Cross Content: Das narrativas transmedia à falibilidade dos arquivos Web

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Cross Content: Das narrativas transmedia à falibilidade dos arquivos Web

[Catarina Almeida e Inês Diana Silva]

Marcelo Bauer e Andréia Peres fundaram a agência Cross Content em 2001. Foram ambos jornalistas e a partir dos seus conhecimentos nessa área quiseram criar uma plataforma que preenche-se aquilo que acreditam ser uma lacuna no jornalismo: o destaque e preocupação com temas sociais. A Cross Content trabalha com narrativas transmedia e transborda os limites do papel no desenvolvimento dos seus projetos. Além olhar atento da equipa em criar conteúdos atuais e dinâmicos está também a preocupação em orientar e formar jornalistas na área do empreendedorismo.

#infomedia: A primeira pergunta que eu coloco, eu coloco aos dois: gostaria que aprofundassem um bocadinho como é que surgiu a Cross Content, como é que surgiu a ideia e como é que foi desenvolvida.

Resposta: Marcelo– Bom, a Cross Content surgiu em 2001, portanto estamos com 22, quase 23 anos já. E a gente trabalhava até então na grande imprensa. A Andrea trabalhou 14 anos na Editora Abril, que é a principal editora de revistas do Brasil e depois trabalhou na Editora Globo, que também é uma grande editora de revistas aqui. Eu trabalhei em vários locais, mas trabalhei bastante em jornais diários, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, depois revista Estuai e Editora Abril também. Então a gente tinha uma experiência nós dois de grande imprensa, embora eu também além de grande imprensa já tinha começado naquele momento a trabalhar com internet dentro dos grandes veículos, mas trabalhando com internet.

Então eu tinha essa formação, digamos, do impresso e da internet e a Andrea basicamente uma formação de impresso, mas no caso dela com foco bastante em grande reportagem, que depois ela pode explicar mais. E daí em 2001 a gente viu uma oportunidade de trabalhar com temas que a gente gostava, com vista principalmente dela, que tinha aí já um apego bastante forte pelos sistemas sociais e também trabalhar com uma coisa que estava surgindo, que era a possibilidade dos projetos cross-media. Naquela altura obviamente já existiam sites e outros materiais, veículos de comunicação, mas ainda o conceito de cross-media, ou seja, o conceito de trabalhar um mesmo conteúdo, uma mesma comunicação em diversas frentes, ainda era novo.

Então a gente criou a Cross Content, já com esse nome, com esse objetivo de trabalhar cross-media. Nos primeiros anos esse conceito de cross-media significava mais trabalhar, por exemplo, como a gente mostrou ontem, um exemplo de um livro que também tinha um site. E esse site complementava tanto no sentido de dar acesso àquele conteúdo a uma audiência muito maior do que o livro impresso e também de trazer conteúdos de interatividade e outras opções. E a partir daí, obviamente, o conceito de cross-media foi se atualizando e se atualiza cada dia, então a gente procura também estar sempre trazendo para esse conceito de cross-media o que for possível. Atualmente a gente tem trabalhado bastante em webséries, web documentários, podcasts e livros interativos. Então são outras linguagens, mas sempre tentando traduzir o conceito de cross-media, que é adaptar a mensagem que a gente procura passar aos meios de comunicação que são mais adequados a ela.

Andréia Peres, Cross Content

Andréia– E na época que a gente começou, não existia esse conceito de agência trabalhando do ponto de vista jornalístico com material. O que existia eram assessorias de imprensa, que são, na verdade, que eram mais de relações públicas, não de jornalismo. Então as pessoas trabalhavam a imagem do cliente, trabalhavam o release de produtos, e a gente achava, como jornalista e com a nossa experiência, a gente achava que a gente poderia contribuir elevando essa grande reportagem, trazendo a grande reportagem para as organizações como instrumento de mobilização.

Então, por exemplo, a gente que sugeriu esse primeiro relatório que a gente fez sobre a situação da mulher no Brasil, a gente sugeriu porque tinha uma trajetória em vista feminina, e eu via que a gente não tinha um relatório que compilasse os dados e que pudesse ser um instrumento de pressão para a pauta das mulheres, dos direitos das mulheres, porque você só muda as coisas quando você conhece.

Então, para mudar, você precisa de dados, você precisa de análise, você precisa ter uma reflexão que o jornalismo, enfim, contribui para isso, contribui para a democracia, contribui para o progresso, para o desenvolvimento social. Então a gente viu que tinha espaço para uma agência que se preocupasse com grandes reportagens, que se preocupasse em apoiar as ONGs, os organismos, as empresas, em abordar, digamos, em tratar essas questões sociais de um modo aprofundado, pensando no desenvolvimento, no progresso, em usar essas ferramentas da reportagem para o desenvolvimento social.

Então, e não só as ferramentas da reportagem, mas as ferramentas multimídia também, em trabalhar a informação de um jeito que não fosse só texto e foto, que a gente pudesse ter outros apelos. Então, essa ideia do site, que era bem inicial, no começo dos anos 2000, era uma coisa que não se fazia, as pessoas faziam impressão de livro e pronto. Mas como é que você vai chegar a uma população maior? Como é que você pode difundir isso de um modo mais abrangente, num país tão grande e desigual como o Brasil? E agora a gente está pensando até em como usar podcast, por exemplo, como documentário, fazer documentários em podcast também para as agências. A gente está sempre pesquisando outras formas de atingir o público.

#infomedia: E essa transição do jornalismo para a criação desta agência foi muito brusca, foi muito difícil ou foi uma coisa que se fez facilmente e que acabou por se complementar?

Resposta: Marcelo– Ela foi planejada da seguinte forma: a Andrea tinha deixado a Editora Globo e estava pensando seus novos rumos, aí a gente começou a discutir o projeto. Então, ela começou antes, digamos assim, a Cross Content. Eu ainda estava na Editora Abril, trabalhava na Editora Abril, e enquanto ela já estava dando a partida aqui na Cross Content, sozinha, eu continuei mais alguns meses na Editora Abril planejando essa minha transição para cá. Então, digamos que ela foi planejada ali ao longo de um semestre ou um pouco mais, para que acontecesse. Então, foi um trabalho que houve um certo planejamento, mas, obviamente, a gente percebeu logo que a gente tinha algumas das ferramentas, mas não todas, porque como jornalista você tem um tipo de atuação. Como jornalista/empresário, você tem uma atuação diferente, você tem que fazer toda uma questão de gestão da empresa, uma questão de gestão de clientes, obtenção de clientes, como você consegue conquistar os seus clientes.

Foram várias habilidades novas que a gente foi ter que aprender ao longo do período da Cross Content. Hoje em dia, isso ainda é muito mais presente. Você sabe que, conforme as redações tradicionais vão diminuindo de tamanho, o número de jornalistas que viram empreendedores, que fazem as suas próprias iniciativas, abrem suas empresas é muito maior. E eu não sei aí o currículo de vocês em Portugal, mas, em geral, o currículo das faculdades de jornalismo no Brasil, elas não têm foco nessa questão do jornalismo empreendedor, digamos assim. O jornalista como empreendedor, como empresário,

microempresário de comunicação, ou como autônomo, como uma pessoa que leva o seu próprio veículo sozinho, nas redes sociais, etc. Então, toda essa parte, digamos, de negócios da comunicação, a gente não teve na faculdade e também aprendeu ao longo do próprio crescimento da Cross Content. A gente não tinha essa formação anterior.

Andréia– E a gente trabalha, inclusive, com formação de jornalista para essa área social, porque é engraçado que a gente continua, no meu caso, na mesma área que eu trabalho há 30 anos, que é essa área social. E o que a gente agregou, digamos assim, clientes e a possibilidade de fazer essas grandes reportagens num tempo maior, porque você vê que os veículos hoje investem menos nessa área social. A gente tem um vácuo aí, em relação aos veículos, porque você precisa ter todo um domínio dessa área, conhecer legislação, conhecer, ter fonte, enfim, tem uma série de premissas aí para trabalhar nessa área.

E a gente, inclusive, fez uma série de livros de formação de jornalista para essa área. Então, eu acho que tem tudo isso que o Marcelo falou, dessa dificuldade de você se formar enquanto empreendedor, mas nessa parte, como jornalista, foi, na verdade, uma consequência natural do que a gente já vinha fazendo com mais tempo, com quem a gente gostaria de trabalhar.

Então, a gente tem mais liberdade do que num veículo, porque a gente consegue, enfim, contratar bons fotógrafos, que é uma coisa que muitos veículos hoje pensam que qualquer um pode fazer uma boa foto com o celular, já basta, a gente investe em ter bons profissionais, em ter um jornalismo profissional forte, ter bons designers, ter bons fotógrafos, ter bons cinegrafistas, porque a gente sabe que a mensagem, você passa no conjunto.

Jornalismo não é só ter um bom repórter, ou é só ter um bom fotógrafo, quando essas coisas caminham juntas e de um jeito impactante… por isso que começou essa pesquisa, e que o Marcelo está sempre pesquisando outras formas de falar, por exemplo, esse material sobre a pobreza, os vídeos são muito impactantes, a gente viajou o Brasil inteiro, então, assim, são coisas de fôlego ali, você precisa ter uma equipe boa, disposta, precisa ter pré-apuração, até coisas que o jornalismo deixou de fazer por falta de recurso mesmo, a gente faz pré-apuração, a gente antes de viajar, faz uma apuração para quando o repórter vai, ele já tem elemento para poder fazer um bom trabalho em pouco tempo, então, a gente faz mais de 100 fotos, mais de 200 fotos para um livro, quer dizer, é um luxo hoje no jornalismo, é um trabalho de boutique, a gente fala na agência, é um trabalho de boutique mesmo, um trabalho mais refinado, a gente tem mais tempo, tem mais… e as redações hoje estão muito… já estava naquela época que a gente resolveu abrir a Cross Content, já tinha um desinvestimento nessa área, as pessoas já não investiam tanto no jornalismo quando se investia, então, e hoje menos ainda e a gente tem essa oportunidade.

#infomedia: A pergunta que eu vos ia colocar a seguir vem um bocadinho de encontro a isso que vocês até já foram falando, portanto, vocês têm livros também publicados na Cross Content, mas têm muitos conteúdos que também são feitos online e complementam-se, como vocês próprios disseram. A minha pergunta era como é que nós, neste caso, nós jornalistas ou nós comunicadores, conseguimos manter a permanência desses projetos de narrativa no online com todas as falibilidades que existem na web?

Marcelo Bauer, Cross Content

Resposta: Marcelo- É, esse é um problema muito sério, é bem triste, na verdade, a gente vê que o avanço da tecnologia tem, obviamente, o seu lado positivo, na maior parte é positivo o avanço, obviamente, mas na internet, em particular, faz com que muitas coisas se percam, então, por exemplo, se você pensa num arquivo de um jornal impresso, você pode ir lá na redação daquele jornal e pesquisar um jornal de 100 anos atrás.

Hoje em dia, na internet, é muito difícil acontecer isso, porque, seja por mudanças tecnológicas propriamente ditas, ou seja, por falta de investimento das redações, muitas vezes você não tem memória, por exemplo, do que aconteceu 10, 20 anos atrás, não tem memória digital, então muitos, muitos jornais não mantêm os seus arquivos integrais na web, mudam de endereço, mudam de nome, mudam de endereço URL e com isso se perde, então, a memória no digital, ela é muito mais difícil, infelizmente, por incrível que pareça, teoricamente, assim, o digital tem uma possibilidade de armazenar tudo, então, deveria ser melhor. Ao mesmo tempo, a mudança de tecnologia também faz com que isso atrapalhe, por exemplo, eu fiz quatro web documentários, desses quatro, os dois primeiros foram feitos ainda na tecnologia, os três primeiros foram feitos na tecnologia Flash, e o Flash, como você sabe, foi descontinuado, era uma tecnologia da Adobe, a Adobe acabou com ela, então todos os produtos que foram feitos em flash não podem mais ser vistos, então esses três web documentários saíram do ar, não por vontade minha, mas porque a tecnologia hoje não é mais acessível, então a gente tem, do ponto de vista técnico e de investimento, um problema muito grande de manter os arquivos.

No nosso caso, a gente trabalha bastante com produtos cross media. Obviamente é mais fácil a gente manter os arquivos de livros, por exemplo, os PDFs de livros, etc. Mas os sites, em particular, os web documentários ou qualquer produto que use tecnologia que ficou defasada como Flash, é uma memória que se perde, é um problema da web, ainda pelo que eu vejo, sem solução, existem algumas alternativas, por exemplo, existe o projeto Web Archive, que tem as versões históricas de páginas antigas, etc. Mas não é uma coisa tão abrangente quanto poderia ser.

Andréia- A gente até se ressente muito, porque esses projetos que o Marcelo está falando, são projetos que foram premiados, com o prêmio de Direitos Humanos, então são projetos que são importantes e caros para nós, mas assim, você não consegue recuperar. Alguns para o Unicef também, a gente fez um para crianças, chamado Unicef Kids, que era muito bacana, que a gente usou foto para não ter desenho, sabe, para ter a criança representada, depoimentos de crianças, então, assim, muito bacana, mas a gente também perdeu, porque mudou, o próprio Fora da Escola não pode essa base, como é de 2010, que é do censo de 2010 e o censo não foi atualizado, a gente também perdeu, porque os dados estão ficando desatualizados, a gente não teve outro censo, também se perdeu, mudou a tecnologia. É sofrido isso.