Autismo – Do espetro à realidade das terapias e do ensino em Portugal

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Autismo – Do espetro à realidade das terapias e do ensino em Portugal

[Texto de Diana Morais Ferreira]

Duas crianças, o testemunho de duas mães sobre o que é viver o autismo, as explicações de uma psicóloga sobre a doença e a visão de uma professora, ajudam-nos a entender um pouco mais o espetro de autismo e a conhecer Luís Carlos e Salvador.

A ingenuidade e a ternura são duas características que assentam tanto a Luís Carlos como a Salvador. Com 7 e 10 anos, respetivamente, são crianças meigas, carinhosas e que não veem maldade no mundo. Além destas características em comum, Luís Carlos e Salvador foram diagnosticados com Perturbação do Espetro do Autismo (PEA).

Sendo o autismo tão complexo e por não se encaixar num só “ponto”, falamos em espetro, dado que há diferentes gravidades e complexidades, utilizando a nomenclatura Perturbação do Espetro do Autismo (PEA). A psicóloga Maria Campos, ajuda-nos a esclarecer alguns conceitos, e explica que “no espetro de autismo existe comprometimentos nas áreas da comunicação social e da sociabilização e manifestam padrões de comportamentos restritivos e repetitivos. Isto de forma global, porque cada pessoa tem as suas idiossincrasias. É importante reter que estes défices ou comprometimentos devem manifestar-se em mais do que um contexto”.

 “O autismo é uma condição, a pessoa nasce autista e é para sempre autista. É como uma característica que os torna diferente dos demais. A neurodiversidade explica isso extremamente bem. Somos todos cerebralmente diferentes uns dos outros”, reflete Andreia Neves dos Santos, mãe de Salvador. Andreia é mãe de quatro filhos, sendo que Salvador é o primeiro e único menino. Além disso, é titular de uma página no Instagram, onde partilha um pouco da sua experiencia enquanto mãe e onde conta muitas das suas peripécias em família – @autismo.e_depois, é o nome da página de Andreia.

Salvador e a família. – Fotografia cedida pela mãe, Andreia Neves dos Santos

Maria Campos vai mais além, e acrescenta que o autismo é uma perturbação do neurodesenvolvimento, ou seja, que tem o seu início no período de desenvolvimento. Explica também que ainda não existe um consenso sobre as causas que levam ao surgimento do autismo, tornando-o ainda mais complexo. No entanto, ressalta que é uma patologia que condiciona e compromete o dia-a-dia da criança ou do adulto e que é uma doença crónica. Apesar disso, explica que dependendo do grau e da sintomatologia apresentada, dos comprometimentos e de uma intervenção adequada, pode existir uma maior integração no meio social.

 “O autismo é só uma forma diferente de sentir o mundo”, a frase é dita por Sílvia Raquel, mãe de Luís Carlos. Filho único, dono de um carinho sem fim e um menino que adora afeto, Luís Carlos não entende as injustiças do mundo e não encontra maldade em nada.

Luís Carlos – Fotografia cedida pela mãe, Sílvia Raquel

A psicóloga explica que as características de alguém com PEA são a falta de interação social, podendo ou não comunicar verbalmente e que, normalmente, apresentam comportamentos estereotipados como: abanar as mãos, repetir nomes de jogadores do Clube X, no ano X, por exemplo. Maria adianta que estas características dependem do grau e da gravidade, sendo então os défices maiores ou menores.

“É importante referir que uma pessoa com PEA não revela aptidões socio-emocionais, isto é, ela não percebe o que sentem nem o que o outro sente. Em níveis mais funcionais, a intervenção psicológica pode incidir sobre estratégias para integração social, tentando definir conversações, consciencialização emocional.”, acrescenta ainda Maria Campos.

Salvador foi diagnosticado com PEA aos 3 anos numa consulta de pediatria do desenvolvimento. “O Salvador encontra-se dentro do que se chama perturbação do espectro autista segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição (DSM5).” – explica Andreia, mãe de Salvador.

 Já o diagnóstico de Luís Carlos passou por vários médicos desde os 2 anos de idade e aos 7 anos foi lhe atribuído o diagnóstico exato. “O diagnóstico exato foi-lhe dado aos 7 anos feito por duas psicólogas, uma especialista em PEA e outra em Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção (PHDA) numa soma de 6 sessões de avaliação e muitos inquéritos preenchidos.” – explica Sílvia, mãe de Luís Carlos.

O diagnóstico de uma Perturbação do Espetro do Autismo está dependente de uma avaliação a várias modalidades. “Por exemplo, se uma criança não comunica, é necessário avaliar se há comprometimentos na audição.” – explica a psicóloga.

A atenção dos pais é sempre fulcral para qualquer problema que o bebé ou criança possa ter, no entanto, é sempre necessário terem conhecimento sobre aquilo a que devem estar mais atentos para que nada passe despercebido. Maria Campos conta que o primeiro sinal de alerta parte sempre por parte dos pais, estes que observam a criança diariamente e que têm sempre uma atenção redobrada, acabam por perceber que a criança apresenta determinados comportamentos que não são comuns. Quando isto acontece é importante que recorram à medicina clínica, a uma consulta de desenvolvimento ou ao pedopsiquiatra, atendendo sempre à sintomatologia apresentada e à gravidade da mesma.

“No caso concreto do psicólogo, o despiste e a avaliação passa pela aplicação de testes e escalas psicológicas próprias para o efeito, muitas já aferidas para a população portuguesa, que podem auxiliar no diagnóstico e, sobretudo, nas áreas que se encontram mais comprometidas.  Para o diagnóstico diferencial e para descartar comorbidades, deve-se avaliar o desenvolvimento psicomotor e intelectual da criança, perceber o grau de funcionalidade, avaliar a linguagem e o perfil sensorial. Os testes devem ser adaptados à idade da pessoa e tendo em conta o funcionamento da mesma.” – explica a psicóloga Maria Campos e acrescenta que há fatores que dificultam ou que condicionam o mesmo e que todos estes aspetos devem ser tidos em conta.

“Há muita falta de informação em relação ao acesso a apoio sociais por parte dos pais. Os apoios são parcos mas ajudam em certa medida.”

Andreia Neves dos Santos

Questionadas sobre terapias e os acessos às mesmas, tanto Andreia como Sílvia falam de existir ainda alguma dificuldade neste aspeto.

Andreia conta que o Salvador, neste momento, faz terapia da fala, psicomotricidade, snoezelen e psicologia. E refere que em Portugal existe muita falta de informação por parte dos pais em relação aos acessos e apoios sociais para terapias. No entanto, diz que estes apoios são escassos, mas que de certa forma ajudam.

A mãe de Luís Carlos conta que este faz terapia ocupacional e que irá começar com psicologia para aprender a lidar com a ansiedade. Sílvia explica que o filho é acompanhado no particular porque o acesso a vagas publicas é muito demorado e que todo o tempo é importante. “Todo o tempo para uma criança atípica vale ouro. Mas sei que há apoios tanto nas terapias como em pedopsiquiatria, mas como disse, o acesso e muito demorado.” – refere Sílvia.

A psicóloga explica que atendendo à sintomatologia apresentada, a intervenção deve ser sempre interdisciplinar, envolvendo diferentes terapias, como: psicologia, psiquiatria, terapia da fala, psicomotricidade/terapia ocupacional.  “Sobretudo nesta psicopatologia é importante existir estimulação a vários domínios, inclusive medicamentoso se existir essa necessidade. Existem também as medidas com componente pedagógica, mas falo sobre elas na próxima questão.”, acrescenta.

 Ao nível da psicologia, de acordo com Maria Campos, o objetivo central é reduzir comportamentos disfuncionais, caso existam e fazer com que a criança ou o adulto seja o mais funcional possível. Apesar disto, os objetivos mais específicos estão dependentes das áreas em défice, nomeadamente, a linguagem, a atenção e a funcionalidade. O tipo de intervenção depende muito da funcionalidade das pessoas e dos seus comportamentos, podendo incidir a nível comportamental, a nível educacional e a nível do desenvolvimento.

“Além destas terapias, pode ser importante inserir outras, nomeadamente, musicoterapia, terapia assistida com animais, medicina alternativa. Reforço, uma vez mais, que depende da criança com quem estejamos a trabalhar. Não há um padrão de tratamento e, muitas vezes, funciona por tentativa-erro até percebermos o que funciona melhor ou o que traz mais ganhos terapêuticos com aquela criança/adulto.” – acrescenta a psicóloga.

“As escolas não estão preparadas nem os profissionais estão. As escolas estão programadas como um computador, quando um componente sai do sítio é um grande problema.”

Sílvia Raquel

Luís Carlos, neste momento, frequenta o 2º ano do ensino básico, numa escola pública em Santo Tirso e na opinião da mãe, nem as escolas, nem os profissionais estão preparados para estimularem e acompanharem crianças com PEA. Luís Carlos é uma criança irrequieta e barulhenta dentro da sala, tem dias em que se recusa a trabalhar, principalmente quando lhe apresentam muito trabalho de uma vez só, embora no recreio não seja assim. A mãe conta que no recreio, Luís Carlos, não tem muitos amigos, apenas um ou dois, e que tem alturas em que prefere ficar quieto no seu canto a ver os outros meninos brincarem.

Sílvia conta a má experiência do Luís Carlos enquanto este frequentava o Jardim de Infância, “foi um grande problema, nenhuma educadora conseguia lidar com ele, sempre queixas, sempre a colocá-lo de parte, vinham-me dizer que gritavam com ele e ele gritava por 30 min sem parar”. “No 1° ano apesar de ele aprender bem, a professora enfrentava-o muito, causando irritação nele, crises imensas, queixas todos os dias de mau comportamento”, relata Sílvia. No entanto, neste 2º ano as coisas estão a correr bem e o novo professor sabe como lidar com Luís Carlos, “deixa-o relaxado para trabalhar, quando vê que está agitado manda-o dar uma volta ao recinto da escola para ele vir mais calmo, as crises abrandaram do 80 para o 8”.

Salvador mudou de escola este ano letivo e atualmente frequenta a escola básica de Sampaio, em Sesimbra. A mãe conta que as primeiras semanas foram de adaptação, tanto às pessoas, como aos métodos e aos espaços, contudo, neste momento já está mais estável nesse ponto apesar de manter alguma ansiedade ao longo do dia. “A antecipação do momento seguinte do seu dia é uma constante”, acrescenta Andreia.

Andreia acredita que ainda há muito trabalho a fazer a nível de ensino e que são precisos mais recursos humanos para que todas as crianças possam ter o melhor acompanhamento. Conta ainda que nunca sentiu que algum professor ou alguma escola não estivesse a conseguir acompanhar o Salvador, mas que tem conhecimento de relatos de outros pais que se mostram descontentes neste aspeto.

Fotografia cedida pela psicóloga Maria Campos

Raquel Machado, professora do pré-escolar e do 1º ciclo do Ensino Básico, trabalha numa escola em Lisboa como professora de Ensino Especial e refere que as crianças com autismo são todas muito diferentes umas das outras. Por este motivo, explica ser necessário que o professor seja capaz de observar e identificar as necessidades especificas dos seus alunos que desta forma possa realizar as devidas adaptações, quer das atividades quer do currículo.

A professora, com uma pós-graduação em Educação Especial Multideficiência e Problemas de Cognição, ressalta que a aprendizagem para estes alunos deve ser algo muito motivador, diversificado e que recorra ao uso de materiais manipuláveis, acrescenta também que os professores, devem motivar os alunos para a aprendizagem.

“O ano letivo passado tive um aluno com autismo e este ano tenho uma aluna, ambos completamente diferentes. Um não conseguia acompanhar o currículo de 4° ano, então as atividades incidiram nos conteúdos fundamentais para a vida prática do mesmo, a Matemática e o Português surgiam com situações úteis para este aluno viver em sociedade e de forma autónoma. A menina deste ano, acompanha o currículo, o meu papel é fornecer suportes para que esta se sinta confiante em tudo o que faz e ajudar a mesma no reforço das aprendizagens, sempre que possível através de materiais de manipulação.” – conta a professora um pouco da sua experiência.

Quanto à preparação das escolas e dos professores no acompanhamento de crianças diagnosticadas com PEA, Raquel acredita que os professores estejam preparados, uma vez que existem diversas formas de se sentirem informados e atualizados. Porém, considera que as escolas nem sempre estão e que a contratação de profissionais para as escolas, por parte do Ministério não é eficaz. “Um professor com 20 alunos, e com alunos com graus de autismo severos ou alunos com trissomia 21, não consegue dar resposta a todos, inclusive a estes casos.”, – evidencia a professora e acrescenta que a contratação de mais profissionais de educação seria a solução para um melhor acompanhamento.

Segundo Maria Campos, todo o trabalho realizado com a criança em meio escolar deve ser estimulado e reforçado no contexto casa. Se não existir este trabalho conjunto entre os dois contextos onde a criança está incluída, os ganhos terapêuticos podem até não acontecer ou serem mais graduais e instáveis. A psicóloga ressalva que esta articulação é muito importante, privilegiando uma postura empática com todos os que se envolvem com a criança.

Em Portugal o autismo ainda é visto como uma perturbação mal-entendida e as pessoas tendem a associar a deficiências. Sílvia sente que este problema é desvalorizado pelos profissionais de saúde, “para muitos pediatras um atraso na fala é normal, não brincar é normal e isto é preocupante”. Um assunto que é ainda tabu e que leva a que alguns pais tenham receio de expor a situação do seu filho.

Aos olhos de uma mãe são muitas as coisas que faltam em Portugal para o autismo, e aos olhos de todos, muito falta fazer para que deixe de ser estigma.

Se quiser saber mais sobre autismo procure: https://vencerautismo.org/autismo/
Vencer Autismo é uma instituição em Portugal que tem como objetivo reduzir o estigma negativo que ainda existe à volta da doença. A instituição tem vindo a fornecer conhecimento, técnicas e estratégias para todas as pessoas que lidem com o autismo de perto para que o possam entender melhor e que se tornem parte da solução.