Dragos e Pedro: Para ficar em casa é preciso ter uma casa
- Marta Bacelar
- 22/01/2021
- #Social Atualidade Portugal Saúde
A Associação ‘Caminhos de Amor’ foi criada na altura do primeiro confinamento. Num momento em que é obrigatório estar em casa, para muitos sem-abrigo Mariana Castro Moura é a única solução.
São 13:13h quando Mariana chega à rotunda da Boavista, com um carrinho verde e um saco onde traz o almoço para os sem-abrigo. Enquanto distribui os kits em sacos plásticos com um lanche misto, empadas, iogurte, fruta, água e sumo, fala com todos à porta do Tabernáculo Baptista, um templo situado na Boavista, e pergunta “como têm passado estas noites de frio”. Mariana Castro Moura é a fundadora e atual presidente da Associação a que chamou “Caminhos de Amor”, um projeto pessoal que sobrevive de donativos de amigos. Desde Março de 2020 que sai de casa por volta das 12h e percorre a pé e de autocarro um caminho de amor com mais de cinco paragens. Do Estádio do Bessa até a Avenida de França, no Porto, a voluntária oferece refeições aos amigos da rua.
O sem-abrigo com 11 anos de rua
O romeno Dragos Mocano é um dos sem-abrigo que se considera um “sortudo” por ter conhecido Mariana. Há 11 anos, as expectativas em relação a uma nova vida eram altas. Na Roménia, um indivíduo prometeu-lhe um emprego em Portugal e um bom ordenado. Quando chegou pela mão desse indivíduo ouviu: “daqui até ali, é o teu posto de trabalho”. O emprego de sonho consistia afinal em arrumar carros na Rua da Meditação, no Porto. É esse o local de trabalho até aos dias de hoje.
Em Março, quando as lojas começaram a fechar e as pessoas abdicaram de ir à rua, deixou de fazer dinheiro suficiente para ter uma vida estável. É com a ajuda da “menina Mariana” à hora do almoço, que arranja forças para passar o dia a trabalhar. Apesar da resistência, o dinheiro que o romeno angaria enquanto arrumador não chega nem para comprar mantimentos. “Antes da pandemia chegava a fazer 450 euros por mês. Agora, faço cerca de três euros por dia, o que significa que, dentro do melhor cenário faço 90 euros”. Confessa que as únicas coisas que consegue comprar é numa loja “tudo a um euro”, na Rua Júlio Dinis, no Porto.
Foi essa a morada de Dragos durante quatro anos. Para lá do portão branco fechado a aloquete em pleno centro da cidade, esconde-se envergonhado um Porto invisível. No descampado, estava a tenda de Dragos, comprada no Norte Shopping, em Matosinhos, com o dinheiro de muitas semanas de trabalho. Viver ali foi a solução que encontrou para fugir aos roubos de que era vítima. “Durante muito tempo eu adormecia com cobertores e como durmo profundamente, acordava sem eles”.
Por causa do frio e da chuva viu-se obrigado a procurar outra solução. Atualmente, vive numa casa abandonada e dá “graças a Deus por ter um teto em cima da cabeça”. O problema vai para lá do inverno e é por isso que renega qualquer plano de contingência. Aquilo que pede é um abrigo para os sem-abrigo. “Na fase do frio deixaram as estações de metro abertas para termos onde passar as noites, mas e o resto do ano?”. Admite que há quem viva com subsídios, mas a maioria não tem acesso a qualquer tipo de apoio monetário. “Eu não quero dinheiro, só quero um quarto e uma casa de banho”. Enquanto encolhe os olhos e levanta as mãos revela “eu não recebo nadinha, vivo à custa da rua”.
Há algumas instituições que acolhem os sem-abrigo no inverno. O romeno conta que, há uns dias preencheu os papéis para pernoitar uns tempos no Centro de Acolhimento Hospital Joaquim Urbano. Eram 19h quando lá chegou e o encaminharam para um “albergue com mais condições”. Assim que chegou questionou “Sr. Doutor, quanto tempo podemos ficar aqui?” e a resposta foi “é só esta noite, porque está frio”. Pegou nos sacos e foi-se embora como uma forma de protesto. “Ou é ou não é, não tem jeito nenhum”.
Os planos de contingência para pessoas em situação de sem-abrigo são ativados pela Câmara Municipal do Porto quando as temperaturas descem graus elevados. É através do Centro de Acolhimento de Emergência Covid-19, uma estrutura criada pelo município nas instalações do antigo Hospital Joaquim Urbano, com capacidade para 40 pessoas, que os sem-abrigo podem pernoitar até às 8:00h. Outra alternativa na cidade do Porto é a estação de metro dos Aliados. Nesse período, são distribuídos cobertores, alimentos e bebidas quentes. |
Com a pandemia, a situação tornou-se mais difícil de resolver porque não tem meios para responder às entidades que tratam desses assuntos. “Agora é tudo através de e-mails, telefones, e eu não tenho nada disso”. É com a ajuda de Mariana Castro Moura que vai equilibrando os seus dias. Quanto a isso, com um sorriso de orelha a orelha, Mariana confessa que se sente muito realizada. “Eu sinto-me muito feliz, eu sei a consideração e o agradecimento que têm por mim. Se um dia precisasse, também gostava que alguém o fizesse por mim”. Dragos confidencia que há muito pouca gente que ajude tão regularmente como a presidente da Associação de apoio aos mais necessitados. À hora do jantar, relata, chega a esperar cinco horas por uma refeição que não aparece.
O homem que venceu a rua aos 42 anos
Menos revoltado está Pedro Vale, um homem de 42 anos que é um exemplo de superação. Teve de largar a casa e a mulher por ter perdido o emprego devido à pandemia. Era funcionário do Mercado Abastecedor, no Porto, e de um dia para o outro viu-se na condição de sem-abrigo. Hoje, através das ajudas angariadas por Mariana, já tem uma casa e está a começar a vida a partir da estaca zero.
Apesar de se mostrar grato por ter conseguido um teto, relembra, com os olhos em lágrimas, que já teve muito mais do que isso. “Tinha tudo, tinha mulher, tinha casa, tinha o meu trabalho e, por causa da pandemia perdi tudo, tudo, tudo”.
A associação “Caminhos de Amor”, mantém-se de pé por causa da ajuda do marido, da mãe e dos amigos de Mariana. Tudo o que entregam deriva das angariações feitas através da página do Facebook, que advêm de donativos de pessoas anónimas, lojistas e empresas.
Na altura do primeiro confinamento, os bancos verdes do jardim da Praça Mouzinho de Albuquerque, na Boavista, foram a casa e o refúgio de Pedro. Na primeira noite que dormiu na rua estava acompanhado de 15 pessoas. Num tom de brincadeira, salienta que dia após dia chegava mais um “paraquedista”, referindo-se às pessoas que perderam o emprego devido ao primeiro confinamento originado pela pandemia Covid-19. Com o decorrer dos dias, passaram de 15 para cerca de 30 pessoas sem casa, ‘alojadas’ no jardim da Boavista. É este o número atual de pessoas auxiliadas por Mariana. Relativamente a isso, Pedro salienta que “a pandemia veio estragar tudo e nada garante que este número não venha a aumentar por causa do segundo confinamento”.
A olhar para o chão, o homem de 42 anos relembra que nunca teve o apoio da família. Sempre que precisou mandou mensagens e ligou, mas nunca obteve uma resposta. “Por isso é que perdi a esperança, até na própria família. Convivo mais com a Mariana e com os outros sem abrigo”. Apesar de já não viver na rua, é lá que passa a maioria do tempo e confessa que, tal como ele, há muitas pessoas que têm um teto e nada mais do que isso. Por este motivo, já não se considera sem-abrigo, mas pelos que lá estão, teme a vaga de frio que regressa nos próximos meses. Enquanto encolhe os ombros questiona: “O que é um cobertor com este frio?”.
Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas considera-se sem-abrigo “toda a pessoa que, no momento censitário, se encontra a viver na rua ou outro espaço público como jardins, estações de metro, paragens de autocarro, pontes e viadutos, arcadas de edifícios entre outros, ou aquela que, apesar de pernoitar num centro de acolhimento noturno (abrigo noturno) é forçada a passar várias horas do dia num local público. |
Os apoios que lhes chegam são poucos e, na sua perspetiva, o Governo nem se lembra que existem pessoas sem-abrigo. Afirma com toda a certeza que a única altura em que se recordam que eles existem é na época das eleições. “Depois disso, a gente não existe, mas eles têm de se convencer que somos seres humanos”. Indignado, repete “um sem-abrigo também é um ser humano, se precisam de nós para votar, nós também precisamos deles”. A respeito disso, Mariana avança que desde criança que possui vontade de ajudar os outros e quando teve consciência que poderia fazer algo reuniu todas as condições para atuar de imediato no terreno e é graças a isso que percorre o caminho de amor a todas as horas de almoço.
Os relatos são de quem passa frio, fome e uma enorme solidão por companhia. Perdido o contacto com as regras da sociedade, mergulha-se facilmente numa vida sem sentido, tantas vezes, sem destino. Dragos e Pedro mostram-se gratos pelo apoio que a “amiga” lhes presta, e é por isso que, numa fase em que Portugal se revê naquilo que aconteceu em Março, os sem-abrigo ‘residentes’ na Boavista sentem-se mais “abrigados”.