Escola de cães-guia para cegos: a melhoria da qualidade de vida dos invisuais
- Inês Santos
- 18/06/2022
- Atualidade Portugal
A Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual é a única escola de cães-guia no país. Segurança e autonomia são as premissas da educação do animal.
[Reportagem de Inês Santos]
Passam poucos minutos das três da tarde, e a tranquilidade do pinhal de Mortágua acalma toda a ansiedade dos mais de 90 quilómetros de viagem. Perdidos nas ruas estreitas envoltas por pinheiros e eucaliptos, o caminho é-nos indicado pelos cães que dão o seu habitual passeio, o que nos dá a certeza que estamos perto da Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV). Subimos a íngreme rampa e contamos três edifícios. Em volta um grande espaço verde. Entre poças e num andar apressado entramos no edifício principal. Ambiente calmo. Uma receção e três gabinetes. Filipa Paiva, diretora técnica, surge de uma das portas. Com um olhar calmo e um tom sorridente, o “Boa tarde” ecoou por todo o corredor. Direcionou-nos às escadas. Subimos até à sala de reuniões. Com as mãos entrelaçadas em cima da mesa, Filipa fala sobre a escola.
A ABAADV é a única escola de cães-guia no país. A associação surgiu em 1996 como sendo um projeto comunitário e assim se manteve nos três anos seguintes. Durante este período teve a oportunidade de dar formação aos dois primeiros técnicos, começar a contactar criadores e construir o que é hoje em dia a estrutura para o edifício original. No final de 1999, as verbas que auxiliavam o projeto terminaram e, pouco tempo depois, a associação foi reconhecida como sendo uma instituição particular de solidariedade social.
“Quanto mais difícil for um cão melhor para mim”
Ao longe ouvem-se passadas rápidas nas escadas. Vítor entra na sala. Com uma respiração ofegante apresenta-se e senta-se de forma convicta.
Vítor Costa é educador. Está na associação desde o início. Em 1996 foi para França fazer a formação de educador na Federação Francesa de Escolas de Cães-Guia. Terminou o curso em 2000. Nesse mesmo ano, fez a entrega do primeiro cão-guia em Portugal, a Camila.
Todo o processo de educação do cão é delineado desde o inicio. O cão nasce na escola, e após o nascimento é feito um acompanhamento diário, a partir dos três dias de vida, “ele começa a ser manuseado, testado e observado” para determinar certas características. O cão trabalha, em média, 150 horas, sempre em contexto real. A educação tem três fases de evolução:
A primeira é a fase de introdução. O educador começa a verificar que tipo de cão é, e que trabalho é que tem de desenvolver, sabendo que “os objetivos finais são sempre os mesmos”. Esta tem uma duração de três semanas, cerca de doze horas. No final deste tempo o educador traça o perfil do cão.
A segunda fase é a introdução de conhecimentos. Nesta fase o cão aprende os conceitos que vai pôr em prática no futuro – como por exemplo: avança; busca escadas; busca linhas; à esquerda, à direita – são cerca de trinta e cinco ordens e perante elas o cão tem “de ter uma adequação técnica, salvaguardando sempre a segurança, autonomia e independência da pessoa.” O cão adquire conceitos mais fáceis e vai tornando-os mais sólidos, e só depois é que há uma evolução para a maior dificuldade.
A terceira e última fase denomina-se de consolidação de conceitos. É nesta etapa que se determina a capacidade do cão realizar as ordens com “capacidade de decisão, maturidade e responsabilidade” através da prática contínua. Por vezes o cão aos dezoito meses já está preparado mas, ainda executa “o trabalho de forma leviana e jovial”. Assim, o cão necessita de passar mais tempo na escola para que o educador o “acalme de forma realizar o trabalho de forma responsável”.
A raça labrador é sempre a mais usada neste tipo de situação, mas porquê? O cão-guia tem de ser sociável, com temperamento calmo e capaz de deter o máximo de informação possível e de a confrontar de forma afável. O labrador reúne todas essas características e é muito fácil de passar de mão para mão. É um cão que mostra sempre uma grande disponibilidade e motivação para o trabalho. A par disso, é também uma raça que promove a integração social, dado que, a probabilidade de interação das pessoas com o animal é maior do que com raças mais ligadas à defesa, como o pastor-alemão. |
Até ao momento Vítor já fez a entrega de cerca de 125 cães. Todos eles diferentes. Com alegria no olhar, o educador confessa “gosto muito do que faço”. O trabalho não lhe exige uma rotina, todos os dias são diferentes, “eu saio daqui e faço o trabalho como bem entender, só tenho que atingir objetivos”. Embora lhe seja difícil de admitir, a profissão também tem os seus defeitos. Atualmente, Vítor trabalha quatro cães e diariamente percorre mais de dezasseis quilómetros de marcha, o que se torna “desgastante”. A exigência de trabalho físico, aliado à elevada “necessidade de concentração e capacidade de avaliação” são, para o educador, as partes mais difíceis da profissão.
“Para mim é profissional, e tem que ser” são as palavras que Vítor usa para caracterizar a relação que tem com os cães. Com um tom mais pausado, revela a dificuldade que sentiu no início da sua carreira no momento de entrega dos animais, “em 1996 eu entreguei cinco cães e desses cincos cães em todos vieram-me as lágrimas aos olhos”. A estrutura de organização da escola não era igual, alguns cães chegavam a ficar em casa dos educadores o que criava um “vínculo muito mais próximo”. Agora, com mais de 22 anos de experiência, Vítor gosta de ver a relação como “estritamente profissional”.
É mais um cão, é mais um cão que eu tenho como objetivo fazer dele o melhor cão possível e dar e proporcionar e ser uma ajuda para que a vida da pessoa pra quem vai aquele cão se torne mais autónoma.
Vítor Costa
Todos os cães são um desafio. E Vítor, como bom aventureiro, salienta “quanto mais difícil for um cão melhor para mim”. O educador e o cão passam horas a fio juntos e a química entre ambos é algo que deve estar presente “Eu já duas ou três vezes disse assim «Este cão não se encaixa comigo» e até digo aos meus colegas «Não te interessa trabalhares? Porque eu não estou aqui a ver química entre mim e ele»”. A par disso, a alegria do cão é algo que é valorizado por Vítor, não gosta de trabalhar cães que “não estejam alegres” e que não tenha uma relação afetiva. Quando os cães chegam à escola depois de horas de educação, continuam a ser estimulados. Por norma, os cachorros convivem uns com os outros até à hora de serem recolhidos para o canil, por volta das 18 horas.
“Se tudo correr bem, corre tudo bem para mim, para a escola e para o utilizador.”
O processo de entrega de um cão-guia pode variar entre dois e três anos. O cão é submetido a um conjunto de testes finais — teste de olhos vendados, troca de educadores — que determinarão se ele está pronto. Se o cão obtiver avaliação positiva, o educador vai tentar adequar o cão à lista de pessoas que foram avaliadas e se encontram em espera. Sempre com a ideia de que o cão “tem um temperamento, tem um comportamento, tem um ritmo de andamento, é predisposto para este ambiente”. A pessoa que receberá o cão poderá não ser a pessoa que está à frente, dado que o educador poderá ter de “saltar de acordo com caraterísticas mas terei que o justificar”.
Essa pessoa depois é chamada e realiza um estágio de quinze dias. Este estágio é realizado em dois locais. Na primeira semana o cego vai à escola onde trabalha diariamente com o educador. A escola está equipada com uma kitchenette e com um quarto com capacidade para duas pessoas. No fim-de-semana, o invisual leva o cão para casa, ainda sem o arnês. Na semana seguinte, o educador desloca-se até ao local de residência do invisual e fica lá até ao final da semana. Durante este tempo trabalham juntos nos trajetos que o invisual pretende realizar no futuro. Esta formação é “totalmente paga pelo invisual, consoante o seu rendimento per capita.” No final, é entregue o arnês ao invisual que é “como se fosse o diploma da dupla”. A partir desse momento o cão torna-se responsabilidade da pessoa cega, que acarreta todos os cargos. A nível legal o cão continua a pertencer à escola.
“O cão sem o arnês é um cão com um nível de obediência muito grande, mas colocado o arnês é a farda dele. O cão parece que muda porque sabe que vai trabalhar. Seriedade no trabalho.”
Vítor Costa
O processo não termina com a entrega do cão, termina cerca de cinco meses depois, quando a consolidação está bem feita. Quando a educação acaba, o educador tem de manter obrigatoriamente contacto com o cão. Passado trinta e cinco dias a seguir à entrega é “obrigatório uma visita do técnico in loco”. Nessa visita o educador vai contactar o invisual e pedir-lhe que faça um determinado trajeto de forma a que o cão não o consiga ver à distância, e avalia. Depois, discute com o cego onde deve haver melhorias.
Legalmente, o cego tem que entrar em contacto com a escola pelo menos duas vezes por ano. No caso da ABAADV “há um contacto muito mais perto porque nós fazemos entregas das nossas rações aos utilizadores”. Paralelamente, há obrigatoriedade de contactar a escola sempre que exista uma situação clínica e sempre antes de tomar qualquer medida, em situação de viagem.
Vítor não estranha se deixar de receber chamadas frequentes dos novos utilizadores com o passar do tempo “se não me ligar tão intensamente há um lado positivo nisso.” “Se tudo correr bem, corre tudo bem para mim, para a escola e para o utilizador. E o meu sucesso enquanto educação, entrega e estágio do cão é o sucesso da pessoa“, confessa. O educador salienta ainda que o cão “não é só um meio de locomoção para a pessoa cega”, mas sim proporciona-lhe autonomia e segurança.
“Não há cães-guia de canil”
Filipa é diretora técnica e veterinária na escola. Está no projeto desde o inicio. Na altura o núcleo só era constituído pelos dois primeiros educadores — o Vítor e a Sabina — o presidente da direção, Filipa e outra pessoa envolvida na gestão. Atualmente, entre educadores, treinadores, pré-educadores e equipa técnica o núcleo já se expandiu a mais de dez pessoas.
Os cães são entregues de forma gratuita. A escola tem sempre uma grande dificuldade em estabelecer protocolos. No momento tem um subsídio da segurança social que atribui um valor por dupla formada, esse acordo assenta “em dezasseis duplas”. Acordo esse que “nunca ultrapassou os 60% de nosso funcionamento”, esclarece Filipa. A pandemia não ajudou. Os dois anos de pandemia não possibilitaram a entrega de cães estipulada. A escola esteve sempre a trabalhar. Ficaram na associação cerca de 35 cães que foram constantemente manuseados, “inventámos muito, trajetos com obstáculos, saídas para fora, muita brincadeira com o cão, muita obediência”. Todos esses cães continuaram o seu processo de educação. Mas apesar de todo o esforço, os cães “não cumpriam com requisitos mínimos para serem cães guia”. O problema estendeu-se aos cães que estavam em famílias de acolhimento. O seu processo de sociabilização limitou-se apenas ao espaço da casa, “não iam aos restaurantes, aos supermercados, não frequentavam os transportes. Quando quisemos fazer algo tinham medo de tudo” completa. Esses cães tiveram de ser reformados, pois não tiveram o trabalho que era necessário. Filipa reforça “não há cães-guia de canil” seja em que fase for. Os cães que em 2020 deveriam estar na escola deveriam ser entregues este ano e essas reformas estão a refletir-se agora.
A par do protocolo com a segurança social, a escola procura patrocinadores e envia candidaturas para vários projetos “candidatamo-nos sempre na tentativa de que com esse projeto vá angariar mais fundos para financiamento” explica. Ao abrigo do projeto BPI Solidário foi possível a construção de todo o bloco de canis. A escola está também equipada com um canil maternidade construído através do apoio dado pela Segurança Social e pela Federação Francesa de Escolas de Cães-Guia.
Os equipamentos urbanos ainda não estão devidamente preparados para os deficientes visuais. Com um tom de voz mais moderado, Filipa fala sobre a grande dificuldade que o cego passa quando se desloca apenas com a bengala, “nos grandes centros a bengala é uma grande ajuda, mas é muito difícil contornar tudo” e continua “camiões com as portas abertas é o maior risco para os nossos cegos, porque a bengala passa por baixo mas o cego vai bater na esquina da porta”.
“A partir do momento em que se estabelece a cumplicidade entre o cão e o cego ele confia de tal maneira no seu cão que parece que os obstáculos saem todos do caminho.”
Filipa Paiva
Os cães que são reformados entre os seis meses e os dois anos, por não reunirem todas as condições e critérios necessários para seguirem o processo de educação, são agora destacados para um novo projeto. Com o objetivo de aproveitarem esses cães e também os educadores mais seniores, a escola começou, no final do ano passado, a vocacioná-los para as terapias assistidas por animais. No momento, uma das treinadoras mais antigas da escola, Sabina Teixeira, está a trabalhar com a Santa Casa da Misericórdia de Mortágua, com um lar de idosos e com o centro educativo na parte das crianças com necessidades educativas especiais.
O que acontece a um cão-guia quando se reforma? O cão em média trabalha até os dez anos, poucos são os casos onde se ultrapassa esse período, Quando o cão deixa de ter condições para poder trabalhar há várias ponderações. Pode ficar com o cego desde que este tenha condições para o manter. O cego pode entregar o cão a um familiar, e aí a responsabilidade do animal passa a ser dessa pessoa. Ou então, se o cego não tiver condições ou não quiser o cão regressa à escola e fica lá. Nesse caso a responsabilidade passa a ser novamente da escola “aqui nós temos o melhor parque para eles, temos as pessoas (…) e eles estão sempre em conjunto”. |
“As famílias de acolhimento são o nosso voluntário por excelência.”
Passada a fase de escolha, por volta dos três meses, os cachorros são entregues a uma família de acolhimento, que está previamente formada. Esta família é voluntária e tem de estar no raio Coimbra-Viseu, uma vez que “é o raio de ação que permite que a escola consiga acompanhar sempre que necessário”. Durante o tempo que o cão fica com a família de acolhimento não pode ficar mais de duas horas sozinho em casa, “habitualmente têm de o levar para o trabalho” ou então, alguém tem de ficar em casa com o cachorro. A escola fornece alimentação e todos os cuidados veterinários durante o tempo que o cão está com a família.
Filipa ressalta o altruísmo das famílias por estarem com os cães na sua “pior fase”, uma vez que é quando “dão mais trabalho e estragam mais” e a atenção tem de ser redobrada. A família de acolhimento não recebe nada por adotar o cão, “as famílias de acolhimento são o nosso voluntário por excelência”.
Durante este processo de sociabilização é importante que a família consiga “contactar com outras pessoas e outros animais”. A legislação que permite o acesso do cego com cão-guia a todos os espaços públicos, também dá essa permissão a educadores e famílias de acolhimento, ou seja, a família tem também a possibilidade de frequentar shoppings e supermercados com o cão, o que é uma mais-valia para esse processo.
Por volta dos dez meses o cão começa a ir à escola. Durante a fase de pré-educação – que começa por volta dos quatro meses – e de educação, o cão é recolhido à segunda-feira de manhã por um dos tratadores e fica na escola até sexta-feira de manhã. Na parte de tarde é novamente entregue à família. “É importante eles continuarem a manter a parte social com a família e com o estar dentro de casa”, por outro lado também é algo positivo para a família uma vez que não há “aquela rutura brusca de ficarem sem o cão”, esclarece Filipa.
A escola promove sempre o contacto entre a família de acolhimento e o cego para quem o cão vai. Antes da pandemia eram realizados jantares “entre a equipa, a família de acolhimento e o cego”. Atualmente, para “evitar complicações”, o educador vai com o cego ter com a família de acolhimento e estabelecem o contacto durante um almoço.
Temos famílias de acolhimento que passam férias em conjunto, temos famílias de acolhimento que os visitam, temos cegos que visitam as famílias.
Filipa Paiva
Ser família de acolhimento é um grande compromisso para com a escola e, com a chegada de uma nova ninhada, é sempre necessário ter uma família que esteja apta e disponível. A diretora técnica com um sorriso na cara confessa que “são raras as famílias de acolhimento que tiveram o primeiro cachorro e que não passam pelo segundo, e sucessivamente” e continua “temos quase sempre as famílias em reciclagem, sempre a ampliar porque cada vez temos mais cães em família.”
Olá! Sou a Inês Santos e tenho 20 anos. Estudo Ciências da Comunicação na vertente de jornalismo. Sempre fui apaixonada por comunicação e vi no jornalismo uma forma de seguir essa paixão. Colaboro na editoria "Atualidade" na plataforma #infomedia.