“É inegável que a sociedade coloca o idoso no papel de inútil” – a luta por uma autonomia que se perde todos os dias

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“É inegável que a sociedade coloca o idoso no papel de inútil” – a luta por uma autonomia que se perde todos os dias

Em Portugal, o índice de envelhecimento sobe, ininterruptamente, desde 1961. Mostrar que ainda há razões para se levantarem todos os dias, com motivação para realizar projetos pessoais, é um desafio permanente para quem cuida dos anciãos da sociedade, a quem a vida deixou marcas profundas e a ‘última morada’ tolda a vontade de sorrir.

[Reportagem de Tiago Oliveira]

São quase três da tarde. A calma invade o Centro Social e Paroquial de Terroso, na Póvoa de Varzim, para o descanso, depois do almoço. Para Joaquim Ferreira da Silva e Manuel João Martins é um dia diferente da rotina diária e fechada a que já se habituaram, amargura de uma pandemia que pôs os lares de idosos debaixo de fogo. Vão conversar com alguém que não está no Lar.

Primeiro, trazem-me o senhor Joaquim. Depois, o senhor João. Quase não seria preciso perguntar se era a primeira vez que interagiam com alguém através do ecrã de um computador.

“É a primeira vez, não é, sr. João!?”, atirei com um sorriso, para “quebrar o gelo” tanto quanto pudesse. “É…”, devolveu-me com um sorriso cortês, enquanto os olhos percorriam o ecrã à procura de orientação e, de quando em vez, direcionados timidamente para o psicólogo e para a educadora social que o ladeavam, como que a implorar a confirmação de que estava à altura das expectativas.

“Estou no lar porque quero. Ninguém me proíbe de nada!”

Manuel João Martins, 79 anos
Manuel João Martins @Foto cedida pelo Centro Social e Paroquial de Terroso

Para quem viveu uma vida de contacto social, em que as relações com os outros se construíam lentamente e com consistência, partilhar a história de uma vida a alguém que acabara de conhecer há cinco minutos estava fora de questão. Nunca o disse frontalmente. Era, aliás, muito empático e divertido, mas uma vida não se ‘desbarata’ assim. Pensando bem, estava cheio de razão. Mas, era o contacto possível. “Quando puder, venha aqui ao lar que eu faço-lhe uma visita guiada com todo o gosto”, rematou, desfeito em sorrisos enternecedores e cheios de boas intenções. Tinha vontade de falar, mas aquele não era o seu ambiente e tudo aquilo não fazia muito sentido.

Manuel João Martins, 79 anos. Levou uma vida ativa e ‘cheia de mundo’. De Moimenta da Beira, emigrou cedo para trabalhar numa fábrica de chapas. Pelo caminho, ainda foi motorista e foi nessa qualidade que regressou ao seu país, para mais uns anos de trabalho.

Tudo na vida corria bem até que a mulher, com quem jurou viver ‘na saúde e na doença, na alegria e na tristeza’ começou a definhar, de tal maneira que se sentiu incapaz de ‘lhe ser bengala’ sozinho. Não precisava, mas acompanhou-a na institucionalização. Ainda hoje, é completamente autónomo e faz questão de ajudar em tarefas básicas como ‘empurrar cadeiras de rodas’ e ‘pôr a mesa’. Lê o jornal e vê televisão na sua “tablete”. “Foi um amigo que me ensinou”, explica, e volta a sorrir. Não fosse a pandemia, ainda pegava no carro e ia até à “terra, tratar das minhas coisitas”. “Estou no lar porque quero” e “ninguém me proíbe de nada”, garante.

“Teve de ser.”

Joaquim Ferreira da Silva, 59 anos.

Joaquim Ferreira da Silva, 59 anos. Veio da Maia para o mesmo Centro Social poveiro, porque “teve de ser”. A estupefação com a realidade do contacto social possível era ainda maior. As dificuldades de dicção e as falhas constantes na rede de internet tornaram a conversa quase impossível. Estava disposto a ajudar e de boa-vontade. Mas, notava-se que era homem de ‘poucas palavras’ e não tinha o sorriso à porta da boca. Talvez, as vicissitudes da vida tivessem tido o seu impacto.

Fez o 5º ano escolar e foi trabalhar para uma fábrica metalúrgica. Aos 35 anos de idade, um acidente de trabalho confinou-o a uma cadeira de rodas, sem conseguir andar. Solteiro, vivia com a mãe e o irmão. Entretanto, a mãe foi para um lar e Joaquim ficou ao cuidado do irmão. Mais tarde, o irmão faleceu e Joaquim ficou sem ninguém.

Sem condições para viver sozinho, a cunhada ainda acompanhou, mas a Segurança Social recomendou-lhe a institucionalização. Pouco mais disse sobre a sua experiência do que “jogar dominó e falar com os amigos”. Gostava de ter mais privacidade, mas também não gosta de viver sozinho. O lar poupa-o à solidão.

Joaquim Ferreira da Silva @Facebook do CSPT

“Nunca me imaginei a trabalhar com este público, mas foi uma paixão que foi aumentando, pouco a pouco, e hoje não me vejo a trabalhar noutra coisa”

Ana Luísa Mandim, Educadora Social

Ao lado de Joaquim e de João estiveram sempre o psicólogo e a educadora social, para tudo o que fosse necessário. Ainda que a sua presença pudesse condicionar a abertura dos dois idosos, eram imprescindíveis para garantir que o contacto se realizava e ajudaram a dirimir todas as dificuldades de comunicação que surgiam.

Ana Luísa Mandim, 1ª a contar da esquerda @Facebook Ana Luísa Mandim

Ana Luísa Mandim, 26 anos. Educadora social no Centro Social e Paroquial de Terroso, onde estão institucionalizados João e Joaquim.

Delineou o seu projeto de vida pelos caminhos da Educação Básica, mas a média do ensino secundário não lhe era suficiente e seguiu em direção à Educação Social, que também lhe interessava. Concluída a licenciatura, estagiou com crianças em situação de risco social, famílias carenciadas e idosos. “Foi um processo de aprendizagem. Comigo, não foi: «ah… eu sempre gostei de idosos. Sempre foi uma coisa que eu quis fazer!». Não, de todo! Nunca foi uma realidade que me cativou. Nunca me imaginei a trabalhar com este público, mas foi uma paixão que foi aumentando, pouco a pouco, e hoje não me vejo a trabalhar noutra coisa”.

Percebeu aí qual era o caminho que podia seguir com um brilho nos olhos e foi tirar um mestrado em gerontologia. Apresentou a tese, onde refletiu sobre “envelhecer, recordando aprendizagens” e fez estágio na instituição que lhe abriu as portas para conhecer o espaço no exato momento em que apareceu, sem aviso prévio. Visitou logo “todos os locais da instituição, inclusive os quartos” e decidiu que era a aquela opção que ia escolher. Cumpriu estágio e foi contratada. É, ainda hoje, o refúgio onde cumpre a missão de uma vida.

“Agir como se fosse uma deles”

Rita Abreu Marins, Assistente Social

Fora dos lares de idosos, há outros modelos de promoção do envelhecimento ativo, como são os centros de dia. Nestes, os idosos não ficam a dormir, mas passam lá, a maior parte ativa do seu dia.

Rita Abreu Marins, 59 anos. Assistente social na Sala de Convívio Beata Alexandrina, do Centro Social de Balasar, que encerrou com a pandemia. Hoje, fala com emoção de um dos períodos mais marcantes da sua vida.

Rita veio do Brasil e vive em Portugal há 26 anos. Na ‘Terra de Vera Cruz’, licenciou-se em língua portuguesa e espanhola, com especialização em metodologias de ensino da língua estrangeira. Cedo começou a trabalhar como ajudante de padeiro, trabalhou numa sapataria e, ainda a licenciar-se, desempenhou funções no Consulado de Portugal no Brasil e deu aulas de Espanhol no Centro de Línguas de uma escola pública brasileira, a convite de uma professora sua. Ainda deu aulas noutras escolas do país, antes de iniciar uma nova etapa da sua vida, em Portugal, quando acompanhou o marido, que veio fazer um mestrado. Gostaram e ficaram.

No período de adaptação a uma nova realidade, trabalhou numa loja de eletrodomésticos e foi animadora sociocultural, antes de decidir fazer uma segunda licenciatura em Serviço Social.

Transitar, de Letras para Serviço Social não é tão abrupto como parece. “A minha motivação pessoal sempre foi estar ao serviço do outro”, justificou, lamentando não se ter adaptado ao sistema de ensino português e não ter tido oportunidades de trabalho na área. A paixão pelo Serviço Social era intrínseca, porque “não está distante do ensino, porque a capacidade que o indivíduo tem de se conhecer, de se autoconhecer e de adquirir novos conhecimentos dá-lhe liberdade e autonomia. Seja em que idade for”, realçou.

Rita terminou o estágio da licenciatura com 20 valores e foi convidada a ficar na Instituição onde estagiou. Trabalhou na área do combate ao insucesso escolar. Sentiu-se, novamente, realizada.

@Facebook de Rita Abreu Marins

A história com os mais velhos surgiu por acaso. Umas pessoas conhecidas que coordenavam a Sala de Convívio Beata Alexandrina, em Balasar, iam ausentar-se temporariamente, e, sabendo da sua formação académica, convidaram Rita a substituí-las voluntariamente e por um curto período de tempo.

“Numa semana de trabalho voluntário, criei um projeto a ser cumprido. Envolvi os idosos, as pessoas que estavam com os idosos e preparamos uma festa de boas-vindas, que parece uma coisa muito simples, mas não é… para as pessoas que iam regressar ao trabalho para estar com eles. Durante essa semana, movi e convidei pessoas da comunidade a participar, preparei os idosos para atuarem. Utilizei a cultura popular, que era uma coisa inerente… a sabedoria popular. Utilizei cânticos, culinária, ou seja, preparamos uns petiscos juntos… eles elaboraram a ementa da festa… E isso calhava numa segunda-feira de Carnaval, ou seja, combinamos essa festa com o Carnaval. Coisas que eles nunca tinham experienciado. Foi uma grande surpresa!”, recordou.

Sala de Convívio Beata Alexandrina @Facebok Rita Abreu Marins

Rita sentiu muitas dificuldades para que os idosos aceitassem participar nas iniciativas. Não estavam mobilizados, mas insistiu e mostrou-lhes que eram capazes, colocando-se no lugar deles e procurou “agir como se fosse uma deles”.

A festa foi um sucesso e Rita sentiu-se realizada com isso. “Estirei-me no chão e comecei a gritar ‘Yes!’”. “Numa semana, de 9 utentes, passamos a ter 18”, regozijou.

O aumento exponencial de utentes sobrecarregou os coordenadores da Sala de Convívio que sentiram a necessidade de profissionalizar o projeto social. Rita foi novamente contactada, premiada pelo mérito e contratada. Foi criado, assim, o grupo ‘Yes!’.

“Sofri imenso, pelo facto de ter deixado de fazer aquilo que eu mais gostei na minha vida”

Amélia Pereira, Professora Aposentada.

A institucionalização e a pré-institucionalização de idosos ainda está muito associada à consequência de uma qualquer limitação física ou mental que surge com a idade. Do lado de fora das instituições, passam, pelos ‘pingos da sociedade’, idosos perfeitamente autónomos e lúcidos, que dispensam, enquanto puderem, qualquer tipo de condicionamento, ainda que bem-intencionado, à sua rotina de vida.

Amélia Pereira, 77 anos. Professora primária aposentada. Reformou-se com 53 anos, “no tempo das vacas gordas”, brinca e solta uma gargalhada bem mais jovem do que a idade que acumula. Começou a lecionar aos 20 anos de idade e, naquele tempo, quem cumprisse 33 anos de trabalho na função pública, podia aposentar-se sem penalizações.

Amélia, quando sonhava ser professora @Facebook Amélia Pereira

Amélia é oriunda de uma família rural de Vila do Conde. Aos 7 anos, enviou uma carta ao pai, emigrado na Venezuela, a implorar que a deixasse prosseguir os estudos porque tinha o sonho de ser professora. Naquele tempo, com tanto trabalho no campo e tanta pobreza, não eram todas as famílias que conseguiam suportar filhos que estudassem mais do que os primeiros 4 anos. Amélia conseguiu o consentimento do pai.

Prosseguiu os estudos no Liceu da Póvoa de Varzim e teve de ficar lá a viver, sem a família. Não havia meios para que se deslocasse num percurso tão longínquo como eram o Liceu e a aldeia de Vila do Conde onde vivia. Hoje, a viagem faz-se em 20 minutos de carro.

Lecionou em Santo Tirso e em Lomba, Gondomar, “por engano”, desabafou. Pensava estar a candidatar-se a uma escola pública perto do Porto mas, quando deu por ela, estava a atravessar para o ‘lado de lá’ da margem do Rio Douro. “Já viste uma miúda de 20 anos, numa terra desconhecida!?”, atirou em tom apavorado. Teve de ser acompanhada pelos pais e pelo padre “Alceu”, da aldeia. Acabou a lecionar na escola primária das Caxinas, em Vila do Conde, onde passou a viver com o marido, quando casou.

Quando a sogra de Amélia ‘acamou’, a responsabilidade de cuidar dos mais velhos reforçou a decisão para pôr fim à vida profissional. “Quando me reformei, custou-me imenso e sofri imenso, pelo facto de ter deixado de fazer aquilo que eu mais gostei na minha vida”, desabafou.

“É tudo um processo.”

Ana Luísa Mandim, Educadora Social

Luísa descreve o primeiro impacto e os primeiros meses com idosos como uma realidade confusa e nada fácil. Entrou no Centro Social e Paroquial de Terroso com vontade de pôr em curso um conjunto de atividades que estimulassem a monotonia em que, muitas vezes, caem os idosos. Esbarrou, porém, numa resistência considerável à interação, por parte dos idosos.

Para Luísa, a maior parte dos idosos, neste contexto, baseia as suas relações na confiança e, por isso, o foco inicial do seu trabalho é, sempre, conquistar e manter a sua confiança.

“Não se conquista a confiança de hoje para amanhã. O facto de não se ter logo a confiança e de levar muito tempo – e quando digo muito tempo, é mesmo muito tempo, não se pode chegar à beira de uma pessoa e sentar para conversar sobre a vida dela, por exemplo, porque a pessoa não te vai dizer nada”, explicou a Educadora Social, que percebeu, no estágio, que a sua área de intervenção, as atividades de enriquecimento cognitivo, teriam de ser precedidas de um longo período de conquista de uma relação de confiança.

Num mundo em que a rotina é, cada vez mais, contada ao ‘segundo’, um lar de idosos pode parecer um ‘mundo à parte’.

A confiança de um idoso conquista-se com um ingrediente simples, mas desafiante: o tempo. Tempo e um cuidado redobrado de características nas relações humanas saudáveis.

A estrutura das equipas de uma instituição para idosos não pode ser muito flexível. Mudar constantemente os assistentes sociais danificaria a estabilidade e a confiança de quem mais importa num espaço como este. Estabelecida uma relação de confiança, a Educadora Social vê nas atividades uma componente essencial para a estimulação cognitiva do idoso.

A chegada às instalações tem uma rotina à qual Ana Luísa não consegue escapar. As primeiras dezenas de minutos do dia são passadas a tratar do registo de recados dos idosos, que buscam alguém que os ouça nas pequenas tarefas em que precisam de auxílio, nos queixumes de desavenças vividas na noite anterior e até de mexericos. É tudo ultrapassado com humor e sentido de compreensão. Afinal, os problemas de convivência são naturais em pessoas que partilham o mesmo espaço, a toda a hora, e as personalidades antagónicas têm de coexistir.

Seguem-se as dinâmicas de estimulação dos idosos. A Educadora Social deu o exemplo de uma atividade que realizou na Instituição. “Na dinâmica de hoje, o objetivo era que eles identificassem as pessoas… No Natal fizemos uma sessão fotográfica, uma sessão de Natal. Hoje, resolvemos juntar o útil ao agradável, pegar nas fotografias que eles tinham tirado e questionar se eles conheciam a pessoa que estava na fotografia. Por incrível que pareça, eles sabem identificar as pessoas, mas muitas vezes, não sabem o nome, uns dos outros.”, explicou. Assim, atividades básicas do dia-a-dia são articuladas para uma avaliação da condição dos idosos e as suas capacidades são postas à prova, sem que sintam que ‘voltaram à escola’.

A regularidade das atividades é essencial para os idosos institucionalizados. “Se um jogador de futebol não treinar todos os dias, no final da semana não vai conseguir jogar. Se um idoso não for estimulado a fazer algo, diariamente, ele vai deixar de querer fazê-lo, porque acomoda-se.”, exemplifica Ana Luísa, que admite que o processo de institucionalização de um idoso é sempre complicado porque a pessoa raramente é institucionalizada por vontade própria. Ainda que se trate de uma solução para um problema de saúde, solidão ou impossibilidade da família em satisfazer as necessidades do idoso, a Educadora Social reconhece que é muito difícil deixar a casa, o quintal e o ambiente que o idoso construiu durante uma vida. Essa realidade justifica todo o conforto e o empenho no desenvolvimento de atividades que ocupem os idosos, que precisam de reunir motivos para considerar que são mais as vantagens na institucionalização do que as desvantagens.

A autonomia é uma das maiores preocupações dos idosos que, perante a ameaça constante da perda das suas faculdades, fruto da idade, valorizam muito o poder de executarem as tarefas mais básicas autonomamente. Essa é uma das garantias dadas por Ana Luísa, que manifesta a preocupação em estruturar o planeamento dos trabalhos respeitando a autonomia dos idosos que ainda têm essa capacidade.

“Pode, às vezes, ficar mais sensibilizado com a realidade que encontra, uma vez que a realidade dos lares é, muitas vezes, de pessoas mais debilitadas”, adverte Ana Luísa, que identificou assim um dos motivos que pode estar a afastar idosos autónomos das instituições.

Mesmo limitados, os idosos são estimulados a um estilo de vida ativo @Facebook do CSPT

A Educadora Social considera que a criação de ‘aldeias comunitárias para idosos’ em que a sua autonomia é preservada por pequenas habitações individuais, e até mesmo um maior acompanhamento dos filhos, são as soluções ideais mas, de certa maneira, utópicas. Ana Luísa lamenta que as ‘aldeias comunitárias’ sejam financeiramente insustentáveis para o poder económico que a maioria das pessoas tem em Portugal, e que as famílias tenham, muitas vezes, dificuldades em acompanhar as necessidades dos seus idosos, pelas exigências e responsabilidades que o trabalho e os filhos acarretam. Preparar o processo de envelhecimento antecipadamente, com um abandono gradual do mercado de trabalho, é uma forma de envelhecer ativamente. “É preciso olharmos para o envelhecimento de forma mais natural e não como um peso, que nos traz, porque toda a gente acha que os idosos são um peso para a sociedade, e não! Não são. Envelhecer e aprender andam muito de mãos dadas”, rematou.

Não se pode negar as fragilidades do idoso (…) mas corta-se vários ramos de oliveira com azeitonas, traz-se para dentro do espaço e eles vão curar as azeitonas (…) E eles comeram dessas azeitonas.”

Rita Abreu Marins, Assistente Social

A pandemia da covid-19 deixou marcas complicadas no tecido social português. A sala de convívio beata Alexandrina fechou portas por falta de meios para adaptar o espaço às novas exigências, fruto da pandemia, mas também porque está em construção o novo edifício do Centro Paroquial de Balasar. Rita recorda mais de dez anos de um trabalho inexcedível de valorização da pessoa idosa.

@Cedida por Rita Abreu Marins

“Um assistente social que está num grupo não pode impor o seu modo de vida, as suas ideias, as suas experiências. Tem que perceber quais são as ideias, quais são as convicções, quais são as perspetivas de vida, qual é a cultura daquele grupo com o qual está a trabalhar. Eu tive pessoas que nunca tinham comido um iogurte na vida. E comeram a primeira vez, um iogurte, na sala de convívio. Tive pessoas que nunca tiveram um bolo de aniversário, com oitenta e muitos anos. Pela primeira vez, tiveram um bolo de aniversário”, sustenta Rita, que estruturava o seu plano de ação com o ‘grupo YES’ na positividade e na utilidade de um conjunto de pessoas que, pela idade, insistiam no desprezo pela autovalorização.

A Assistente Social conta que uma forma de motivar e valorizar os idosos que frequentavam a Sala de Convívio era a recuperação de memórias do seu período de vida ativa, através das quais Rita se dedicava a encontrar formas de recriar e fazer entender que, com pequenas adaptações, era possível continuarem a fazer. “Não se pode negar as fragilidades do idoso (…) mas corta-se vários ramos de oliveira com azeitonas, traz-se para dentro do espaço e eles vão curar as azeitonas (…) E eles comeram dessas azeitonas”, exemplifica.

A conjugação dessa perspetiva com o objetivo de conferir utilidade a todos aqueles que se confrontam cada vez mais com a sensação de já não servirem para nada, regia o dia-a-dia da Sala de Convívio. Rita procurava transportar para a pequena sala comum o maior número de atividades produtivas que os idosos pudessem desempenhar. Tudo com um objetivo muito específico: produzir bens e serviços que pudessem ser disponibilizados à comunidade ou para consumo próprio. A sala de convívio era praticamente autossuficiente por esse motivo.

Além da cura das azeitonas, os idosos foram incentivados a criarem galinhas, cultivar uma horta, pintar quadros e outros trabalhos de arte manual, bordar aventais e coser meias. Com trabalhos próprios e levados a cabo “quase de raiz”, participavam em todas as feiras na freguesia para vender os seus produtos, criavam eventos de exposição de arte e recebiam personalidades políticas, religiosas e civis a quem ofereciam a refeição. O resultado estava à vista: demonstrar ao idoso que ele é capaz e tem um papel a desempenhar na sociedade, com utilidade.

Para Rita, o envelhecimento ativo passa pela integração possível do idoso na sociedade, seja com a família, seja em “aldeias comunitárias de idosos” abertas e integradas na comunidade. Não é desejável a institucionalização, ainda que muitas vezes necessária, porque a desagregação do idoso é desconfortável e alimenta o sentimento de alguém “descartado”, “à espera da morte”.

A transferência de uma utente sua para um lar de idosos, marcou-a profundamente. E ao grupo de idosos da sala de convívio também, que fizeram uma manifestação em oposição à transferência da colega. Rita visitou-a todos os dias, até ao dia da sua morte e registou as conversas. Estava fisicamente limitada, mas lúcida. Não queria estar lá.

“Coitados daqueles que têm a reforma mínima. Não conseguem nada!”

Amélia Pereira, Professora Aposentada

Amélia tem condições físicas e psíquicas para levar uma vida perfeitamente autónoma. Está reformada há 24 anos e vive sozinha desde que, há 5 anos, lhe faleceu o marido. Tem o apoio próximo dos dois filhos, com quem convive regularmente e de quem fala com carinho e orgulho, designando que “são as joias que eu tenho”. O lar de idosos está no horizonte… quando mais nada houver a fazer. “Eu para já sou muito independente e consigo orientar-me devidamente. Mas, se um dia eu ficar dependente e precisar mesmo de ajuda, é para o lar que eu quero ir. Já tenho dito isso muitas vezes e digo mesmo à minha filha, «quando eu não puder fazer as minhas coisas, mete-me no lar, porque eu sei que vocês não podem, têm os vossos filhos para cuidar, têm a vossa vida. Só vos peço uma coisa, que me vão visitar»”, explicou.

Amélia com amigas da ginástica @Facebook de Amélia Pereira

A professora aposentada tratou imediatamente de ocupar os seus dias, assim que se reformou. Além das caminhadas diárias à beira-mar, inscreveu-se numa turma de ginástica sénior, acedeu ao convite do padre para ler na igreja e ‘dar catequese’ na sua paróquia, tendo-se aproximado novamente das crianças, de quem tanto gosta. Amélia ainda lê livros com regularidade, anota as citações que a põem a refletir nas coisas e frases marcantes que ouve na televisão, em reportagens e homilias das Eucaristias que televisiona.

“Nunca teve momentos de solidão!?”, questionei. “Eu nunca tive solidão. Eu sou uma pessoa dinâmica, não paro! Vou para a pastelaria, ter com as minhas amigas. Ou pego num livro e leio. Um livro é sempre um companheiro”, disparou entre risos e com uma assertividade que colocou rapidamente a provável ‘lamúria’ que a pergunta podia sugerir, para onde deve ser remetida: “atrás das costas”.

Amélia lamenta que os melhores serviços de institucionalização, onde sente que a sua autonomia não é beliscada, sejam financeiramente incomportáveis para a maioria das pessoas. No seu caso, aufere uma pensão de 2.000€ e as instituições que conhece onde se pode instalar numa ‘habitação tipo T0’ e manter a sua autonomia e privacidade, cobram valores próximos da totalidade do valor que aufere. Dessa forma, prefere manter a sua atual condição.

Em tom de desabafo, Amélia expõe as dificuldades financeiras como um dos maiores entraves ao envelhecimento ativo dos idosos portugueses. “Coitados daqueles que têm a reforma mínima. Não conseguem nada! Esses, nunca na vida. Bem podem morrer num canto. Não têm apoio nenhum.”, rematou.

Tiago Oliveira

Rendido ao privilégio do ser humano em configurar-se como ser pensante e comunicante, mas também ao particular carinho pela língua portuguesa, licencio-me em Ciências da Comunicação na Universidade Lusófona do Porto. Colhendo as vantagens e desvantagens de ser um provocador contracorrente, posso assumir-me apaixonado pela rádio e pelo jornal. O mundo digitalizado é uma bênção, mas promotor de superficialidades de raciocínio, que fazem das competências para ler e escutar, também no digital, bens de primeira necessidade, pelos quais vale a pena lutar. Escravo da democracia e lacaio da transparência, é na essência da atividade política que me revejo a desmistificar ligações entre eleitos e eleitores, e a abrir as cortinas e as janelas dos corredores (muitas vezes) bafientos do poder. Trespassa-me o coração ser poupado e superficial nas palavras. A língua portuguesa não se come, saboreia-se.

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