culturais”.

As·so·ci·a·ti·vis·mo
“Uma associação é uma ‘união de pessoas físicas’, um grupo de indivíduos que se unem
num ‘espírito comum para a persecução de determinado fim’, ou consiste num ‘grupo de
pessoas privadas que se juntam, sem quaisquer fins lucrativos, no interesse público’. A União Europeia define-as como um ‘agrupamento de vários indivíduos que põem certos
bens ou serviços em comum com uma finalidade que exclui a procura de um lucro pessoal’”
Fonte: Associativismo e movimentos sociais. Um olhar sobre os movimentos associativos de 2017, em Portugal
de Célia Taborda

Regra geral, uma associação surge da vontade de “um grupo de pessoas com interesses comuns”, de divulgar uma causa ou ideia, sem daí retirarem lucros, como explica Célia Taborda, investigadora integrada do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior [CIPES] . Ao longo da década de 50 e 60, do século XX, as associações que surgem na cidade do Porto são formadas, maioritariamente, por pessoas que partilham realidades semelhantes. Segundo a investigadora, o associativismo guia-se, principalmente, por três princípios. Pelo princípio da liberdade, que permite às pessoas aderir e sair livremente destas associações, pelo princípio da democracia, onde o poder é equilibrado entre os seus membros, e pelo princípio da solidariedade, o mais importante do seu ponto de vista, já que “a solidariedade é um dos objetivos de qualquer associação”.

O que é feito das associações?

Nos últimos anos, o número de associações em Portugal tem vindo a aumentar. Dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística confirmam que, em 2020, existiam 1 889 associações relacionadas com práticas desportivas e recreativas. Porém, Miguel Santos, historiador da cidade do Porto, relata que nos “últimos 70 anos, o papel das associações tem-se vindo a diluir do papel das associações, e dos operários que delas fazem parte”. As consequências deste abandono refletem-se em vários domínios, um deles o associativismo.

A forte presença das comunidades tem vindo a desaparecer, e o historiador explica os
motivos: “Para além da sociedade em que vivemos e do domínio do setor terciário, há outros fatores exógenos que contribuíram para esta diluição. Um exemplo desses é a pandemia que nos afetou a todos”. A saída dos jovens destes espaços e a morte de muitos sócios colocam em xeque-mate à sobrevivência destas associações.

“A cidade do Porto tem de recuperar o associativismo através de outras atividades”

Miguel Santos

Segundo Miguel, as associações têm de alargar horizontes. É necessário “cativar outras pessoas, porque se não o fizer o associativismo, nomeadamente o cultural, poderá desaparecer”.

“É preciso pensar no futuro”

Miguel Santos

Atividades como as do Mira Forum vieram trazer uma lufada de ar fresco para a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda. Situados numa zona com “fraca” fama, o Mira Forum e o Espaço Mira acreditaram no potencial daquela localidade, daquelas pessoas, e fazendo renascer o sentimento de união e de entreajuda. Dos armazéns e galerias recuperados por Manuela Matos Monteiro e João Lafuente saíram novas atividades para a rua, não só dedicadas à própria associação mas também às pessoas.

Dos onze armazéns localizados na Rua de Miraflor, dois pertencem aos fotógrafos Manuela Matos Monteiro e João Lafuente, onde nasceram duas galerias dedicadas à fotografia: Espaço MIRA e o MIRA FORUM. A consulta dos arquivos localiza a construção destes armazéns entre 1908 e 1917, servindo o comércio feito através da estação de Campanhã.
Uma das preocupações foi recuperar os dois lugares respeitando a sua traça e materiais de origem sendo hoje considerados exemplos de uma reabilitação bem conseguida. A iniciativa dos dois fotógrafos contaminou outras vontades e, neste momento, os onze armazéns estão ocupados na sua maioria a pessoas relacionadas com as artes.
Aqui realizam-se exposições, apresentações e lançamentos de livros, conferências, debates e tertúlias, percursos e serões fotográficos, concertos, peças de teatro, espetáculos de dança, entre outras atividades
Fonte: MIRA FORUM

Quais são os rumos que devemos colocar no associativismo? Como é que podemos atrair
proletários quando há cada vez menos operários na cidade do Porto?

Miguel Santos

Os jovens desempenham um papel fundamental, segundo o historiador. Os MK dance são o grupo de dança que utiliza a sede da associação para fazer os seus ensaios. Fundado em 2013, já viu miúdos crescer e tomar novos rumos, mas aqueles que ficam são os mais importantes.

“Se criarmos uma rede de associações formamos uma grande comunidade, que podem dinamizar ações de maior envergadura cativando um público jovem, e isso é essencial”, destaca Miguel Santos. Existe a necessidade de serem criadas novas estratégias para atrair mais jovens.

“As associações vão perdurar no tempo, não apenas na memória coletiva da cidade”

Para que estas associações sejam lembradas, não só pelas pessoas que as sustentam, é
necessário, segundo Miguel Santos, que se guarde todo o tipo de documentação a elas relacionada como por exemplo, acervos documentais, panfletos, brochuras, cartazes, atas de reuniões e, até
mesmo, as publicações nas redes sociais.

Daqui a vinte anos, estas questões certamente vão ser colocadas.

Miguel Santos
Panfleto para promoção da peça de teatro “Quem o alheio veste… na praça se despe” (1957)
Documento cedido pela Associação Recreativa Malmequeres de Noêda

No futuro existirão “elementos que permitem estabelecer, não só qual foi o desenvolvimento da atividade cultural no seio da associação, mas sobretudo as várias pontes, os vários elos de ligação que fizeram com outras comunidades, com outras instituições existentes num espaço geográfico próximo.”
Ainda assim, a documentação existente, no caso da Associação Malmequeres de Noêda, é muito pouca. Miguel Santos afirma que “é muito difícil encontrar um espólio ou documental que apenas esteja correlacionado sobre a associação da Noêda”.

O passado do associativismo

A história do associativismo na cidade do Porto transporta-nos para os séculos XVIII e XIX, para o auge da indústria em Portugal. As associações assumiram a sua primeira forma nas revoluções burguesas. A partir de 1851, Portugal, perante um cenário de estabilidade política, começou a investir em infraestruturas, como estradas e caminhos de ferro. É aqui que surgem as primeiras indústrias, e com elas, um surto de migrações para a cidade.

Gráfico elaborado por Mariana Azevedo
Num período de 36 anos, de 1864 a 1900, houve um aumento de 81 mil habitantes na cidade do Porto. Entre 1878 e 1890, período crucial de desenvolvimento do Porto, cerca de 25 mil dos 33 mil novos habitantes da cidade neste período eram imigrantes. Em 1890, um terço da população residente consistia em pessoas de origem rural que tinham vindo trabalhar para a cidade.
Fonte: “A habitação popular no século XIX – características morfológicas, a transmissão de modelos: as ilhas do Porto e os cortiços do Rio de Janeiro” de Manuel C. Teixeira

As migrações para o ambiente urbano potenciaram o aumento das diferenças sociais na cidade do Porto, começando a ser notória a diferença entre bairros ricos, dos burgueses, e bairros populares, dos operários. É neste contexto que surge um novo grupo: o dos operários, que trabalhavam nas fábricas. 

O facto de muitos destes trabalhadores regressarem ao campo no final do dia levou a que este grupo demorasse mais tempo a criar uma consciência de classe unida. A solidariedade familiar e comunitária que existia no campo, não era uma realidade na cidade. Para sobreviverem tinham de conquistar o seu lugar na coletividade.

Estar na cidade implicava trabalhar.

Célia Taborda, em “A Alteração do Espaço e Quotidiano Citadino: O Operariado do Porto Oitocentista”

A solidariedade familiar e comunitária que existia no campo, não era uma realidade na cidade. Para sobreviverem tinham de conquistar o seu lugar na coletividade. As indústrias tinham poucas condições, sem higiene e proteção. Os operários não tinham garantias de trabalho nem direito à associação.
Após um dia de trabalho, tinham de voltar para as precárias habitações que possuíam. É aqui que começam a surgir as chamadas “ilhas”, aglomerados residenciais populares criados pelas classes médias baixas. Estas, apesar de acessíveis aos trabalhadores fabris, não possuíam condições, consideradas espaços de degradação moral.

Segundo Célia Taborda, “eram construções de muito baixa qualidade, sem ventilação, água, eletricidade ou esgotos, e que tinham ao fundo do quintal sanitários comuns a todos os habitantes da ‘ilha’, criando uma intimidade partilhada”.

“As “ilhas” ao mesmo tempo que promoviam estes liames de familiaridade e de acolhimento para com os seus semelhantes tornavam-se hostis com os de fora, com os estranhos, formando estes locais coletivos espaços fechados sobre si mesmos, gerando identidades próprias, baseadas nos hábitos e memórias partilhadas por cada comunidade.”

Célia Taborda, em “A Alteração do Espaço e Quotidiano Citadino: O Operariado do Porto Oitocentista”
FONTE: Demographia e Hygiene da Cidade do Porto: Clima, População, Mortalidade, de
Ricardo Jorge

Apesar de não influenciarem diretamente o surgimento de associações, as “ilhas” contribuíram para a construção de um espírito de união e solidariedade entre as pessoas que lá viviam. “A ilha forma uma consciência de classe, ou seja, o operariado começa a perceber-se como um grupo distinto dos outros e como um grupo que tem alguma força”, afirma Célia Taborda.

Ainda assim, o desenvolvimento industrial permitiu que alguns destes trabalhadores sobressaíssem a favor da luta operária, organizando comícios e criando, até mesmo, um parlamento operário. “As primeiras associações de trabalhadores eram associações de ofícios, que se juntaram com objectivos de carácter cultural e de apoio mútuo”, explica Célia Taborda no seu artigo “A alteração do espaço e quotidiano citadino:o operariado do Porto oitocentista”. Cada associação defendia o seu ofício, não tendo um centro unificador.
É em 1853 que é criado “o Centro Promotor de Melhoramento das Classes Laboriosas”, com o objetivo de promover o associativismo de todo o operariado lisboeta. A associação Fraternidade Operária surgiu mais tarde, em 1872, e veio dar autonomia aos operários, criando novos estatutos, ideologicamente socialistas. A adesão operária foi de tamanha dimensão que foi aberta uma filial no Porto.

Contudo, o surto de greves que se fez sentir em 1873 mostrou que o movimento operário continuava fragmentado, “havendo várias associações que competiam entre si”, afirma a investigadora.

Imagem elaborada por Mariana Azevedo

Esta organização assustou as elites. Os operários tornam-se “demasiado visíveis”. Aqui, Célia Taborda explica que “já começavam a ter uma identidade comum, a ter consciência do “nós””, demonstrando o seu mal-estar pela pobreza em que viviam. 

As desigualdades sociais, o capitalismo e os “melhoramentos materiais” contribuíram para a construção de uma identidade operária.

Ao tomarem consciência de si como classe despertaram para a recusa às desigualdades e ao estigma, surgindo a conflitualidade social que se consubstanciou em manifestações  e greves, mostrando, assim, o lado invisível da sociedade.

Célia Taborda, em “A Alteração do Espaço e Quotidiano Citadino: O Operariado do Porto Oitocentista”

Em 1921, o associativismo atingiu o auge, contando com cerca de 688 associações e 615.000 associados.

Fotografia fornecida por Associação Recreativa Malmequeres de Noêda
Fotografia fornecida por Associação Recreativa Malmequeres de Noêda

O Estado Novo e as Associações

Segundo Miguel Santos, Portugal, durante muitos anos “teve uma grande taxa de iliteracia, muitas pessoas não sabiam ler nem escrever, não sabiam o que é que se passava no mundo”. E as associações surgem como um espaço “onde se podia saber um pouco” daquilo que se passava em Portugal e no mundo.

Num contexto de proletariado, era “uma forma das pessoas, nos seus diversos ofícios, poderem ter uma voz na sociedade, e além disso poderem despender o seu tempo noutras funções que não apenas a laboral”, explica o historiador.

Hoje a liberdade de expressão é uma realidade que não nos escapa. No tempo em que associações como os Malmequeres de Noêda nasceram, em 1952, “não era assim, e por isso é que são tão importantes estas associações”. Estas permitiriam às pessoas tomar conhecimento de atividades culturais, fomentar amizades e partilharem objetivos comuns. 

Eram um pequeno espaço, um pequeno oásis de liberdade onde se podiam debater a uma partilha de opiniões, um pequeno debate.

Miguel Santos, Historiador
Estatutos da Associação Recreativa Malmequeres de Noêda
Documento cedido pela Associação Recreativa Malmequeres de Noêda

Era uma forma das pessoas se unirem e terem uma voz mais ativa, num contexto de repressão política. “Havia associações recreativas no Estado Novo mas essas associações eram enquadradas pelo Estado, ou seja, o Estado Novo tentava controlá-las”, afirma Célia Taborda.

A Associação Recreativa Malmequeres de Noêda foi criada por um grupo de amigos que se juntavam para brincar no Largo de Noêda.

Algo que começou como uma brincadeira tornou-se mais sério a partir de 1961, aliás uma época marcada pela repressão do Estado Novo e pela Policia Internacional e de Defesa do Estado [PIDE], e onde foram criados os “regulamentos, os estatutos e a partir daí ficamos oficialmente como associação e as coisas começaram a modificar um bocadinho”, explica Artur Costa, atual sócio n.º 1 da associação. 

Com a Revolução do 25 de Abril de 1974, foram criadas todo o tipo de associações: “profissionais, sindicatos, desportivas, voluntárias, de moradores, culturais e recreativas, defesa do património, dos consumidores, de estudantes, de proteção ambiental, de apoio à vítima, entre tantas outras”, explica Célia Taborda.

Passados 48 anos desde a Revolução dos Cravos, continuam a existir milhares de associações de todos os tipos. A Associação dos Malmequeres de Noêda, atualmente, permanece como fundamental para muitos dos seus sócios.

Mariana Azevedo

Sou a Mariana Azevedo e tenho 20 anos. Sou colaboradora da editoria de desporto do #infomedia. Ingressei no curso de Ciências da Comunicação por ser a combinação perfeita de dois mundos que tanto aprecio, comunicar e o desporto. O desporto sempre esteve presente desde muito pequena e por isso, pretendo dar voz àquelas modalidades que não têm o destaque merecido nacionalmente.