Cuidar da bola para valorizar “o nosso futebol”

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Cuidar da bola para valorizar “o nosso futebol”

A paixão pelo futebol é algo que está intrinsecamente ligado à cultura de Portugal. Fernando Valente, treinador, reflete sobre o problema do desporto por cá, num jogo que não valoriza o maior ativo: o jogador.

Com uma carreira com passagens por várias equipas, em Portugal, e no estrangeiro, nomeadamente na Ucrânia e na China, Fernando Valente já presenciou o futebol em vários estados e em várias culturas. Por cá, é seguro dizer que ainda não teve o reconhecimento devido e o seu trabalho para já ainda não foi visto na primeira liga. É um treinador de ideias claras e é nelas que vê o melhor porto seguro para valorizar o jogo e o jogador. Dois elementos que parecem estar esquecidos na alta cúpula.

“Diziam que na segunda liga não era possível fazer jogadas, que não era um jogo ligado e mais operado, e eu consegui”, conta o técnico português, ao falar da sua passagem pelo Clube Desportivo das Aves, que levou a que a formação da Vila das Aves estivesse perto de chegar à primeira liga, em 2014. Para ele, “as equipas jogam aquilo que os que os treinadores quiseram, portanto é uma questão de ideias”.

O futebol como uma paixão

A paixão por esta modalidade é algo que faz parte da sua maneira de viver e de estar, atribuindo a esse sentimento o catalisador para o sucesso. Divulga pelas redes sociais vídeos que demonstram a sua forma de pensar o futebol e de jogar, com uma estratégia clara de personal branding. Numa altura em que a bola é um pouco maltratada pelos relvados deste país, a ideia é clara para o paredense: “Para mim, jogar bem é não perder a bola e marcar golo.”

Ainda dentro desta lógica, reflete: “São os jogadores que se adaptam ao treinador ou o treinador que se adapta aos jogadores? O Paulo Fonseca disse algo que me marcou muito: ‘Nada se sobrepõem às ideias do treinador’”.

A situação atual preocupa e o tempo útil e qualitativo de jogo é motivo de alerta. No caso do primeiro, o último estudo apontava para Portugal em 31º lugar, com apenas 57.09 minutos dos 90 a serem jogados, à data do estudo (Março de 2022). Valente vê nesta questão a oportunidade de discutir ainda outro problema que é “o tempo real de jogo”. Para ele, “o tempo real de jogo é a verdadeira questão”. E complementa: “Alguma coisa está mal. Não quero ter razão, quero é que argumentem sobre o que se está a passar. É porque alguém se lembrou de fazer assim, como é agora a questão dos três centrais, não é o 3-4-3, que na verdade é um 5-3-2 – acabas por matar dois ou três jogadores é a volta da bola que o jogo existe”.

Fernando Valente / Arquivo Pessoal

As ideias nos diferentes contextos

O treinador voltou a Portugal esta época de forma prematura, devido à guerra na Ucrânia, muito até contra a sua vontade. Lá sentiu-se como um “peixe dentro de água” e conseguiu pôr em prática as suas ideias, num projeto que o permitia de forma vincada. “Onde me revi mais e onde pensei que podia acabar a carreira foi na Ucrânia, no Shakhtar [Futbolniy Klub Shakhtar, clube de futebol profissional da Ucrânia]”. O treinador considera que foi convidado “pelas ideias” que desenvolveu em Portugal. “O desafio em ir para a Ucrânia era conseguir que o jogo da academia se aproximasse do jogo da equipa principal, um objetivo que foi conseguido”, admite, sendo aliás este um aspeto de relevo na sua carreira, com a inclusão de vários jogadores das suas equipas em jogos da equipa A nas mais altas competições do futebol, como é o caso da Liga dos Campeões.

O futebol moderno é hoje um espaço onde a ciência e o físico têm uma preponderância bastante superior à que tinham há dez anos. Os departamentos de clubes focam sobretudo no segundo aspeto, acabando por retirar importância ao lado técnico, o que não agrada ao ex-Shakhtar. “O treinador hoje em dia é obrigado a corresponder a determinados valores [físicos]. Eu acho que o treino tem mais a ver com a qualidade das ações. Não vou estar a treinar para o GPS.” Fernando Valente reflete ainda sobre uma agravante relacionada com a preocupação excessiva do jogador com aspetos de performance física. “O jogador agora chega ao final do treino e quer saber quanto tempo correu.”

«Para mim o jogo é com bola, porque sem ela é para correr. Estamos a promover corredores.»

Para além disso, também refere que “temos que investir no jogo e estamos a investir cada vez mais no bodybuilding, andamos mais preocupados com a quilometragem para as fotos do instagram em vez de andarmos preocupados a perceber como é que vamos ultrapassar os problemas que o jogo nos dá, cada vez se corre mais e há mais duelos….ninguém corre mais que a bola. A minha bola corre mais que a tua intensidade.” Ou seja, “ a posse de bola serve para atacar e para defender.”

É algo que em terras lusitanas se vê frequentemente na discussão e no topo da lista de prioridades, com a valorização do jogador a ficar em segundo plano. Ainda assim, esclarece em relação ao jogar bem: “O entender o jogo e o jogar bem não é só o pé para pé que são coisas esteticamente. Depois há a vertente da inteligência que é ver o que é melhor para aquele momento”.

É um treinador que deixa marca onde passa: “A ideia está lá e porquê? Porque ela influenciou positivamente os jogadores. Não interessa falarmos na qualidade dos jogadores, é lógico que tem um papel importante nas ações, mas sendo jogador de futebol há coisas que têm que dominar: passar e rececionar, tem que saber minimamente,  senão, não são jogadores de futebol. Claro que depois há aqui um trabalho árduo, diferenciado que tens que fazer em função dos jogadores.”, explica o técnico.

Pensar a longo prazo, algo que não costuma acontecer em Portugal

Sobre um dos grandes problemas do futebol português, a falta de visão dos dirigentes desportivos é apontada como uma das causas. “Depois também perceberem o que realmente querem e acreditarem depois nesse caminho. As ideias são boas ou más também em função de resultados”

Nessa questão, os treinadores são muitas vezes “atraiçoados pelos resultados“, com culpa no cartório de quem toma as decisões, completando: “É muito mais atraiçoado pela falta de conhecimento daquilo que estão a contratar. Tem a ver com o quê? Tem a ver com a falta realmente de visão daquilo que efetivamente eles pensam que é importante. Porque em todos os projetos há altos e baixos”

Para Fernando, “A diferença muitas vezes entre o sucesso e o insucesso é uma bola ou um autogolo, é uma bola na barra que em vez de entrar bate no poste, aquilo às vezes muda tudo não é? Portanto agora o que é que está por trás? O que está por trás tem que ser ideias tem que estar consolidadas por toda a gente e a estrutura tem que estar muito muito bem preparada”, detalhando.

Arquivo Pessoal

Vê no futebol bem jogado uma maneira dos jogadores “se sentirem bem com eles próprios”, num processo que ajuda a capacitá-los de maior confiança. O conceito da socioafetividade acompanha a sua forma de pensar as relações entre os intervenientes do espetáculo: “Vamos resolvendo os problemas do jogo e vamos desenvolvendo relações não é? Que nos permitem cada vez mais dinâmicas e serem mais eficazes. O conceito de socioafetividade é o que levado ao extremo é o tal conceito de família”. Ou seja, “aquela equipa joga de olhos fechados, aquilo é como a família porquê? Porque eu treino contigo, jogo contigo e depois no fim de semana ainda vou almoçar e jantar contigo, com a família e tudo mais. Isto é que cria realmente as grandes equipas não é? E nós aqui não damos muito valor a isso”.

Portugal é um país com dificuldades em reter talentos, pela sua localização e pela pouca competitividade em comparação com os campeonatos de Espanha ou de Inglaterra e que já não tem uma equipa campeã europeia desde 2004. Não é por falta de talentos formados, garante Fernando Valente: “Aqui em Portugal nós temos muito talento. Eu acho que a qualidade do jogador português está muito acima da qualidade do jogo que se joga em Portugal e a prova disto é que os nossos jogadores quando vão para grandes clubes e vão para o estrangeiro eles têm desempenhos fantásticos.”

Num futebol que depende da bola entrar ou não entrar, o treinador fala dum problema de qualidade de jogo. “Isso de certa maneira condiciona depois a qualidade do jogo, isso demonstra-se pelos nossos estádios, continua a não ir gente ao futebol porque o jogo é pouco atrativo. É pouco atrativo para quem joga neste momento, os jogadores não se valorizam. E nós estamos a pôr em causa o negócio. Estamos a pôr em causa o negócio porquê? Porque se o futebol também tem um modelo de negócio para trás quer dizer que o jogo tem que valorizar os ativos” , afirma o treinador, apontando um problema que gera outros por consequência.

A causa? “Tem a ver com a nossa falta de visão. Há um grande problema de cultura desportiva.”