Deambulações pela Rua de Justino Teixeira para um retrato ilustrado
- Ines Pinheiro
- 27/06/2023
- Especiais Fotografia Híbridos Multimédia
Entre março e junho de 2023, recolhi informação na rua de Justino Teixeira, em Campanhã, no Porto, para compreender as nuances existentes nessa zona, de forma a poder representá-las através da ilustração e pelo mapeamento sonoro. A ideia era encontrar as singularidades desta via – esquecida pelo tempo mas não por aqueles que ainda lá permanecem.
[Texto e ilustração de Inês Pinheiro. Fotografias de Catarina Seemann, Ricardo Garzón e Vicente Ribeiro]
— Terça-feira, 11 de abril de 2023
No primeiro dia (de muitos) no terreno, descemos em direção à Rua Justino Teixeira, a partir do Centro de Negócios do Bonfim, na freguesia de Campanhã, no Porto. No caminho, passamos pelo Centro Infantil criado pelo próprio homónimo da rua que nos competia investigar e, assim, melhor conhecer. Guiados pela professora Vanessa Rodrigues, no âmbito da unidade curricular de Transmedia e Narrativas Híbridas que leciona, fomos desafiados e desafiadas a percorrer, em silêncio, a tranquila Rua de Godim, que é um pequeno trilho que recorda os caminhos rurais e atravessa a rua de Justino Teixeira. O objetivo deste exercício era compreender as diferenças sonoras entre este caminho e a agitação de uma via movimentada. Pontuada pelas vozes provindas da creche a esta adjacente, pouco mais se ouve na sua passagem além dos sons dos pássaros e do ocasional motor de um carro. O aspeto rural da Rua de Godim contrasta com a urbanização da cidade, com o seu caminho delimitado por pequenos muros de pedra e vegetação agreste como fetos reais, avencas e conchelos.
A saída da Rua de Godim para a de Justino Teixeira é marcada pela diferença no pavimento da estrada. Um mês antes de estarmos no terreno, a primeira fase de pavimentação, orçada em cerca de 300 mil euros e realizada ao serviço da Câmara Municipal do Porto terminara, passando de uma estrada em paralelo para uma alcatroada. Os passeios foram também alargados.
Está prevista uma segunda fase do arruamento. Em março de 2023 o concurso estava em fase de lançamento. É público que, desde 2016, esta região tem sido prioritária para a câmara municipal do porto, no sentido de fomentar o desenvolvimento e melhorar os acessos, com vista a converter esta área numa “nova” zona empresarial, tal como noticia a 14 de dezembro de 2016 o jornal Público.
Nesse dia, para melhor conhecer as redondezas, percorremos a Rua de Justino Teixeira até ao acesso norte, passando pela Avenida 25 de Abril e descemos por um caminho baldio íngreme, em terra, preenchido por uma grande quantidade de vegetação rasteira, presente também na Rua de Godim. Este trilho conecta-nos à parte norte da Rua de Godim, uma via larga que se encontra repleta de fábricas de peças de automóveis e de construção, escritórios e novas atividades como o climbing.
Descendo a rua principal em direção à estação ferroviária de Campanhã, o setor automóvel surge como uma parte integral de toda esta rua e os seus arredores. É uma rua de operários, cheia de oficinas e pequenas fábricas, algumas encerradas paulatinamente no decorrer dos anos.
Agora, poucos e poucas são aqueles e aquelas passam pela Rua de Justino Teixeira, além daqueles e daquelas que nela trabalham ou habitam. A presença dos carros apresenta-se como um fator característico desta via, motivada pela conexão à Avenida 25 de Abril, onde agora, desde 2016, aos sábados, se realiza a feira da Vandoma das 08:00 às 13:00.
— Terça-feira, 18 de abril de 2023
Na semana de 18 de abril, fomos novamente ao terreno, desta vez de forma independente, de modo a recolher nova informação, observar, tirar notas, conhecer melhor as dinâmicas desta via, assim como analisar detalhes, de forma a poder encontrar inspiração para o trabalho.
Quase como se estivesse escondida pela dimensão da estação de comboios, a entrada da estreita Rua de Justino Teixeira passa, normalmente, despercebida por quem percorre o conjunto de caminhos que constitui Campanhã. Anteriormente uma das ruas mais movimentadas da região, esta passa agora por um processo de transformação, não só através do arruamento mas também graças ao nascimento de novos estabelecimentos.
Após um curto período de tempo encontramos uma destas novas adições à rua – a loja de antiguidades “Coisas do Tempo e do Mundo”.
Ao entrar, somos imediatamente inundados pela enorme quantidade de objetos, organizados por vezes sem um fio condutor. Peças de cerâmica e de latão, mobílias antigas, miniaturas e figuras, eletrodomésticos antigos e um projetor cirúrgico são exemplos da grande variedade de itens que ocupam a loja. O proprietário, Pedro da Silva Cabrita, que se encontra na rua de Justino Teixeira há pouco mais de um ano, rapidamente se mostra disponível para participar e ser entrevistado no trabalho coletivo. Não existe nenhuma outra loja como a de Pedro nesta rua e a diversidade dos objetos expostos oferece-lhe uma nova especificidade.
— Quinta-feira, 18 de maio de 2023
Almocei no restaurante “Casa Fonseca” com o objetivo de captar o som ambiente do restaurante para o webdocumentário que complementa este diário-reportagem sobre a Rua Justino Teixeira. Às 13:00, o restaurante encontra-se completamente cheio e as vozes dos clientes em conjunto com o bater dos talheres ecoam nas paredes.
Com várias mesas comprimidas no pequeno espaço, a funcionária movimenta-se rapidamente entre as pessoas, referindo-se a cada uma pelo nome. Existe um verdadeiro senso de comunidade no local, frequentado por quem lá vive e trabalha – todos se conhecem de alguma forma.
Existem dois pontos específicos de restauração na subida da Rua de Justino Teixeira: a “Casa Fonseca” e “Os Compadres”, ambos locais já estabelecidos coletivamente nesta rua. O último encerrou portas pouco tempo antes da minha visita, no final de abril de 2023. De uma cor vermelha ofuscante, o café “Os Compadres” tem a sua entrada fechada com uma grade e as janelas preenchidas de madeira, no entanto a sua sinalização continua lá.
Se o objetivo principal deste trabalho é o resgate de memórias, penso que é pertinente eternizar um marco tão essencial desta comunidade como “Os Compadres”, agora fechado após décadas de trabalho – no entanto, permanentemente aberto neste trabalho.
— Terça-feira, 23 de maio de 2023
Após o desafio de hackathon da professora Vanessa Rodrigues à turma, nesta terça-feira de 23 de maio, começo a gravar sons do ambiente da rua para incorporar na minha ilustração como tapete sonoro. Os áudios são gravados numa tentativa de encapsular vários dos elementos da via, já que neste momento ainda não escolhi qual parte específica ilustrar. Gravo, desta forma, o trecho à frente da estação de Campanhã, o som perto de algumas das ilhas, das oficinas e da área habitacional perto da Avenida 25 de Abril.
No sentido norte-sul, duas curvas preparam a subida para a reta principal da rua, onde se encontram a maioria dos negócios. O som dos carros é quase que constante e encontra-se em todos os áudios gravados, mesmo que mais longínquos. Pouco mais se ouve além do ocasional chilrear dos pássaros e os passos de alguns dos moradores.
Testemunhei, também, novas evidências em relação a este local: sob a gestão da associação Miacis – Associação de Proteção e Integração Animal, três colónias de gatos inseridas na área influenciam a dinâmica de toda a Rua de Justino Teixeira. No total, 62 gatos habitam estas colónias, estando uma inserida numa pequena ilha diretamente à frente da estação de Campanhã, outra na Rua do Godim e a última na Rua do Monte da Estação. Criado em 2019, o programa Captura-Esterilização-Devolução (CED), em que esta associação está inserida, visa controlar o número de gatos errantes na cidade do Porto, monitorizando o seu bem-estar. De acordo com a Câmara Municipal do Porto, desde a incepção do programa, foram legalizadas 111 colónias e identificados, vacinados e esterilizados mais de 900 gatos.
Não é possível passar um dia em terreno sem avistar pelo menos um destes animais – todos eles de idade adulta e pelagem diversa de tons alaranjados e cinzentos ou manchados de preto e branco. Com um pequeno corte na orelha esquerda como forma de identificação, a presença destes gatos é quase que inerente à rua. Daí sublinhar esta nova observação para abordá-la no meu trabalho.
— Quarta-feira, 31 de maio de 2023
Saio nesta quarta-feira de 31 de maio de 2023 para a Rua de Justino Teixeira com o objetivo de definir por completo os elementos necessários para a ilustração. Faltava-me principalmente entender como é que conseguiria incluir várias das suas particularidades, que se encontram dispersas, num só local. Procuro então, um trecho desta via que me ofereça essa oportunidade, sem diminuir todos os seus outros elementos.
A maneira que a Rua de Justino Teixeira foi desenhada – uma rua longa, por vezes particularmente estreita – não me permite ilustrá-la na sua totalidade. No entanto, penso importante incorporar todos os elementos que a fazem única, mesmo que seja só numa pequena extensão. Chego á conclusão que o objetivo seria desenhar o trecho da rua entre “Os Compadres” e a “Casa Fonseca”, os dois pontos principais de restauração, não só porque estes vão ser abordados pelos meus colegas mas também por representarem uma parte importante da comunidade local. O cruzamento entre a Rua de Justino Teixeira e a Rua de Godim também aí se encontra, demonstrando a consonância entre o meio mais rural e a urbanização iminente ao seu redor. Ainda, situa-se aí a placa da rua, próxima a um dos muros de pedra.
Tiro fotografias de detalhes que me passaram anteriormente despercebidos com a finalidade de me ajudarem na fase ilustrativa: os pormenores desenhados a vermelho nos azulejos brancos e verdes no exterior do restaurante “Casa Fonseca”, a sinalização da Vinort, uma fábrica de produção de vinhos, e os ornamentos em branco e preto nas janelas e na porta do café “Os Compadres”.
A vegetação característica da rua, a antiga pavimentação em pedra, as colónias de gatos e pequenos detalhes presentes nas reportagens dos meus colegas também aqui estarão, como alguns stickers do projeto “Campanhã é a minha Casa” e a presença do setor automóvel como as oficinas e os carros.
— Segunda-feira, 5 de junho de 2023
Regresso novamente ao terreno de forma a completar o mapeamento sonoro que comecei duas semanas antes. Com o rascunho da ilustração já completamente concretizado, tenho uma maior noção dos locais mais pertinentes para o trabalho de captação sonora, os quais passo a citar. Primeiramente, as oficinas, já que o martelar constante dos instrumentos utilizados permeia a rua toda de forma intermitente. De seguida, perto do edifício da Vinort, já que é um local um pouco mais movimentado, onde os trabalhadores entram e saem dos estabelecimentos à sua volta. A seguir, na rua de Godim, onde pouco mais se ouve além do forte vento daquele dia. Por último, coloco o gravador perto da sinalização da rua de Justino Teixeira, para tentar captar o ambiente geral desta reta.
Noto também a grande quantidade de graffiti espalhados por toda a rua, enfeitando os muros, porém nunca identificados.
— Terça-feira, 6 de junho de 2023
Devido ao vento do dia anterior, sou obrigada a voltar à Rua de Justino Teixeira para regravar alguns dos áudios, estragados em certas partes de maneira irreversível devido à sensibilidade do gravador. No caso dos áudios gravados na Rua de Godim, este retorno acaba por ser vantajoso, já que nos anteriores quase nenhum tipo de som foi captado.
Tiro aqui nota dos edifícios e fábricas abandonadas nesta região e a importância de aqui os representar. Dois estabelecimentos de grande dimensão, seguidos um do outro, e a fábrica de produção de vinho. Os dois primeiros encontram-se situados na margem leste da Rua de Justino Teixeira, diretamente no cruzamento. Tomado quase inteiramente pela vegetação rupícola – heras e unhas-de-gato – e repleto de plantas invasoras como as plumeiras, um dos edifícios é constituído apenas pelas suas fundações de pedra, carecendo de um telhado. Por dentro, inúmeros graffiti enfeitam as suas paredes, não existindo indícios do que este local outrora representava. O outro encontra-se fechado, ainda intacto, porém rodeado de enormes plumeiras. Já a fábrica da Vinort mantém-se imponente, um edifício de enorme dimensão inserido diretamente na reta principal da rua, com a sua cor bege já a começar a destoar com o tempo.
Os estabelecimentos abandonados coexistem desta forma não só com aqueles que persistem ao tempo mas também com as inovações da rua – uma presença constante, imóvel, e uma recordação daquilo que a rua de Justino Teixeira já foi, apesar de todas as suas transformações.