Azul: do lápis censor à tinta censurada
- Diana Loureiro
- 13/01/2022
- Arte e Culturas Atualidade Saúde
A nova regulamentação que visa controlar os pigmentos utilizados nas tintas de tatuagem começa a preocupar profissionais da área por toda a Europa. Em causa, estão os pigmentos “Azul 15” e “Verde 7”, que passaram a ser proibidos, sem substituição possível à vista, a partir do dia 4 de janeiro deste ano. No entanto, não existem estudos científicos que comprovem a correlação direta entre o ato de tatuar e o aparecimento de doenças do foro cancerígeno.
[Texto de Diana Loureiro e Diogo de Sousa]
Na movimentada rua de Cedofeita, no coração do Porto, encontra-se a loja de tatuagens mais antiga de Portugal. Passando a porta de vidro que claramente marca a Spider Tattoos, abraça-nos uma sala com paredes cujo branco se vê pouco: decoradas com diversas ilustrações, molduras, espelhos e material alusivo à tatuagem e ao bodypiercing. O som da música ambiente, quase sempre rock, aliado ao barulho das máquinas de tatuagem, retira-nos da rua e transporta-nos para um novo mundo. No entanto, os 33 anos que marcarão a loja neste novo ano que se inicia, poderão estar em risco.
A regulamentação, que entrou em vigor no dia 4 de janeiro de 2022, põe agora em causa o uso de mais de 4 mil produtos químicos perigosos, não regulamentados anteriormente, referentes ao uso de tintas para tatuagem, que passam agora a ser ilegais.
De entre os produtos proibidos, destacam-se vários ingredientes como o álcool ou o isopropanol. A formalização deste regulamento entra assim em vigor ao abrigo do Registo, Avaliação, Autorização e Restrição de Substâncias Químicas (em inglês Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals – REACH) – um regulamento comunitário criado pela União Europeia (UE), a 18 de dezembro de 2006, que visa um conjunto de leis das quais um dos principais objetivos é a gestão e a preservação da eficácia da regulamentação referente à produção de pigmentos utilizados nas tintas para fins de tatuagem.
Segundo Mark Blainey, especialista da Agência Europeia de Produtos Químicos (em inglês European Chemicals Agency – ECHA), a intenção não é a de prejudicar o negócio dos vários tatuadores europeus, mas sim torná-lo o mais seguro possível. Num comunicado para a imprensa, admitiu ainda que as ilegalizações referentes a estes produtos têm como máxima a da proteção do cidadão europeu perante os impactos nocivos a nível da saúde que estes produtos podem trazer. Adianta ainda que a ilegalização dos mesmos passa também pelos impactos que a indústria tatuadora produz para o ecossistema europeu, bem como o mundial.
Contudo, pesquisas científicas até agora realizadas sobre se as tintas poderiam despoletar, ou não, doenças do foro cancerígeno, permanecem inconclusivas. Não existem quaisquer ligações diretas entre o ato de tatuar e o ato de desenvolver infecções de pele, como alergias ou, por defeito imunológico, células cancerígenas. Um estudo realizado em 2012, afirmou que qualquer tipo de associação entre o ato de desenvolver cancro de pele e o ato de tatuar terão de ser considerados como meras coincidências. Outro estudo mais recente de 2016 afirmou que as reações adversas são relativamente raras, com tendência a serem imprevisíveis e normalmente provocadas pelo sistema imunológico ou por infecções de pele.
Apesar dos dois anos extra concedidos para os fornecedores europeus encontrarem alternativas para os pigmentos “Azul 15” e “Verde 7”, a solução está longe de ser alcançada. Nem a petição assinada por 170 mil pessoas conseguiu atrasar esta regulamentação. Os tatuadores afirmam sentir-se inseguros e desorientados quanto a este novo tema, não só pelas apertadas restrições sanitárias impostas por cada país, devido à COVID-19, mas também pela agravante do novo decreto imposto sobre o continente europeu.
Kisto, nome artístico, começou a tatuar profissionalmente há 14 anos e sempre o fez na Spider Tattoos. Marcado pelo gosto pelo desenho durante toda a vida, viu na arte da indução de tinta em pele uma forma de fazer aquilo que gosta sem ter de depender de mais ninguém. Sobre a regulamentação REACH, confessa achar muito cedo para perceber como tudo vai funcionar. “Sinceramente em Portugal ainda nem sequer existe uma legislação específica, não percebemos como será aplicado”, admite, “quem é que vai fazer a fiscalização? A ASAE? A DGS?”, questiona, “é tudo muito pouco claro”.
Antigamente, podiam-se encontrar tintas com metais como base, como o vermelho feito a partir de óxido de ferro e mercúrio, que provocavam reações alérgicas e, por isso mesmo, foram gradualmente afastadas do mercado. Hoje, a regulamentação parece-lhe pouco clara e sem sentido. “Pelo que tenho lido, não são detectadas consequências nem relações diretas”, afirma o profissional. “Parece-me um jogo de mercado, da mesma forma que já aconteceu noutros países, em Espanha por exemplo, em que criaram obstáculos à homologação de tintas que, na prática, só servem para favorecer uma ou duas empresas que ficam com o monopólio”, declara, com um tom de frustração e desilusão que se lê na voz e nos olhos. No que toca a este assunto, acrescenta ainda que se fosse uma preocupação e houvesse dados objetivos de pigmentos concretos que pudessem provocar algum problema, seria fácil encontrar uma solução, “parece-me apenas uma questão burocrática”.
Em Portugal, houve várias tentativas de legislação “que não faziam sentido”, com “pareceres técnicos completamente desfasados da realidade”, recorda, “falavam em esterilizar cateteres e agulhas e tudo isso é material descartável”. Neste país à beira-mar plantado, apesar de não haver legislação específica, a área da tatuagem é uma área com “auto-regulação, às vezes em excesso”, remata o tatuador, “há uma série de práticas que toda a gente tem que não precisam de ser inspecionadas formalmente, na maior parte dos casos”.
Proprietário da Inktoxica, também no Porto, Oscar Gomes traz, no currículo, 14 anos de experiência como tatuador. Nos últimos dez anos, teve dois casos de reação alérgica a pigmentos de tom vermelho. “São casos isolados”, explica, “normalmente de fácil resolução com anti-histamínico”. Na pesquisa que fez sobre pigmentos, não encontrou qualquer prova científica de que estes pudessem causar problemas para a pele. “Os pigmentos atuais vão deixar de ser permitidos na Europa”, conta o tatuador, “mais uma vez a fundamentação é a de que alguns componentes dos pigmentos “podem” ser nocivos para o nosso organismo, cabe aos fabricantes provar que não”.
“Isto é uma coisa muito mal estudada, não faz sentido nenhum, os estudos foram todos inconclusivos”
Filipe Gil
Ainda a norte do rio Tejo, em Odivelas, encontra-se a 893 Tattoos, loja de tatuagens de Filipe Gil, que faz parte da direção da Associação Portuguesa de Profissionais de Tattoo e Bodypiercing. Com 16 anos de experiência profissional, já se tinha aventurado antes a marcar o corpo dos amigos, quando pegou seriamente na máquina de tatuar, pela primeira vez, para corrigir a tatuagem de uma estrela náutica no corpo da namorada, e aí descobriu a vocação.
Filipe Gil garante que “isto é uma coisa muito mal estudada, não faz sentido nenhum, os estudos foram todos inconclusivos”. “Se me falarem deste azul”, referindo-se ao azul que tem no braço, “este é um azul tradicional, eu sei que tem metal e que pode trazer consequências, mas os azuis de que estamos a falar agora são todos feitos à base de produtos naturais, e o natural está feito para o corpo absorver”. O tatuador explica também que a cor preta é a cor mais difícil de desaparecer naturalmente, por ser a única à base de carbono, sendo que todas as outras vão buscar a sua base às plantas.
Perplexo com toda a situação e entre alguns risos, o proprietário da 893 Tattoos assegura que a nova regulamentação será uma porta de abertura para ainda menos controlo. “O pessoal agarra, faz um armário, mete lá “tintas de artista” e só trabalha com aquilo, no armário até pode estar escrito “não usar para tatuagens”, afirma em tom jocoso. Faz ainda uma alusão ao fruto proibido, que poderá acontecer também com estes pigmentos. “Na Dinamarca, por exemplo, é proibido o ato de fazer tatuagens nas mãos, no pescoço, na cara e na cabeça, não é proibido ter, mas sim o ato de tatuar”, conta, “se apanharem um tatuador a tatuar essa área em flagrante, a multa é enorme. Curiosamente, na Dinamarca é onde se vê mais pessoas com tatuagens nesse sítio, porque o facto de ser proibido leva as pessoas a quererem mais, é o ato de rebeldia, de ir contra o sistema, de ser diferente”, remata o tatuador.
Após 35 anos de experiência na área, Filomena Azevedo, diretora dos serviços de dermatologia e venereologia do Hospital de São João do Porto, afirma nunca ter observado um utente com problemas graves, a nível dermatológico, com consequências nefastas derivadas do excesso de tatuagens. O efeito secundário que mais frequentemente vê são as reações alérgicas encontradas no local da tatuagem. Reconhece também que estas pequenas alergias ocorrem pelo uso de pigmentos vermelhos e poderão ser difíceis de resolver. Em casos extremos, podem levar à necessidade de remoção da tatuagem.
A médica faz ainda menção às atuais diretrizes europeias relativas aos pigmentos usados e a sua ligação com doenças do foro cancerígeno. Relembra que existem “riscos mais sérios” relativamente a certos produtos usados para o desenvolvimento da pigmentação, afirmando que a Comissão Europeia regula os “produtos usados, impedindo o uso nomeadamente de substâncias cancerígenas”. Contudo as “tatuagens mais antigas, ou feitas por amadores, ou em países onde não há controlo adequado, podem não garantir essa segurança”.
“Qualquer prática deste género pode ter consequências”, reitera Kisto da Spider Tattoos, “mas geralmente tem a ver com os cuidados posteriores que as pessoas devem ter”. Estando a pele mais desprotegida e fragilizada, se não for tratada com as condições necessárias durante o período de cicatrização, que ocorre no primeiro mês e meio, poderá haver consequências, “mas são exteriores à prática da tatuagem”.
Sobre a possibilidade de as tatuagens poderem trazer malefícios ao corpo, Filipe Gil afirma que “há profissionais e profissionais”. “Eu não vou passar por cima de um sinal que esteja com relevo ou com uma pigmentação diferente da normal”, garante, “claro que uma pessoa pode apanhar outro tatuador que vai e passa aquilo por cima.” No que toca a sinais, o assunto não é brincadeira, “os sinais são células cancerígenas que, a dado ponto, pararam de evoluir e, se mexermos nisso, há uma forte probabilidade de voltar a desencadear o crescimento”.
Dos mestres da arte de tatuar para os tatuados
Encantada pelo mundo da tatuagem desde tenra idade, Amélia Susana tem 51 anos, mas fez a sua primeira tatuagem ainda adolescente. “Fiz, tinha eu uns quinze ou dezasseis anos”, conta, “fi-la no meu quarto ao som da Start me up dos Rolling Stones”, referindo-se ao trevo que marcou em si própria, em 1985, como quem desejaria boa sorte para as tatuagens que se iriam seguir.
Cativada pela história que cada tatuagem poderá ter por trás, considera que estas trazem carácter e embelezam a compleição física. No corpo, traz 30 exemplares desta arte, que ocupam cerca de 40% da pele. Do que de saúde se trata, nunca sentiu qualquer consequência resultante deste processo, mas confessa já ter removido algumas nas mãos e punho. “Tirei porque não tinham nenhum jeito e, derivado ao meu trabalho, decidi remover”, admite, “foi há muitos anos e foi tipo cirurgia”.
Mauro Coelho é designer gráfico e ilustrador e, nos seus tempos livres, responsável pela guitarra-baixo na banda Grito!, do Porto. O que o cativa no mundo da tatuagem é “a arte em si e o facto de poder carregar essa mesma arte”. “É uma espécie de armadura”, explica o designer de 36 anos, “um memorial ao que é importante para mim, ao ponto de riscar na pele”.
A sua primeira tatuagem foi feita em 2004, mas desde então já tem duas mangas (braços) completas, as pernas do joelho para baixo praticamente cheias, parte do peito e alguns dedos preenchidos. Relativamente aos temas, as suas marcas na pele podem ser divididas em três partes: a nível de música e bandas, com desenhos e letras de músicas; outras com um estilo mais tradicional, como os dados, as ferraduras e as estrelas náuticas; e, por fim, outras viradas para o anime de que mais gosta, DragonBall.
Nunca sentiu qualquer malefício que pudesse resultar de uma tatuagem. “A parte de ser tatuado até resulta no oposto”, diz, entre risos, “é como se fosse uma terapia”. No que toca a benefícios, tem até um exemplo engraçado. “Tenho uma enfermeira tatuada no braço direito, perto da zona onde levamos vacinas”, conta, “sempre que tive ou tenho de levar uma vacina, é sempre motivo de conversa pela parte da enfermeira, o que para mim é bom e me leva a descontrair um pouco porque eu detesto agulhas”. Uma pessoa com tantas tatuagens e medo de agulhas? “Sim é verdade, mas só as das vacinas e de tirar sangue”, esclarece o ilustrador, com um sorriso de orelha a orelha.
Mas poderá uma tatuagem trazer benefícios? Há casos em que a resposta a esta questão é claramente positiva. Exemplos destes são as tatuagens para ocultar pele danificada ou cicatrizada, como uma queimadura ou uma reconstrução da auréola do mamilo, no caso de uma mastectomia.
“Já fiz uma série delas”, conta Kisto da loja da aranha na cidade invicta. “Em pele danificada, cada caso é um caso”, sendo a pele diferente nas diversas partes do corpo, o tatuador tem isso em mente e sabe com o que pode contar, mas, numa pele danificada com cicatriz ou queimadura, “a diferença é que passamos por tipos de pele bastante diferentes num espaço mais pequeno”, explica, “e temos de ter isso em conta, controlar a voltagem, a pressão, o tipo de movimentos que fazemos, principalmente, e, quando existem texturas, tentar integrá-las ou disfarçá-las de forma menos agressiva possível”.
Na reconstrução da auréola do mamilo, o caso é semelhante. O tatuador tem de considerar os contornos e tentar ser “o mínimo agressivo possível” nas zonas em que há transição de tecidos e de enxertos. O tempo mínimo é variável, entre seis meses e dois anos, dependendo do tipo de enxerto e do tipo de cicatriz, da profundidade, se formou ou não queloide, e esperar o tempo necessário para que esteja estável.
Oscar Gomes tem também experiência nesta área, já ocultou cicatrizes de acidentes, operações, queimaduras, cesarianas ou até auto-mutilações. “Depende muito do estado da cicatriz, normalmente tatuo cicatrizes com mais de dois anos”, esclarece. “Por vezes, há clientes que dizem que dói mais e outros que não sentem dor. Em qualquer dos casos, os benefícios psicológicos são muito elevados para quem disfarça uma parte do corpo mais desconfortável”, remata o profissional.
No entanto, a diretora de dermatologia do Hospital de Sâo João do Porto afirma que “as tatuagens não serão em princípio solução para disfarce de cicatrizes ou queimaduras”. “Quando estas são mais extensas, é difícil haver tratamentos que as resolvam totalmente”, explica, recomendando o tratamento com laser para haver melhoria de cicatrizes em situações mais circunscritas.
Relembra ainda que “não devem ser feitas tatuagens sobre sinais porque podem dificultar a sua avaliação, não permitindo ver as suas características ou as suas mudanças”, referindo-se à dificuldade na deteção de transformação maligna dos mesmos.
A primeira tatuagem de João Fernandes foi ditada por uma bola de futebol. Durante 25 anos, carregou nas costas a cicatriz de uma queimadura resultante de um acidente de quando tinha apenas dois anos de idade. “Foi por causa de uma bola de futebol”, recorda, “como não chegava ao fogão, coloquei um banco para retirar a bola que se encontrava entre duas panelas, e, quando peguei na bola, ao saltar para o chão, toquei numa das panelas que virou água a ferver por cima de mim”.
Ocultar a pele danificada com uma tatuagem era uma ideia persistente há já algum tempo, uma vez que não se sentia confortável a frequentar praias nem piscinas. “As pessoas olhavam e vinham-me perguntar o que se tinha passado, principalmente pessoas da minha idade”, confessa. No entanto, foi em 2021 que decidiu passar por esta nova experiência. “Tinha medo por um lado, se iria correr tudo bem, se iria ter muitas dores”, revela, admitindo agora a possibilidade de fazer mais tatuagens no futuro.
Empregado na área de hotelaria e restauração, e com um gosto particular pelas frases inspiracionais de Dalai Lama, traz consigo nas costas a leveza de uma nova confiança. Para a frente ainda há caminho, a tatuagem que lhe cobre o dorso precisará de mais duas sessões, mas João sente-se feliz e voltaria a fazer tudo de novo.
Os malefícios que as tatuagens poderão trazer, ou não, para a saúde parecem carecer ainda de prova científica. No ar, fica a questão de se os fornecedores de tinta conseguirão encontrar substitutos para os pigmentos em questão, e se tatuadores e tatuados poderão alguma vez voltar a usar o azul.
Nota: No âmbito desta reportagem, uma dxs repórteres fez uma tatuagem. Pode ler a crónica aqui