Do passado ao presente: a rua Justino Teixeira pela voz dos moradores

Voltar
Escreva o que procura e prima Enter
Do passado ao presente: a rua Justino Teixeira pela voz dos moradores

Fernando Monteiro, 66 anos, nascido e criado na Rua Justino Teixeira, Maria Idália Magalhães, 62 anos, nascida em Viseu e criada desde 1976 na mesma rua. Maria Fernanda Silva, moradora há 80 anos e Rafael Pereira, quinze anos, dos mais jovens habitantes dos bairros. Quatro histórias que se cruzam entre o otimismo e a incerteza do futuro desta rua histórica. Pressão habitacional, uma comunidade em desaparecimento, mas também boas recordações dos laços criados são algumas das ideias-chave destes quatro moradores.

[Reportagem de Beatriz Costa e Fernando Coelho]

Foto Beatriz Costa – D. Idália, moradora da rua Justino Teixeira

O primeiro som que chama a atenção é o ladrar dos cães, mal se entra no Bairro dos Campos, no número 230, da Rua Justino Teixeira. É uma espécie de sinal que alerta os moradores: está alguém a entrar no espaço privado dos moradores deste bairro. É assim com Maria Idália Magalhães, 62 anos, moradora na casa 7 desta comunidade. Sai de casa e vem ver o que se passa. O momento não é propício para conversar, por isso, cede o número de telefone, para agendar a entrevista. Seria apenas à terceira tentativa que a moradora falaria da sua relação com a Rua Justino Teixeira.

Veio para esta rua muito jovem, ainda com quinze anos, longe dos seus pais, para tentar arranjar trabalho. Com ela trouxe aquele que é o seu marido e com quem formaria família, que cresceria na Rua Justino Teixeira. Não foi fácil de conquistar, conta Maria Idália, mas eventualmente as coisas avançaram e foi com 15 anos que se casou.

Aos 16 anos foi mãe e teve a primeira experiência de qual era a realidade a criar um filho naquela zona. Sem queixas, porque, mais do que a família de sangue, também se formou uma de coração. De ali nunca saiu, desde que casou.


Rua Justino Teixeira
Ilhas do Porto: Domus Social


Com os moradores, Maria Idália formou uma grande amizade, que recorda com carinho, embora atualmente essa ligação o “não seja tão forte como era no passado”. Os tempos mudaram e ela não tem dúvidas de como esse laço desapareceu: “agora somos estranhos”, lamenta.

Maria Idália descreve uma relação fria, no geral. A exceção à atual regra é com o seu vizinho, Fernando Maonteiro com quem continua a dar-se muito bem e onde o espírito de entreajuda permanece forte.

Dona Idália: “O passado e o presente”

«Agora somos estranhos»

– Maria Idália, 62 anos –

O tempo passa, as pessoas mudam. A relação com as pessoas do bairro já não é o que era e Idália sente a falta das amizades que se construíram antigamente. Era uma relação familiar, agora é de estranheza. A confiança não é a mesma e o há vontade também não.

Da parte de cima, mesmo sendo do mesmo senhorio, conta “pelos dedos de uma mão” as vezes que lá foi.

Bairro de Campos

Foi naquela rua que teve os seus filhos, que “não trocam a rua por nada”. Foram criados naquela rua, andaram na escola naquela zona. Tal como os filhos, Maria Idália também não troca a rua e tem o desejo de ficar, eternamente: “Não quero sair daqui da minha zona, porque não me sinto bem em lado nenhum”.

Um dos seus filhos, o mais novo, também tem um forte apego emocional à sua casa. Tirá-lo desta zona? “Nem pensar”. A proximidade e o conforto tornam a sua estadia agradável e fazem com que o jovem de 27 anos não queira , muitas vezes, sair sequer de casa. Não mora na mesma casa que a mãe, no entanto mora “mesmo ao lado” e não é fora do normal aparecer por vezes nem que seja “só para tomar banho e arranjar-se”. A sua rotina consiste em trabalho-casa, num dia a dia familiar e simples.

«Não quero sair da minha zona»

– Maria Idália –

Maria Idália cresceu numa aldeia na freguesia de Ferreiros, em Viseu, mas o seu lar é na Justino Teixeira. “Por muito pobrezinha que seja”, é o seu “cantinho” Embora tenha campa na aldeia, é aqui que quer partir. Nesta zona da rua, as casas tem mais de 200 anos, que naturalmente fazem com que haja alguma degradação com o passar dos anos.

Até pela longevidade das casas, esta rua quase que adquire um estatuto patrimonial, certamente histórico, de relíquias que vão sobrevivendo com o passar dos anos, mesmo com alguma dificuldade. Casas humildes e simples, mas que são suficiente para quem lá vive. A juntar a uma rua onde a relação entre as pessoas era de uma simbiose quase perfeita, ficar foi sempre ao opção com mais sentido.

Idália chegou a passar algumas ‘temporadas’ no Estoril, sem se adaptar, não conseguindo estar mais do que uns dias fora da rua Justino Teixeira, porque é onde se sente segura e em casa e as saudades acabam sempre por aparecer. A sua casa, o seu lar, é onde se sente bem.

Maria Idália: “Mais que uma casa e uma rua, é um lar."

O conflito com a câmara municipal

A disputa entre senhoria e câmara municipal já dura há cinco anos. É descrita mesmo como uma “guerra”, onde a câmara procura adquirir estas propriedades a uma agência privada, que é a atual senhoria, e que procedeu à compra, mesmo tendo a câmara um direito de preferência. Os moradores estão à espera de mudança, mas a única que se prevê será a da destruição do Bairro dos Campos.

As condições atuais são degradantes, os moradores queixam-se de falta de remodelação das suas zonas em específico. Idália descreve a sua casa como “uma miséria”, que necessita de obras e fala de uma janela e uma parte de cima que estão a cair. Idália garante: “Não quero dinheiro, quero uma casa morar na zona onde vivo há 46 anos”.

Com a incógnita do que irá acontecer, Idália afirma que não vai investir, até porque teme que tanto pelo senhorio como pela câmara municipal, as casas estejam para ir abaixo. Assim, os moradores vão continuar a viver nessa incerteza por mais anos, sem saber se vão ter teto e chão para morar, ficando a dúvida de quando é que a guerra entre senhorio e câmara se vai resolver.

«Não quero dinheiro, quero uma casa para morar na zona onde vivo há 46 anos»

– Maria Idália

“Não vou estar a investir dinheiro sabendo que isto está para ir abaixo”, afirma Maria Idália, referindo-se a uma disputa que existe atualmente entre o senhorio e a câmara municipal. É uma afirmação forte, mas que a moradora sente de forma clara.

A incerteza é o que conduz todo este processo, embora Idália tenha bem ciente de que o processo poderá levar mesmo a que tenha que sair, nem que seja a título temporário, da sua casa. Não é a sua escolha, de certo, mas antes sair temporariamente e permanecer depois na rua, do que ver tudo a cair e terminar definitivamente.

«Não vou estar a investir dinheiro sabendo que isto está para ir abaixo»

– Maria Idália

Santos Populares no bairro de Campos

Aproximam-se os santos populares e o clima da festa é notório, embora no passado fosse mais evidente. Outrora, conta-se, por esta altura, a rua estava enfeitada e havia luzinhas. Os moradores iam à janela atirar balões e o bairro respirava um ambiente de camaradagem. “Antigamente quando cheguei também enfeitavam o bairro”, recorda carinhosamente.

Agora já não se vive esse clima de festa, ou é sequer celebrada essa festividade. Na ponta sim, fazem a celebração de São João. Num dos bairros em baixo também irá ser celebrado. No entanto, onde reside e onde está mais próxima isso não irá acontecer. Não é de agora, é algo que se foi prolongando com o tempo até deixar sequer de estar no pensamento dos moradores. Um sinal da mudança vivida.

Se sente falta disso? “Claro”, sem pensar duas vezes. Idália não gosta da confusão do São João no centro do Porto, então um tipo de festividade mais familiar como existia antigamente na zona, era algo perfeito para poder festejar e sair sem a típica confusão. Nesta idade, já não está para grandes sobressaltos.

Os santos populares são uma boa memória, mas não são a única. As saudades de quem partiu prematuramente também estão presentes. Idália recorda os tempos difíceis de quando veio morar para a rua Justino Teixeira. Grávida e apenas com o marido a trabalhar, foram tempos duros, porém a amizade que formou com uma senhora que descreve “como uma mãe” e que um dos seus filhos adorava, é a memória que lembra com maior saudade, mas com alegria. A “avó Micas”, como era carinhosamente chamada, um “colosso” que fica, tais como todas as vivências que guarda com muito carinho, dos seus tempos na rua Justino Teixeira.

«Antigamente, quando cheguei, também enfeitavam o bairro»

– Maria Idália –

A alegria do passado e a confiança no futuro

É impossível falar na rua Justino Teixeira e não falar em Fernando Monteiro. O morador mais antigo. Bem-disposto, com energia para dar e vender. Atento à conversa com a vizinha, comprometeu-se também a falar da sua experiência naquela rua. Afinal, é o lugar que melhor conhece. São mais de 70 anos de vivências e memórias.

Descomplexado, falou no seu escritório, o sítio onde guarda as suas coleções, tanto de carros como de posters do ‘seu’ FC Porto, juntamente com o registo das suas aventuras partidárias no Partido Socialista. Um espaço de memória. É viúvo, mas encara com naturalidade o ciclo da vida. Tem dois filhos, um dos quais ainda vive com ele. A sua energia é contagiante, e a vontade de ajudar também.

 

Voltando atrás no tempo, Fernando recorda com carinho os tempos de escola. “Nem era bom”, diz o morador. É com um sorriso rasgado que relembra as alturas em que se deslocava apenas com um saco de pano rasgado, de onde caía tudo, até a esferográfica.

Não havia dinheiro, mas esses momentos sobrepunham-se a qualquer tipo de ganho monetário. Momentos que o dinheiro não compra, mas ficam registados e passam o teste do tempo. O seu pai trabalhou sempre na estação de Campanha e fazia-lhe companhia à hora de almoço, lembra, numa etapa do seu crescimento.

Fernando relembra brincadeiras antigas, que se foram perdendo com o tempo, brincadeiras de rua que estiveram “sempre, sempre” presentes durante toda a sua infância e adolescência. Numa altura em que não haviam os equipamentos modernos a que nos acostumamos nos dias de hoje, jogavam à barrinha, ao aro ou ao pião. Coisas que atualmente já não se veem e que foram substituídas por telemóveis, tablets e televisões.

Competir para ver quem saltava mais vezes à corda….diversão, no verdadeiro sentido da palavra. “Coisas engraçadas que se perderam”, lamenta, sentindo que era algo que ainda nos dias de hoje se podia fazer. No entanto, também sabe que os tempos evoluem. Há confiança nos jovens para trazer mudança positiva.

O passado está sempre presente, especialmente quando se pensa no que se foi e no que se é. Ninguém diria, pelo abandono visto atualmente, que aquela zona já foi composta por várias fábricas de confeções e de tecidos. “Hoje está tudo ao abandono”, explica o morador, que aponta para um passado em que “as maiores empresas de tecido da cidade do Porto foi na Justino Teixeira”, numa altura em que a rua tinha uma forte influência industrial.

«Hoje está tudo ao abandono»

– Fernando Monteiro –

Em Campanhã, havia empresas de alto transporte, não há muito tempo atrás, onde até se encontravam carroças. Fernando descreve o percurso que era feito a cavalo, onde se ‘despachavam’ tarifas para a Régua, Vila Real, entre outras cidades. A rua Justino Teixeira era muito movimentada, algo que não acontece atualmente e é difícil de imaginar nos dias de hoje, especialmente com a escassez de moradores e de espaços.

As pessoas poderão dizer que família são apenas os laços sanguíneos que já existem e sobre os quais ninguém tem controlo, no entanto, para alguns, família vai além disso. Para Fernando, família é os laços de amizade que se vão criando e que se tornaram indispensáveis na sua vida.

Fernando Monteiro considera a Justino “Uma família”

A amizade, um bem precioso. É o que guarda com mais carinho das pessoas que existiram no bairro, entre quem ainda vive e quem já cá não está. Num clima típico de ‘passa a palavra’, onde não haviam segredos, existia companheirismo e todos se conheciam e sabiam das vidas dos moradores, é algo que não se apaga da sua memórias.

A convivência, que hoje é mais difícil, construída naquelas ruas. Ter amigos como os que Fernando tem com 50 ou 60 anos é “qualquer coisa”, diz o próprio. Amizades que ficam, que são intemporais. Ao seu estilo, Fernando mantém os laços fortes com as pessoas que fizeram parte da sua vida: “Neste bairro isto foi sempre uma família”.

O futuro da rua Justino Teixeira

O futuro é só um, diz-nos Fernando Monteiro. “É quando deitarem tudo abaixo e remodelarem isto”, numa mudança que já devia ter sido feita há mais tempo. “Era para ser o ontem, mas vai ser o amanhã”, revela. A evolução que teve de há 60 anos para agora era algo que não lhe passava pela cabeça, nem dos seus conterrâneos.

Uma coisa é certa: seja da forma que os moradores querem ou não, isto vai continuar. Não tem uma opinião formada, no entanto, de uma forma curiosa, explica que está sempre dependente dos “artistas”, como no circo: “É como no circo, tem lá um que sabe saltar bem na corda, outro que tá ali atrapalhado com a vara mas lá se consegue endireitar…”.

Tem dificuldades em explicar o que queria para a Justino Teixeira e para Campanhã, no entanto tem uma certeza: “Quero evolução”.

Outra das moradoras mais antigas é Maria Fernanda Silva, que já habita na rua Justino Teixeira há 80 anos. Tímida, mas simpática, sabe bem o que é crescer na rua Justino Teixeira e as amizades que fez ao longo do tempo. Chegou com sete anos e nunca mais saiu.

Foto: Catarina Seamann – Maria Fernanda moradora da rua Justino Teixeira

Lembra-se de tudo da rua, até do restaurante onde come todos os dias, que encerra todas as segundas-feiras. É um hábito que tem: comer sempre fora. Antes de chegar à rua Justino Teixeira, morou no bairro da Corujeira, no Porto. A sua mãe trabalhava na cooperativa dos ferroviários e foi através de uma colega que soube que havia uma casa disponível na rua Justino Teixeira. Pode-se dizer que foi uma mudança que só trouxe felicidade para “Nandinha” como é carinhosamente tratada e que ainda mantém após várias gerações. “Daqui só vou para Campanha, para o cemitério”, garante.

As caras conhecidas e as brincadeiras juvenis

Perdeu o seu marido há 23 anos, mas encara com naturalidade. “Se não vai o marido, vai a mulher”, diz. Tal como Fernando Monteiro, aceita o percurso natural das coisas. Não sentiu tanto as mudanças como outros moradores, no entanto reconhece as caras diferentes que vai tendo como vizinhos. A sua filha é uma dessas caras, essa bem conhecida, que se mantém por perto e que serve como companhia.

Brincava à patela, quando era mais nova, lembrou com alegria. O que é comummente chamado hoje em dia como jogo da macaca, antigamente era a patela. É uma memória feliz e tenta demonstrar como é este jogo. Os tempos de criança e na escola, onde já sentia essa timidez e alguma ansiedade social, também fizeram parte desse crescimento. “Ainda hoje, não sou zaragateia”, conta.

Não mudava nada em relação à rua e o conflito entre Câmara Municipal e senhoria passam-lhe um pouco ao lado. “Já não vou”, afirma, porque é um conflito que parece alongar-se no tempo, sem resolução à vista.

Como acontece com os outros moradores, o São João não é indiferente a Maria Fernanda. Afinal, foi nessa celebração que conheceu o seu marido. Cada porta tinha o seu enfeite, conta a habitante. Apesar da sua mãe não a deixar sair quando era mais nova, admite também ter saudades dessa altura.

Da parte dos mais jovens, Rafael Pereira, de 15 anos, já sabe o que é morar na rua Justino Teixeira há algum tempo, quase tanto com os anos que tem de vida. Não sabe precisar, se nove ou dez, no entanto são anos suficientes para ter algum tipo de sentimento em relação à rua e ao ambiente que o rodeia. A sua vocação é a bola e é o que mais gosta de fazer, sendo que até joga, federado, no Futebol Clube Famalicão.

Uma coisa que sempre gostou na rua são as pessoas, mais concretamente os vizinhos, que “sempre foram amigos”. Há chatices, mas fazem parte de qualquer amizade e aqui não é exceção. “Andamos à porrada, mas é na brincadeira”, conta o jovem. Cresceu na rua Justino Teixeira e admite que ajudou a que tivesse uma educação diferente de outros jovens da sua idade: “não somos aqueles filhos mimados”, revela.

«Não somos aqueles filhos mimados»

Rafael pereira
Foto: Catarina Almeida

O que o faz feliz? Os amigos e os vizinhos, que estão sempre a brincar consigo e a jogar a bola. Um ambiente de amizade. Recorda o verão, de qual tem saudades, onde essas brincadeiras eram mais frequentes. Não dúvida que a rua vai continuar igual, como o único senão a ser o estado das casas, que considera que estão “um bocado más”. Ainda assim, permanece o ponto positivo: a amizade das pessoas vai continuar intacta.

Admite que não quer ficar a vida toda nesta rua, embora goste da gente que habita nela. É um ambiente inesquecível, de pessoas amigas e de companheirismo. Para quem é mais velho, pode já não ser igual ao passado, no entanto os laços vão persistindo, seja em que idade for.