Bairro da Sé: Quem (ainda) vive e sente

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Bairro da Sé: Quem (ainda) vive e sente

Na sé do Porto impera a pressão do turismo. O café da esquina já não existe. Já não se fala de janela para janela. Agora os turistas perdem-se à procura de casas de férias e o inglês é mais ouvido do que o português. Quem ainda lá vive e resiste fala em perda de um lugar histórico.

Estamos no local onde nasceu a cidade do Porto, o Morro da Sé. No topo, a Sé Catedral mostra a imponência da história de quem ali vive. Ao seu redor, as ruas do bairro da Sé emanam a tradição que ainda se mantém. Portuenses, turistas ou meros transeuntes não ficam indiferentes ao espaço envolvente. Das pedras da calçada às varandas de convívio, o bairro da Sé transforma-se com a sociedade. Mas apesar de todas essas diferenças, ao deambular pelas ruas escondidas, entre cochichos e burburinhos, ouve-se uma certeza em quem ali ainda resiste perante a pressão turística e imobiliária: a Sé será sempre a casa deles.

Ao chegar ao Largo Dr. Pedro Vitorino, bem abaixo da Sé Catedral, Emílio Santos, Hugo Pinheiro, Emanuel Borges, Vítor Barbosa e Manuel Alves reúnem-se todas tardes para o convívio habitual. Entre a jogatina de cartas e conversa, recebem quem ali passa como se de família se tratasse e relembram o bairrismo que lhes é característico. “Nós nascemos e crescemos aqui. Tirarem-nos este bairrismo é tirarem-nos a essência.”

“O Porto transforma-se, mas quem por aqui passa ainda atravessa o mesmo rio”

A cidade do Porto parece ser, nos últimos anos, um íman para turistas. Dos mais novos aos mais velhos, enchem hotéis, hostels e alojamentos locais. O boom turístico que se observa atualmente teve início entre 2012 e 2013, altura em que o Porto começou a ser a cidade da “moda”.

Moda ou não, o certo é que, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2004, com o campeonato europeu de futebol a realizar-se em Portugal, a hotelaria portuense registava 1.064.188 dormidas, dado que aumentou para 2,4 milhões em 2013.

A cidade do Porto tornou-se um destino turístico por excelência e o dinamismo da cidade tem-se refletido tanto na economia, como na organização urbanística. Novos hotéis apareceram, edifícios são reabilitados para a construção de alojamentos locais e o centro do Porto transforma-se numa receção a turistas por excelência.

A Câmara Municipal do Porto divulga, desde 2019, boletins estatísticos que têm como objetivo analisar, de forma resumida, a oferta hoteleira na cidade invicta, através dos processos em curso no Departamento Municipal de Gestão Urbanística, assim como os dados recolhidos e disponibilizados pelo Portal do Turismo de Portugal.

Dados retirados de Câmara Municipal do Porto

De acordo com esses dados, no final de 2018 encontravam-se a decorrer 65 processos de novas unidades hoteleiras. Destes 65 processos, 7 diziam respeito a apartamentos turísticos, 55 a hotéis, 2 a turismo de habitação e 1 foi considerado como sem tipologia.

Já no 1º semestre de 2019 foram registados 75 processos: 63 para hotéis, 10 para apartamentos turísticos e 2 para turismo de habitação.  

Nos seis meses que se seguiram, deram entrada no departamento municipal de gestão urbanística 93 processos para novas unidades hoteleiras, dos quais 81 foram para hotéis, 11 para apartamentos turísticos e 1 para turismo de habitação.

No 1º semestre de 2020, foram propostos 84 hotéis, 13 apartamentos turísticos e 1 turismo de habitação, perfazendo um total de 98 processos.

Dados retirados de Câmara Municipal do Porto

No 2º semestre de 2020, em plena pandemia, desapareceu o turismo de habitação e foram registados 99 processos: 17 para apartamentos turísticos e 82 para hotéis.

Por último, em 2021 o 1º semestre é marcado pelo recorde de 106 processos nos últimos quatro anos e o 2º semestre pela primeira descida nos valores no mesmo período, registando-se 103 processos para novas unidades hoteleiras.

No ano de 2021, ambos os semestres registaram 89 pedidos para hotéis, sendo que apenas o valor para apartamentos turísticos variou fixando-se em 17 no 1º semestre e 14 no 2º semestre.

Os boletins estatísticos divulgados pela Câmara Municipal do Porto permitem concluir que, apesar dos números mais elevados estarem relacionados com hotéis, há cada vez mais uma presença acentuada dos apartamentos turísticos na cidade, representando uma taxa entre 11% e os 17%.

Dados recolhidos da Câmara Municipal do Porto

Todos estes novos empreendimentos turísticos têm algo em comum: a sua localização. Situam-se no centro da cidade com destaque para Santo Ildefonso, Bonfim e Sé, representando a última 12% dos investimentos em 2018, no 2º semestre de 2019 e 2020 e no ano de 2021. A Sé atingiu o pico no 1º semestre de 2019 quando representou 13% e o seu ponto mais baixo foi o 1º semestre de 2020 onde 11% destes novos empreendimentos se localizavam lá.

Dados retirados de Câmara Municipal do Porto

A análise disponibilizada pela Câmara do Porto permite entender o forte investimento privado no setor do turismo, nomeadamente nos serviços hoteleiros, dando à cidade do Porto uma maior capacidade de alojamento para quem a visita. No entanto, há informações que ficam por dar.

“Para eles isto é a Sé, mas para mim não é só a Sé. É a identidade do Porto e isso vai-se perdendo porque não fica cá ninguém para a manter.”

Emílio Santos, antigo residente no bairro da Sé
Carlos Bessa, Residente no Bairro da Sé | Fotografia de Rita Almeida

De acordo com um estudo divulgado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), a cidade do Porto transforma-se para os turistas e essas alterações são visíveis nos investimentos urbanos e nas manifestações arquitetónicas. Estas mudanças destacam-se em edifícios novos como a Casa da Música, as linhas usadas na reabilitação de edifícios antigos e até mesmo na substituição de espaços tradicionais como tascas e mercearias por cafés internacionais e grandes superfícies comerciais.

Em pleno Bairro da Sé, Emílio, Hugo, Emanuel, Vítor e Manuel lamentam isso mesmo. “Já não há estabelecimentos. O único que ainda se vai mantendo é o Café Catedral, mas mesmo assim não é igual”. Muda-se o nome, mudam-se hábitos e mudam-se preços. Quem costumava frequentar assiduamente este café afirma que os preços praticados são “turísticos mesmo para quem não é turista e até a nós que crescemos aqui, pedem-nos para consumir ou 50 cêntimos para usar a casa de banho”.

Outro exemplo desta globalização é a Casa dos 24. Com origem no século XV, funcionava como antiga casa da Câmara. Foi edificada junto à muralha da cidade e era o espaço onde os 24 representantes dos vários ofícios da cidade do Porto se reuniam. Em 1875 sofreu um grande e violento incêndio que a destruiu por completo. O edifício foi deixado ao abandono e em estado de ruínas durante anos até que, em 2000, o arquiteto Fernando Távora apresentou um projeto de reinterpretação contemporânea.

Carlos Bessa reside no Bairro da Sé desde sempre e é o antigo presidente do Clube da Sé. Relembra que foi um dos que lutaram contra a reinterpretação do “Mestre Távora”, como lhe chama. Para quem ali habita, esta nova versão da casa dos 24 não representa a verdadeira fisionomia do edifício. Para Carlos Bessa a contestação de todos os habitantes do Bairro da Sé vinha por “criarem um prédio moderno dentro de uma zona histórica apagando a verdadeira identidade.”

A história da Casa dos 24 é um dos vários exemplos presentes na invicta que revelam a perda dos valores tradicionais em prol da globalização para que a cidade seja mais apreciada aos olhos de turistas.

De acordo com a arquiteta Lúcia Pedro no estudo referido anteriormente, este fenómeno de alteração de linhas arquitetónicas ocorre “pela necessidade que a cidade tem em estabelecer uma conexão de proximidade cada vez maior com os turistas”.

Estas alterações levam a que a singularidade e a identidade das cidades seja perdida para que espaços com os quais turistas e visitantes se possam identificar sejam criados. Este fenómeno de globalização de uma cidade para a receção a quem vem de fora resulta de uma dependência cada vez maior para com o setor do turismo e a implementação da ideia de marketing visual, onde se procura uma imagem internacional em detrimento da imagem tradicional que seria de esperar se encontrar numa cidade.

Todas estas condições levam a uma dualidade de opiniões: para quem visita, a cidade do porto está recheada de gastronomia, bom tempo, miradouros, paisagens e tudo aquilo que se procura; mas para quem aqui habita, há hábitos, rotinas e tradições que se perdem.

O Bairrismo Invicto

Bairro da Sé | Fotografia de Rita Almeida

O Porto pertence ao grupo de cidades europeias que estão a passar por mudanças profundas geradas pelo crescente turismo e investimentos no mercado imobiliário. No entanto, algo que poderia ser visto como um ponto positivo e de melhoramento da cidade, traz o seu lado negativo quando os interesses dos moradores não estão a ser preservados, as rendas aumentam e a cidade vira apenas um objeto de investimento e não um local de residência. Em 2020, Ricardo Valente, Vereador do Pelouro da Economia, Turismo e Comércio da Câmara Municipal do Porto, divulgou um artigo de opinião em parceria com a Associação para o Progresso da Direção de Empresas (APD) onde expôs a sua perspetiva sobre o desenvolvimento económico e urbanístico da cidade. Nesse artigo apresentou a estratégia urbanista em vigor na cidade do Porto, referindo que esta contribuiu para a dinamização de um ambiente de “negócios e investimentos de elevado valor”, assim como os quatro pontos chave que pretendem condicionar.

O primeiro ponto prende-se com uma “cidade atrativa” onde é defendido que o Porto deve “reforçar o seu papel de centralidade e referência” na Área Metropolitana, para que a sua afirmação a nível internacional seja maior.

O segundo diz respeito a uma “cidade coesa”, onde pretendem reduzir as assimetrias territoriais e sociais que consideram como sendo um problema estrutural antigo, que deve ser resolvido com medidas urbanísticas e económicas.

Para tornar o Porto uma “cidade dinâmica”, é defendido que as atuais condições devem ser aproveitadas, por serem favoráveis à afirmação internacional da cidade e a apresentação da mesma como uma cidade “aberta, plural, disponível para a diferença e curiosa pela novidade”.

Por último, o Porto é apresentado como uma cidade que procura a sustentabilidade. A ideia é que questões ambientais, paisagísticas e de património do território não sejam postas em causa à medida que se aposta “estrategicamente na densificação inteligente das áreas de expansão da cidade”.

Os pontos apresentados pelo Vereador da Câmara Municipal do Porto são pertinentes para o crescimento de uma cidade, no entanto, para quem lá habita, a sensação não é a mesma.

“O Porto é bairrista e cosmopolita ao mesmo tempo, e simultaneamente conservador e vanguardista”

Ricardo Valente, artigo de opinião

Bair-ris-ta
 
1. Diz-se de ou pessoa domiciliada num bairro.
2. Diz-se de ou pessoa muito afeiçoada ao seu bairro ou à sua terra.
3. Que ou quem mostra uma limitação de interesses, dinâmica ou atividades 
ao limite de um bairro ou a um âmbito reduzido.

Cos-mo-po-li-ta
 
1.     Pessoa que considera o mundo como pátria.
2.     Que é relativo a ou próprio dos grandes centros urbanos (ex.: hábitos cosmopolitas)

Con-ser-va-dor
 
1.      Que ou quem não gosta de mudanças em relação ao que é habitual ou tradicional.

Van-guar-dis-ta
 
1.     Agente, grupo ou movimento intelectual, artístico ou político que está ou procura estar à frente do seu tempo, 
relativamente a ações, ideias ou experiências.
2.     Que ou quem vai à frente
Retirado de dicionário Priberam

Ricardo Valente descreveu o Porto como sendo bairrista, mas para Hugo, Emanuel, Vítor e Manuel, ainda residentes no bairro da Sé, o bairrismo está-se a perder “Para eles isto é a Sé, mas para mim não é a Sé porque a Sé é só um edifício. Isto aqui é a alma da Sé, o bairrismo, a identidade do Porto e isso vai-se perdendo porque não fica cá ninguém para a manter”.

O Vereador do Pelouro da Economia, Turismo e Comércio também se referiu à Cidade do Porto como sendo cosmopolita. Emanuel relembra que em tempos foi assim “sempre acolhemos as pessoas da melhor maneira e isso está-se a perder porque agora o que acolhe as pessoas é o dinheiro, os hostels. Quem é acolhido são os estranhos e nós não podemos estar aqui para os receber”. O funcionário da Câmara Municipal do Porto afirma, que o Porto é uma cidade conservadora. Palmira Ribeiro, antiga residente do Bairro da Sé e funcionária de uma loja no mesmo afirma que “Antes isto era muito bom, agora não presta. As minhas amigas foram todas embora”.

Por último, Ricardo Valente descreveu o Porto como sendo vanguardista. Para Carlos Bessa, o vanguardismo invicto desaparece e a população vive em função do que lhes é permitido :“Eu quando era presidente do clube da Sé, nós queríamos fazer o clube, então na altura falei com o Rui Rio, mas tive de esperar que me cedessem o espaço.”

A descrição da cidade do Porto divulgada no referido artigo de opinião está certa, na teoria. Na prática, nem tanto. Os portuenses são cosmopolitas e recebem toda a gente como se ali pertencessem; são vanguardistas por quererem introduzir modernidade na sua história, mas deixam de o ser quando este vanguardismo implica deixarem de lado a veia conservadora. Os portuenses gostam de estar à frente do seu tempo, enquanto se orgulham da sua história. Mas apesar disto tudo, observa-se que o bairrismo se está a perder. Para os habitantes do bairro da Sé “já não é o bairro de outros tempos, o que é uma pena porque vai-se perdendo a identidade do bairro”. O espírito, a alma e o caráter de uma cidade surgem da combinação entre território, geografia e pessoas. Cabe a estas mesmas pessoas passar de geração em geração todos estes valores de que uma cidade é feita. Cabe ao território e à geografia manterem-se prova viva daquilo que a história marca. No entanto, quando não é possível fazer-se isso, essa mesma história perde-se.

“Isto são as nossas pedras, nós crescemos aqui e nós temos a verdadeira história da cidade”

Carlos Bessa, Antigo Presidente do Clube da Sé

No Bairro da Sé, as pessoas saem para que os prédios onde sempre habitaram possam dar lugar a casas modernas, renovadas e que, com investimentos estrangeiros, viram alojamento local para turistas. Veríssimo Oliveira, morador do bairro da Sé, afirmou, em 2010, em entrevista ao JornalismoPortoNet que as medidas usadas pela autarquia para corrigir a degradação das casas “não trazem benefício nenhum para a Sé”, já que “Não estão a preservar quem gosta de cá morar, mas tem poucas possibilidades”.

“Obrigarem a minha mãe a sair, aos 80 anos, da casa que conheceu a vida inteira devia ser crime.”

Emílio Santos, antigo residente do Bairro da Sé

Palmira Ribeiro relembra as amizades que perdeu ao longo dos anos “o turismo veio fazer isto tudo. Os senhorios obrigavam a sair. A uns davam dinheiro, a outros ajudavam a arranjar uma casa de substituição”.

Também Carlos Bessa, relembra aqueles que foram saindo e realojados noutros bairros camarários “Já desde a década de 80 que a câmara diz às pessoas que têm de sair e atribui-lhes uma casa noutro bairro camarário qualquer”.

Para os que saem, fica a sensação de perda de algo que conheceram a vida toda “Eu apesar de já não morar cá, continuo a vir porque tenho aqui amigos. Poucos, metade já não estão cá, mas venho pelos que ainda estão”.

Com os que vão ficando, fica também a incerteza de não saber até quando podem continuar na casa que conhecem “Ainda estamos cá. Enquanto os senhorios não nos puserem de lá para fora nós vamos ficando”. Palmira afirma que o que mais lhe custou foi “a sensação de solidão por ver todas as amizades irem embora aos poucos”, enquanto Carlos Bessa destaca a perda de tradições “Isto são as nossas pedras, nós crescemos aqui e a cidade não é feita por casas restauradas. É feita por casas e por pessoas e se tiram as pessoas não fica nada. As casas não contam histórias”.

O café da esquina dá lugar a um café “com preços turísticos”. Os vizinhos dão lugares a turistas curiosos e as casas típicas do porto dão lugar a casas de linhas internacionais. A história do passado portuense perde-se e dá lugar a um futuro ainda sem identidade com o qual que quem vive e sente o bairro da Sé não se identifica.

Rita Almeida

Rita Almeida, 21 anos, natural de Vale de Cambra. O gosto por comunicar e querer sempre saber mais surgiu muito cedo, definindo CC como carreira a seguir. Atualmente no terceiro ano do curso, na Universidade Lusófona do Porto, sou, também, colaboradora na editoria “Geração Z” na plataforma #infomedia.