Estratagemas para contornar a Lei da Paridade deixa mulheres para trás

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Estratagemas para contornar a Lei da Paridade deixa mulheres para trás

A Lei da Paridade pretendia aumentar a participação política das mulheres. Entre 2009 e 2013, foram registados cinco partidos que não cumpriram a Lei da Paridade, provando que, 16 anos após a sua entrada em vigor, ainda não cumpre o seu propósito. Contrariamente ao que seria de esperar, houve uma queda no número de mulheres que tomaram posse nas últimas Autárquicas e Legislativas. Especialistas e políticos ouvidos pelo #infomedia apontam que isto se deve a estratagemas partidários, como pressões que levam candidatas a desistir e acordos para troca de cargos.

[Reportagem de Inês Matos, Inês Costa, Mariana Azevedo, Mariana Venâncio e Rita Almeida]

Estratagemas: O lado que ninguém vê

Ângela Gomes, advogada | Fotografia cedida pela entrevistada

Desobedecer à lei “não é uma tarefa fácil”. Quem o diz é a advogada Ângela Gomes, exemplificando que uma lista para a Assembleia da República tem um mandatário – “um organizador, aquele que encabeça a lista, o número um ou não.” Este “entrega a lista ao Tribunal Constitucional e o Tribunal vai verificar se a lista apresentada cumpre, entre outras coisas, a Lei da Paridade.” Caso não cumpra a lei, o mandatário é notificado, nos termos fixados na lei eleitoral aplicável, para proceder à  correção no prazo estabelecido na mesma lei. Se o mandatário “corrigir, tudo bem não há problema nenhum; se não corrigir corre o risco da lista não ser aceite e ser excluída”, admite a advogada.

Rosa Monteiro, Antiga Secretária de Estado e Cidadania de Género | Fotografia retirada da República Portuguesa

A Lei da Paridade “cumpre absolutamente os seus objetivos: chamar a atenção para a existência de mulheres e para todas as barreiras que existem na política”, esclarece Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade de Género entre 2017 e 2019. Reforça a ideia de Ângela Gomes, de que é difícil desobedecer à lei. No entanto, depois da formulação das listas onde é aplicada, verificam-se vários estratagemas que colocam em causa a “paridade real”. 

Beatriz Amorim e Juliana Patrícia, nomes fictícios escolhidos para proteger as identidades das testemunhas, são duas vozes que foram afastadas do cargo político. 

Beatriz Amorim foi vítima de um dos estratagemas mais comuns: a troca de cargos. No primeiro mandato para a junta de freguesia tudo decorreu como esperado. O segundo e terceiro foram diferentes. Apresentava-se na lista como Tesoureira, mas ficava previamente acordado que trocaria para o lugar de primeira secretária, um cargo abaixo, na tomada de posse. “O Senhor que passaria a ser Tesoureiro questionou-me sempre se eu queria assumir o cargo para o qual eu tinha sido mandatada, disse-lhe que não.” Não assinou nenhum documento, “confiava nas pessoas, eu sabia que esse não era o meu lugar.” 

“É aquela velha história: é a Lei da Paridade, mas só para fazer lista”

Beatriz Amorim

Ao mesmo tempo que se expôs a constantes alterações de cargo, no quarto mandato, em 2013, a história mudou e Beatriz foi afastada do cargo sem aviso prévio e qualquer esclarecimento. Identifica-se assim um outro estratagema.

“Neste último mandato tinha-lhes dito para não me colocarem”, mas o Presidente da Junta contactou-a, dizendo que precisava dela para assumir o cargo. “Se precisam de mim, então, vou assumir”, esta foi a resposta de Beatriz. “Eu iria assumir. É a minha área, portanto, acho que sei lidar um bocadinho com a parte da Tesouraria. Iria necessitar de ajuda, mas achava que era capaz de fazer com a ajuda de quem estava até aí.”

“Nem sequer fui tida, nem achada. Ninguém me questionou, sequer.”

Beatriz Amorim

“Houve eleições. Nós ganhamos.” O problema para Beatriz foi a data, já que coincidia com a missa da mãe e não iria conseguir estar presente na tomada de posse. Pediu para que a data fosse alterada, mas o pedido foi ignorado e a proposta do “depois tu passas aqui e assinas os papéis” surgiu. “Pensei que eram os papéis da tomada de posse”, admite. “Mas convinha tu passares antes para nós te explicarmos” é a frase que mostra a insistência para assinar os papéis. 

Beatriz estava a trabalhar, mas tinha combinado com eles passar na Junta para os assinar. “Não estava lá ninguém porque, nesse dia, havia uma inauguração.” Com pressa e sem tempo liga-lhes, informando-os que se dirigia para a igreja. “Qual não é o meu espanto: chego à Igreja e está o Presidente da Junta com um documento para eu assinar a dizer que renunciava ao cargo.” Foi durante o “ataque de choro” que assinou os papéis, sem os ler. “Eles explicaram por alto, mas se fosse hoje… Hoje eu não sei o que assinei”, afirma. 

“Ninguém falou comigo até hoje sobre o assunto.” Mais adiante, em conversa, acrescentou: “Não tiveram em consideração o trabalho que eu tinha tido, e aí sim, custou-me muito.” 

“Para mim a política morreu e morreu mesmo”

Beatriz Amorim

Juliana Patrícia é exemplo de um outro estratagema: pressões constantes para se afastar politicamente. 

Desde os 19 anos que é militante. Na época, era presidente do núcleo do partido a que pertencia. Na corrida para as Autárquicas faltava escolher o candidato a presidente de Junta. “Reunimos o núcleo porque sabíamos que, pelo timing, estava na altura de mostrarmos alguma posição quanto à escolha do candidato.” Perante o “superior hierárquico e a concelhia, iríamos debater e escolher”. Discussão atrás de discussão e “tomamos duas ou três posições”. Por ser presidente do núcleo, Juliana Patrícia tinha a tarefa de “reunir com o presidente da concelhia e mostrar a nossa posição”, refere. 

Juliana era uma das possíveis candidatas, para alguns membros do núcleo. “Incumbiram-me de mostrar que já era altura de mostrar a minha disponibilidade para ser candidata”. O presidente da concelhia teve isso em consideração, disse a militante. 

Passaram 15 dias e Juliana foi convocada para uma reunião, “na qual estava o ex-presidente de Junta, o presidente da concelhia e o futuro presidente da câmara”. Uma primeira reunião com o núcleo foi em vão. Decidiram o possível candidato – um dos vereadores da altura que estava no cargo há mais de uma década. “Eu [estava] calada a ouvir por uma questão de respeito.” O discurso parecia-lhe combinado. Juliana manteve-se imparcial. “Vou levar ao núcleo este nome, como podem surgir outros, porque foi esse o compromisso que assumiram comigo.” 

Juliana recua no tempo. Uma situação semelhante já lhe tinha acontecido. Cinco anos antes, tinha sido “escolhida para ser candidata a presidente de núcleo [e] apareceu outro candidato posteriormente a mim, homem, e eles tentaram que eu saísse porque era mulher, o elo mais fraco.” 

“Não desisti, mas tive estas pressões. Pressões no sentido de me comprarem com futuros trabalhos, só que estão enganados na pessoa”

Juliana Patrícia

A militante volta a contactar o núcleo para conversar acerca do possível candidato, mas o presidente da câmara, segundo o protocolo, não podia estar presente, mas fazia questão. Juliana bateu o pé, não o autorizando. Este liga-lhe num dia da semana para “combinar uma reunião”, diz. Nessa reunião informou: “Já há candidato, não vale a pena estarmos a reunir com o núcleo.” Nessa conversa, Juliana sofreu pressões de todas as frentes. “Ao fim de hora e meia a ser massacrada por três pessoas”, cedeu. “Eu, mulher. Se fosse um homem eles não me tratavam assim”. O presidente conseguiu o que queria: estar presente na reunião. As mulheres são “uma minoria na política, por mais que a gente queira bater o pé, chega a uma altura que se cede porque a pressão é muita”, lamentou.

“Agora eu vender-me? Não! Não preciso disto porque assim estou limpa, tenho a minha liberdade de lutar por aquilo que acredito” 

Juliana Patrícia

Na conversa com o núcleo, tudo o que se tinha passado até então foi um dos assuntos em cima da mesa. Juliana demite-se do cargo. “Peço desculpa se não consegui ir contra a estrutura ou contra os lobbies, mas eu demito-me da minha função de presidente.” 

Como forma de continuar a sua vida política, a militante cria um movimento independente. 

“Atendendo às circunstâncias eu não me identifico com esta forma de fazer política, não foi para isto que eu vim para a política e não foi para isto que eu trabalho para este partido, que trabalho para a minha terra e que trabalho para este povo”

Juliana Patrícia
Palmira Maciel, deputada do Partido Socialista | Fotografia retirada de parlamento.pt

As maiores vítimas destas constantes pressões políticas são as mulheres. Palmira Maciel, deputada do PS que fala em nome próprio, afirma que também acontecem “através de reuniões que se marcam de noite, até que a mulher chegue à saturação e diz “vou desistir, vou deixar isto”, tal como aconteceu com Juliana Patrícia.  Palmira Maciel acredita no caminho que foi feito até hoje por todas e que é necessário que as pessoas se coloquem no lugar das mulheres que integram cargos políticos. Reforça que “se ela quisesse realmente ficar ali, não havia ninguém que a tirasse. Para que, na realidade, deixassem de fazer essa pressão”.

“Como é que não há mulheres? Conhecem algum sítio neste país, um território que não haja mulheres? Por mais pequena que seja uma freguesia? Este é o argumento que usavam”

Rosa Monteiro

Ângelo Neves, jurista da Comissão para a Cidadania e  Igualdade de Género (CIG), refere que já recebeu “vários pedidos de informação das Juntas de Freguesia [por] não terem mulheres para cumprir o limiar”. Recebe “de 15 em 15 dias” uma queixa, “dezenas por ano”, sublinhando que este é um “problema recorrente”, principalmente nas autarquias. Existem casos em que Juntas de Freguesia têm dificuldade em “cumprir literalmente os 40% por razões matemáticas”. O que acontece, muitas vezes, é que “não está nenhuma mulher disponível”, estão “três pessoas, não há uma única eleita”, relata. 

Dados retirados do “Balanço da implementação da Lei da Paridade em diferentes níveis de governo: análise longitudinal”, de 2020 | Imagem de Mariana Venâncio
Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda | Fotografia retirada de parlamento.pt
Logo do Partido CHEGA | Retirado de partidochega.pt

A Lei da Paridade é respeitada e representativa. No entanto, até na sua implementação é possível antecipar situações futuras. Joana Mortágua relembra um caso específico que se deu com o partido CHEGA, na Assembleia da República: “O CHEGA, por exemplo, tem um grupo de 12 deputados apenas com uma mulher, ou seja, o Grupo Parlamentar não é paritário, apesar das listas o serem porque o que eles fizeram foi candidatar homens nos círculos”. Um partido que elegeu apenas uma mulher. Palmira Maciel também reflete sobre esta questão e explica: “O que é que cumpre? Cumpriu a lei só que o número 1 era sempre um homem e, nos distritos só entrou um, então entrou o homem”. 

Isto relaciona-se com um outro estratagema, já proveniente da Lei do Terço: as mulheres ocuparem lugares menos elegíveis, como “terceiro, sexto e nono”, declara Rosa Monteiro. Atualmente, devido à obrigatoriedade de alternância entre sexos nas listas, já não é possível observar esta situação. No entanto, quando decorrem casos como os referidos anteriormente, voltamos a recuar até à Lei do Terço. 

Segundo a Comissão Nacional de Eleições (CNE), se compararmos as listas candidatas “consideradas incumpridoras da Lei da Paridade desde que a mesma foi implementada”, verificamos que a nível Europeu não existe registo de casos. Nas Legislativas, a “violação da Lei revela-se bastante mais comum”. Já nas Autárquicas, os números saltam à vista. Entre 2009 e 2013 foram registados cinco partidos que incumpriram a Lei – Bloco de Esquerda (BE), Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP), Coligação Democrática Unitária (CDU), Partido Socialista (PS) e Partido Social Democrata (PSD) – em, pelo menos, uma lista candidata. Nas eleições de 2017, CDS-PP, PS e PSD violaram-na 16 vezes. Segundo dados fornecidos pela CIG, os grupos de cidadãos eleitores não a cumpriram em nenhuma eleição autárquica, desde que foi criada.
Listas que não cumpriram a Lei da Paridade [2009 – 2017] | Dados retirados de Balanço da implementação da “Lei da Paridade em diferentes níveis de governo: análise longitudinal”, de 2020
Rita Almeida

Rita Almeida, 21 anos, natural de Vale de Cambra. O gosto por comunicar e querer sempre saber mais surgiu muito cedo, definindo CC como carreira a seguir. Atualmente no terceiro ano do curso, na Universidade Lusófona do Porto, sou, também, colaboradora na editoria “Geração Z” na plataforma #infomedia.