Discriminação Laboral: “A nós ninguém dá trabalho”

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Discriminação Laboral: “A nós ninguém dá trabalho”

[Reportagem de Mariana Oliveira e Raquel Valente]

A discriminação em entrevistas de emprego ou no próprio emprego é algo que continua a acontecer. Dentro da comunidade cigana, negra e LGBTQ+, a comunidade cigana é a que tem mais queixas.

De acordo com a autora Nora Kiss (2017) a comunidade cigana é “um dos grupos mais rejeitados e segregados da sociedade portuguesa. Mais de metade da população admite não se sentir confortável com a ideia de ter colegas de trabalho, de turma ou outras relações de proximidade com pessoas de etnia cigana”.

Existem cerca de 6 milhões de pessoas de etnia cigana na União Europeia e, de acordo com o “Guia Prático dirigido aos órgãos de Comunicação Social para prevenir a discriminação das Comunidades Ciganas” de 2014, “são um dos grupos étnicos mais vulneráveis a situações de discriminação um pouco por toda a Europa”.

Jaime Coutinho, um homem de etnia cigana e natural da cidade de Ovar,  alega já ter sofrido de discriminação no emprego “muitas vezes”. O jovem de 23 anos trabalhou numa empresa que não sabia qual era a sua etnia e passados cerca de dois meses, quando descobriram através de uma conversa onde mencionou esse facto, foi despedido. Relata ter tido um bom desempenho nas funções que exercia, mas mesmo assim, não foi suficiente para ficar com o emprego. 

Neste caso, ocorreu uma situação de discriminação direta, de acordo com a CITE, “considera-se que existe discriminação direta sempre que uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido, ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável”.

Questionado acerca da reação que adveio após o afastamento da empresa, Coutinho mostrou-se emocionado, “senti-me muito triste”. No entanto, revela que não teve a melhor atitude e acabou por ficar descontrolado. “Tiveram que me pôr a mão”, confessa o jovem. 

Um dos amigos que estava a acompanhar Jaime, Lino Braga, de 30 anos e natural de Ovar, acaba por complementar a informação que o jovem de 23 anos estava a transmitir, “se uma empresa me despedisse e voltasse mais tarde a chamar, aproveitava, porque a nós ninguém dá emprego”. A discriminação étnica é algo constante na comunidade cigana e isso, faz com que os jovens Jaime e Lino não recusem nenhum emprego, pois a falta de trabalho é notória.

“Temos muito orgulho em ser ciganos. Os ciganos são muito unidos”, afirmam os jovens.

Segundo Lino e Jaime, associam a população de etnia cigana a pessoas sem posses e por esta razão, inúmeras foram as vezes que foram confrontados ao entrar num estabelecimento. Jaime conta que já entrou num café e não foi sequer servido. “Dizem que nós não temos dinheiro. Pensam que somos todos iguais e não somos”, acrescenta Lino. 

No mesmo seguimento, está a comunidade negra. Ana Laura Bittencourt, uma mulher de nacionalidade brasileira e etnia negra, que vive atualmente em Portugal, confessa que já sentiu discriminação em duas lojas de roupa no Porto. “Na primeira vez que isso aconteceu eu tinha 18 anos e fiquei muito assustada, porque estava sozinha e a funcionária logo perguntou «O que é que você quer? O que é que você quer comprar aqui?» como se eu fosse uma menina qualquer, mas eu tinha dinheiro para comprar qualquer peça da loja”, expressa a jovem. No entanto, as pessoas de etnia branca foram atendidas com outra disposição.

Ana Laura vive em Portugal há 4 anos.
“No Brasil sinto que o preconceito é mais implícito, as pessoas podem te olhar de outro jeito, mas vão ficar quietas ou cochichar. Aqui, as pessoas já falam mais, sem nenhum escrúpulo”.

Sentada no bar da Universidade Lusófona do Porto, lugar onde atualmente estuda, a terminar o curso de Ciências da Comunicação, fala-nos da segunda ocasião. “Entrei numa loja que estava estreando, então era tudo novidade e eu pensei «nossa, que loja bacana que está abrindo»”. Os funcionários não a atenderam, não desejaram uma boa tarde e além disso, “percebia também comentários que via pelo espelho dos funcionários cochichando e olhando”. Depois disto, foi embora, “esse lugar não me merece, essas pessoas não me merecem”, afirma com um sorriso nos lábios e um olhar entristecido.

Felizmente nunca sentiu discriminação no emprego por parte do patrão ou colegas, porém já aconteceu no que toca a alguns clientes, pela sua nacionalidade. 

“Disseram que se não era apta para fazer o trabalho direito como eles queriam, devia voltar para a minha terra, para o Brasil”, pronuncia a jovem.

A cor da pele ou a religião estão muitas vezes na origem da discriminação que se acentuou com a crise migratória. As pessoas de origem brasileira são as que mais sofrem com esse processo. A falta de documentação promove a precaridade e condiciona o acesso ao mercado de trabalho, apesar deste existir, há sempre condicionantes.

Ana Laura, conta que chegou a Portugal sem documentação legalizada, no entanto, o procedimento foi mais fácil, pois os seus pais têm cidadania portuguesa. Após a sua chegada, dirigiu-se ao SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) para tratar da situação documental.

Outrora de ter em sua posse o cartão residente por agregado familiar (válido por cinco anos), “tinha de fazer tudo com passaporte e um papel dizendo que estava esperando a data do SEF”, alega a estudante.

“Estou há mais de quatro anos na fila para a minha cidadania portuguesa ficar pronta”, afirma.

Segundo a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, há um reforço da proteção dos cidadãos. Um dos valores essenciais que se funda e que está consagrado no artigo 2.º do Tratado da União Europeia é a igualdade.

“Somos todos iguais”, afirma a comunidade cigana de Ovar

É na Marinha, no concelho de Ovar, perto do miradouro e do cais da ribeira, que estão localizadas as habitações da população cigana. Ao entrar no bairro social, as pessoas mostraram-se pouco recetivas, devido a antigas explorações que já fizeram destes. Contudo, à medida que o tempo foi passando, a receção tornou-se calorosa. Coleções de histórias, de memórias e de experiências eram aqui partilhadas.

No meio do barulho das crianças, da agitação e da curiosidade, Augusta Soares, mulher de 39 anos, com 4 filhos e natural do Porto, conta as suas vivências. Hoje em dia tem uma sapataria, localizada na praia do Furadouro (a cerca de 4 quilómetros do centro da cidade de Ovar). Apesar de ter um negócio próprio em conjunto com o marido, revela, ainda assim, sentir preconceito por parte de algumas pessoas. “Entram pessoas de todo o lado na minha loja. Eu não sou racista, deixo entrar toda a gente, mas há pessoas que entram, veem que sou cigana e saem”.

Apesar de atualmente ter a sua própria sapataria e o negócio estar a correr bem, o caminho foi longo antes deste feito. “Ia pedir emprego e pela minha cor, pelo meu estilo nunca me contratavam”, divulga Augusta, acrescentando ainda, que por ser de etnia cigana não é bem-vinda a nenhum lado. 

No mesmo bairro, encontra-se Tânia Montoia, uma jovem de 20 anos. De vestido preto e perto da casa de Augusta, que é sua amiga e de todos que a rodeavam, exprime nunca ter passado por atitudes discriminatórias no emprego, mas sim no estágio e na escola. Revela ter sido sempre vítima pela diferença na infraestrutura onde estudava. Natural do Porto, assim como muitos da comunidade cigana de Ovar, explica-nos que o motivo de quase nunca ser aceite foi a sua etnia.

A grande maioria da população vê-se obrigada a trabalhar em feiras por falta de oportunidades e as mulheres de etnia cigana sofrem duplamente, “A sua identidade de género e a sua identidade étnica reforçam-se mutuamente no que diz respeito a representações simbólicas estereotipadas de que ambas as categorias são alvo” (Kiss, 2017).

Para Tânia, as mulheres são as mais afetadas, devido aos seus longos cabelos, a forma de vestir e de falar.

A cidade do Porto é o local onde muitos já viveram e, comparativamente a Ovar, segundo afirmam, as mentalidades são muito diferentes. 

“O Porto é a única cidade onde o cigano vive bem. As aldeias e Ovar é um bocadinho discriminatório”, afirma Litos. 

Manuel Montoia, mais conhecido por Litos (nome artístico) é um homem de etnia cigana de 60 anos com o sonho de fazer música para o resto da vida. A viver em Válega (freguesia portuguesa localizada no extremo sul do município de Ovar), um outro local onde vivem mais ciganos, conta que atualmente está a tirar um curso em Ovar. Encontra-se, então, a fazer o 9º ano, assim como toda a comunidade cigana da zona, mas o seu maior desejo é tocar.

Enquanto fala do seu percurso e do que já viveu, toca, como se a sua vida se tratasse de uma canção. A sua melhor recordação são os tempos em que tocava em pubs, “toquei muitos anos em pubs perto da ribeira do Porto e os estudantes gostavam muito de música flamenca”. Este talento levou-o a aparecer num programa de manhã na RTP1, “um repórter viu-nos, gostou e convidou-nos”, recorda com saudade. Lamenta ainda o facto de estes estabelecimentos terem caído em desuso. 

Segundo o Ministério da Educação, entre 2000 e 2004, o número de alunos de etnia cigana aumentou no acesso ao ensino para cerca de 9335 alunos. No entanto, houve uma diminuição no número de matriculados no secundário, em cursos tecnológicos. No ensino básico, nível 2, entre 2002 e 2004, o número de matriculados manteve-se, bem como entre 2000 e 2002 no ensino secundário, em cursos gerais.

Com o aumento de pessoas de etnia cigana no ensino, os números de analfabetismo diminuem.

Rodeado pelas galinhas que possui em casa, declara que não foi por causa deste sonho que deixou de tentar procurar empregos noutras áreas, como é o exemplo de ajudante de jardineiro. Porém, o gerente, olhando para o seu aspeto, “disse logo «não, já tenho aí um rapaz, já não é preciso» e não tinham”. Acrescenta ainda, “nós notamos, não somos burros”, apontando para os olhos. 

A reação da maioria das pessoas entrevistadas, quando estas situações acontecem é negativa, “fiquei muito triste”, não cabendo espaço para revolta ou fúria, apenas tristeza. Este sentimento permanece por ainda haver pessoas que não consideram as minorias “humanos iguais” nem “dignos para trabalhar”. 

De acordo com o Diário da República, na subsecção  III, Igualdade e não discriminação, está presente o artigo 23.º- Conceitos em matéria de igualdade e não discriminação e o artigo 24.º- Direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho.

Além disto, o conceito de igualdade está também presente no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

No entanto, de acordo com a tese “A Lei e a Discriminação no Processo de Recrutamento e Selecção”, de 2011, Sandra Santos defende que “A lei desempenha um papel preponderante no que diz respeito à alteração de comportamentos discriminatórios, mas não tem capacidade, por si só, para eliminar tais actos”. Para isto, “é necessário que haja um esforço conjunto dos parceiros sociais e é impreterível que o Estado se muna de organismos que auxiliem na eliminação de todas as formas de discriminação”.

“Se levasse tudo a sério, iria ficar muito mal a nível psicológico”

Sentadas na cozinha, encontram-se Telma Miranda e Vera Durão, um casal que partilha a vida há 11 anos. Natural de Coimbra e com 40 anos, Telma explica como é sentir-se rejeitada numa entrevista de emprego, “vim a chorar, porque precisava mesmo daquele trabalho, para dar de comer às minhas filhas”.

Vera e Telma acreditam que “há mais respeito entre um casal homossexual do que um casal heterossexual”. A gentileza, o amor e a fidelidade são os fatores mais valorizados, segundo elas.

Foi na cidade à beira-rio no centro de Portugal que a conimbricense teve a sua primeira entrevista de emprego, num restaurante. Apaixonada por restauração, Telma dirigiu-se ao estabelecimento, onde estavam a precisar de uma funcionária, cujas competências eram atendimento ao balcão, servir clientes à mesa e serviço básico de restaurante. No entanto, estas eram características que segundo os empregadores, Telma não apresentava, “era uma pessoa que pesava muito. Não tinha um perfil adequado para aquele trabalho, porque teria de estar ao balcão a atender pessoas e não era muito bonita”. Após toda esta reflexão e a presença de olhares de cima a baixo, com risos e gozo, a conimbricense saiu do restaurante emocionada.

Porém, isto não foi motivo para Telma desistir de procurar emprego. Confessa ter passado diariamente em frente ao restaurante, na tentativa de perceber se já havia uma funcionária a ocupar o lugar. Após vários dias a observar o estabelecimento, Telma repara que já tinha uma pessoa naquele que seria o seu local de trabalho caso não a tivessem rejeitado.

“Quando apareci lá, vi uma top model, mais bonita e magrinha. Aí percebi porque é que não me aceitaram na altura”.

Casada durante 11 anos com um homem, Telma revela ter descoberto a sua orientação sexual muito mais tarde, comparativamente à sua companheira Vera. Este é um dos motivos que explica o porquê de não se sentir logo excluída por algumas pessoas. No entanto, exprime ter sentido algum preconceito por parte de colegas com quem já trabalhou, “via-os às vezes a brincar, assim com coisas de rapazes. Quando perceberam que tinha uma orientação sexual diferente, passaram a gozar e a rir da situação”. Contudo, nunca levou a sério a maioria das brincadeiras, pois “se levasse tudo a sério, iria ficar muito mal a nível psicológico”.

Conforme indica o Observatório da discriminação contra pessoas LGBTQ+, 2019 foi o ano onde se apresentaram cerca de 171 denúncias. “Todas as situações estão ligadas à discriminação, preconceito e violência em função da orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais, reais ou presumidas, das vítimas“.

Contrariamente, Vera Durão apercebe-se da sua orientação sexual praticamente desde que nasceu, “há 44 anos que me vejo e revejo todos os dias assim”. Natural de Espinho, mas a viver atualmente numa freguesia de Ovar, Maceda, Vera caracteriza-se como “um ser especial”. Admite já ter passado por muitas situações horrendas, por ser lésbica e mulher, “já me fizeram várias perguntas, como «não queres mudar de sexo?»”.

Revoltada e indignada com muitas atitudes de que já foi alvo, a espinhense explica que pelo menos em entrevistas de emprego nunca sentiu isso, pois só fez uma entrevista na sua vida. A trabalhar desde o sexto ano com o atual patrão, Vera Durão assegura que os proprietários do seu local de trabalho desde sempre desconfiaram da sua orientação sexual e quando mais tarde descobriram, disseram “trabalho é trabalho e fora do trabalho é outra coisa”, afirma Vera, com um brilho no olhar. Relativamente aos colegas, o preconceito já era mais notório, “há sempre aquele gozo”, declara a vítima, acrescentando que havia pessoas no seu local de trabalho que lhe diziam “deixa estar que tu és mulher, não podes”, isto quando Vera ia carregar os camiões com materiais pesados para o armazém.