“Campanhã é a minha casa”

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“Campanhã é a minha casa”

Ao longo da rua Justino Teixeira há autocolantes espalhados pelos muros, postes e paredes. “Campanhã é a minha casa” é o que está escrito neles. Por trás desta frase há muitas histórias e quem nos conta algumas delas é o Sérgio Marques idealizador do projeto, que procura através de curta-metragens levar a cultura e a história de Campanhã a vários cantos do Porto. Rosa Marques, a mãe, fala sobre o sentido de entreajuda partilhado pelos vizinhos e relembra algumas das suas vivências desde que chegou à rua Justino Teixeira.

[Textos, fotos e vídeos: Catarina Almeida e Raquel Souza]

Por volta das 15:30 do dia 29 de abril de 2023, Sérgio Marques está em frente ao terminal ferroviário de Campanhã. O barulho dos comboios é-lhe familiar visto que o acompanha desde a juventude. Hoje vive em Lisboa, mas até 1999 viveu mesmo em frente à estação emblemática do Porto.

Sérgio saiu de casa aos 25 anos e morou em várias zonas do Porto antes de se mudar para a capital em 2012. A mudança deu-se por razões profissionais. Foi lá que conseguiu encontrar maior oferta laboral, no setor da cultura e do cinema.

Apesar da distância, afirma que sempre sentiu a rua Justino Teixeira como sua. “As outras ruas em que estive no Porto eram apenas [lugares] onde eu arrumava casa para morar”, afirma, referindo-se ao facto de nunca ter sentido uma ligação tão forte como aquela que mantém com o lugar que o viu nascer.

A sua relação com Campanhã mantém-se viva. A mãe de Sérgio ainda mora há 16 anos na mesma casa, por isso ele visita-a regularmente.

Com um olhar nostálgico sobre o passado, ele conta as principais mudanças que sentiu na rua nos últimos anos. É um sítio que “mudou 100% daquilo que era”, defende. Como exemplo, Sérgio descreve que a rua era principalmente residencial, com mercearias que apenas os moradores locais frequentavam. O atual produtor cultural recorda-se de brincar na rua até à hora do jantar e do sentido de comunidade que então se vivia.

“Eu lembro, quando era miúdo, quando comecei a passear mais sozinho a partir dos meus 13-14 anos, de passear até à baixa, ou até à Boavista e achar que estava noutro mundo, porque era mesmo uma realidade muito diferente da realidade daqui da Justino Teixeira.” Sérgio lamenta que hoje o espírito de de aldeia se tenha perdido. Nesse sentido, exemplifica alguns hábitos que já não existem, como jogar futebol na rua.

O Porto tornou-se um postal para os turistas

Atualmente, com a construção do terminal intermodal de Campanhã, muita gente passou a trabalhar nas proximidades e os lugares de estacionamento tornaram-se escassos. A zona começou a passar por um processo de gentrificação, como relata Sérgio. Muitos vizinhos da sua mãe acabaram por ser expulsos e as casas passaram a servir outros propósitos: “Não há mais casas no centro da cidade, mesmo Campanhã sendo uma freguesia mais periférica as casas também já estão a ficar muito caras”, afirma Sérgio.

Gentrificação
O termo gentrificação [gentrification] foi introduzido pela socióloga Ruth Glass, em 1968, no Reino Unido, na obra London: Aspects of Change.
Trata-se do processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação 
dos residentes com menor poder económico para outro local e da entrada de residentes com maior poder económico.
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

Ilhas- Conjunto de habitações modestas dispostas à volta de um pátio comum, com uma entrada única para todos os moradores.
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

Isto afeta diretamente a dinâmica da própria rua. Justino Teixeira tem muitas ilhas — que são um conjunto de casas dispostas ao longo de um corredor com uma única entrada —, que acabam por ser vistas “como espaços mais pobres”. No entanto, as ilhas partilham uma forte relação de afeto com a vizinhança porque “nelas as pessoas vivem com muita proximidade.” Sérgio afirma que os moradores se conheciam todos, mas quem vivia em casas ou apartamentos tinha um estatuto melhor do que aqueles que moravam nas ilhas. “A rua tem vários níveis. À medida que se vai subindo, ela vai subindo o status. É uma rua engraçada”, reflete Sérgio Marques.

Aquilo que aos seus olhos acontece quando as pessoas morrem ou deixam as suas casas é que estas acabam por se transformar em alojamentos locais, cafés ou restaurantes, porque assim geram mais lucro. Por estes motivos, a arquitetura da rua mudou muito. Com um olhar que recorda, Sérgio lembra-se do barulho dos comboios, dos armazéns que ocupavam toda a rua e das pessoas que recolhiam o que vinha nas carruagens. Havia um palheiro, um certo ar de ruralidade que para ele, apesar das transformações ainda não se perdeu por completo.

“A rua tem vários níveis. À medida que se vai subindo, ela vai subindo o status. É uma rua engraçada

Sérgio Marques

O Porto, para ele, acabou por se tornar mais num postal para os turistas do que um lugar de acolhimento para as pessoas que lá vivem. O que Sérgio realmente deseja é que houvesse um maior equilíbrio. “Gostava de sentir que ao lado da minha mãe moram os senhores do Paquistão, mas que pudessem morar também as pessoas que são de cá e querem morar ali também.” Duas casas vizinhas à da sua mãe, Rosa Marques, já não são habitadas por ninguém e tornaram-se alojamento local.

Sérgio destaca a importância de se conhecer quem são os nossos vizinhos, os seus rostos. Ver neles a preocupação que sentem com outras pessoas. Quando a casa onde morava com os seus pais e a sua irmã ardeu, eles estiveram ao lado da sua família para dar apoio no que fosse necessário e isso é algo que nunca esquecerá. Com a presença de turistas, nota, esse “lado de afeto e proximidade acaba por não acontecer.” De acordo com o promotor cultural, o governo tem de arranjar soluções para que os preços das rendas, na cidade, não sejam tão elevados e as pessoas não precisem de ver-se obrigadas a se deslocarem para zonas mais afastadas. Realojar os moradores para bairros sociais é outra situação que o preocupa. Decidir pelas pessoas onde elas devem morar é “muito agressivo e violento.” Dando o exemplo da sua mãe, com 80 anos, Sérgio imagina o quão difícil seria para ela se fosse obrigada a criar novas relações sociais e descobrir novos locais. 

Sérgio com a mãe, Rosa, à entrada da casa atual deles, em Justino Teixeira.
Fotografia: Arquivo pessoal de Rosa Marques

Projeto “Campanhã é a minha casa”

É neste cenário que relembra os motivos que o levaram a criar o projeto Campanhã é minha casa. Ele afirma que começou “um bocadinho para trabalhar esta ideia das memórias de Campanhã e das pessoas que estão ligadas [entre si].” A iniciativa começou coma recolha de filmes de famílias e pessoas de Campanhã — podiam ser em Super 8 ou cassetes VHS e transpor essas imagens para o digital. A partir desse material, três realizadores criaram curtas-metragens sobre a freguesia.

O objetivo era mostrar que “Campanhã é um território de afetos, um território de pessoas. Também pode ser um território de turismo, mas é um território principalmente onde as pessoas habitam e têm casas.” Sérgio observa que a rua Justino Teixeira tem diversas fases que lhe conferem uma identidade. Há uma fase com mais esplanadas e cafés, mais ligada à estação ferroviária, exatamente onde estamos a conversar. Depois, uma zona de ilhas com casas baixinhas e mais pobres. Na parte de cima é a zona onde moram as pessoas com mais poder aquisitivo.

A preocupação em fornecer aos habitantes ferramentas para lutarem pelo direito de estarem onde querem estar, torna o projeto “Campanhã é a minha casa” uma forma de dar voz a estas pessoas que estão a ser retiradas dos seus lares. Apesar de trabalhar em Lisboa com programação de cinema para crianças e novos públicos, Sérgio admite sentir vontade de retornar a sua atividade em Campanhã. “Não sei bem como fazer, é tentativa e erro, mas estou disponível, estou a ver como as novas forças políticas estão a defender Campanhã.” Depois, remata: “Campanhã é a minha casa é uma frase boa…é uma frase de orgulho.”

Campanhã também é a minha casa: a geração anterior

São 10:00 o dia 22 de maio de 2023. Está sol. Caminha-se pela rua Justino Teixeira à procura do número de porta para a casa de Rosa Marques, mãe do Sérgio. É ela quem avista a equipa do #infomedia primeiro. Está à janela, a conversar com um vizinho e convida-nos a entrar. Somos recebidas pela sua cadela e os seus dois gatos que, para Rosa têm sido uma companhia desde a morte do marido. A cadela é como um despertador e acorda a dona todos os dias por volta das cinco da manhã. Ladra à espera que acenda a luz e vá ter com ela.

Rosa Marques à janela de sua casa, na Rua Justino Teixeira. Maio de 2023 | Fotografia: Créditos

Rosa Marques tem 80 anos, nasceu em Fafe, cidade portuguesa localizada na sub-região do Ave, e foi adotada pela sua madrinha, dona da casa onde a mãe trabalhava. Aos quatros anos de idade mudou-se para o Porto e viveu até os 26 anos perto da praça do Marquês de Pombal, localizada nas confluências das freguesias de Santo Ildefonso, Bonfim e Paranhos, no distrito do Porto.

Em 1969 casou-se e veio para a rua Justino Teixeira. No princípio não gostava nada da rua e a sua aparente pequenez causou-lhe uma certa aversão. “Fiquei triste porque parecia-me uma aldeia, mas com o passar do tempo comecei a habituar-me e a ganhar raízes aqui”, confessa, indicando que se resignou.

A rua passou a ter um significado mais especial com o nascimento dos seus dois filhos. Sandra Marques, dois anos mais velha do que o o mais novo, frequentou a faculdade de química e atualmente também já não mora em Justino Teixeira.

Os irmãos cresceram em Campanhã e estudaram no liceu Alexandre Herculano. Quando está a relembrar a rua é o nascimento dos filhos que logo lhe vem à mente. No entanto, nas suas lembranças também guarda o quão triste, abandonada e velha estava aquela zona. Rosa começou a ver as coisas a mudarem quando a região se começou a industrializar, sobretudo com o surgimento do metro, agredado ao aparecimento de novos comércios no final do século XX. “Em 1998 ou talvez 1999 quando começaram as obras do metro, então começou tudo a mexer. Começaram a abrir cafés, pequenos restaurantes, mercados.”

Aos olhos de quem mora em Justino Teixeira há mais de cinco décadas ainda há muito por melhorar. Antes das obras do metro não haviam passeios. Aqueles que existem agora “são estreitos, podiam ser um bocadinho mais largos” e o asfalto também não chegou a toda a extensão da rua.

“Em 1998 ou talvez 1999 quando começaram as obras do metro, então começou tudo a mexer. Começaram a abrir cafés, pequenos restaurantes, mercados.”

Rosa Marques

Com os seus irmãos a morarem na Suíça e na Alemanha, o porquê de nunca se ter aventurado para além das fronteiras de Portugal está relacionado com os laços afetivos que mantinha nesta região.

“A senhora que me criou, que me adotou, a minha madrinha, ela era a minha mãe, era a minha mãe de coração. Ela era uma pessoa muito sozinha, não podia abandoná-la.” O namoro de seis anos que depois resultou num casamento de 38 também interferiu na sua decisão de nunca deixar o país.

Por várias vezes, Rosa costumava acompanhar o filho a várias zonas do Porto e assistir aos filmes que exibia. Passados tantos anos, perguntamos se agora já considera Campanhã e Justino Teixeira a sua casa. Sem pestanejar, ela responde: “Sim, considero que sim. Até ele próprio que agora vive em Lisboa ainda continua a achar que Campanhã é a casa dele.”

Ao reviver o passado, conta com orgulho o ofício ao qual dedicou 25 anos da sua vida. Era empregada na primeira boutique que apareceu no Porto, “com estilo francês”, faz questão de nos dizer: a Boutique Fernando. Na altura, largou o seu emprego para ajudar o seu marido com o armazém de vinhos do qual ele era dono. O negócio não deu certo e, o fim de três anos, tiveram de desistir. Ele acabou, então, por se dedicar até o fim da sua vida ao artesanato: fazia santos de madeira. Ela continuou a costurar roupa até aos 65 anos para ajudar na renda da família. Agora com 80 anos, o artesanato continua a estar presente no seu dia a dia. Ao percorrer os olhos pela sua sala, podemos ver vários móveis que ela própria pintou: “Eu gosto muito de trabalhos manuais, então pinto cadeiras, pinto mesas, pinto armários, pinto tudo o que eu vejo que está a ficar velho.”

Já não consegue bordar como antes devido às dores nas mãos, mas conseguimos ver um pouco do seu trabalho a enfeitar as paredes da sua casa. O seu quotidiano é pacato, na companhia dos seus animais enquanto faz as tarefas domésticas.

Rosa Marques fala sobre a sua vida com leveza e não nos deixa sair sem antes nos dar um conselho que reflete um pouco tudo que viveu e que aprendeu desde que se casou e se mudou para Justino Teixeira. Estas memórias fazem-na recordar a falta de liberdade que teve por viver junto da sogra que, apesar de tudo, adorava. “Lutem por aquilo que querem, e tenham a vossa independência.”