Fernanda Silva: “Isto não é a minha Sé, isto não é a minha praia”

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Fernanda Silva: “Isto não é a minha Sé, isto não é a minha praia”

Fernanda Silva nasceu na Travessa de Sant’Ana e sempre viveu na rua com o mesmo nome. Hoje, é uma das últimas moradoras da rua que deu nome ao romance histórico de Almeida Garrett. Os prédios que cercam a sua casa foram vendidos e servem atualmente como alojamento local.

[Texto e Fotografia de Diana Loureiro]

Descendo pelas ruas e ruelas, traquinas e malandras como pequenas ramificações, que nascem da Sé, encontra-se uma das ruas mais pequenas do Porto. O coração da cidade vê pouco sol nas suas artérias, mas estas ruas bombeiam história e estórias, como é o caso da Rua de Sant’Ana, que também inspirou um romance do escritor Almeida Garrett.

“Mal pensa o voluntário académico, quando descendo da rua de Sant’Ana abaixo, o braço no armão da peça, e os olhos na alta janela donde, entre o festivo azul e branco, lhe sorri constitucional beldade; e ele vai misturando, no alvoroçado pensamento, conquistas bélicas e amorosas, as damas que há de render e as guerrilhas que há de espatifar”

Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845
Fernanda Silva | Fotografia: Diana Loureiro

“Nasci aqui”, afirma Fernanda Silva. Ela é uma personagem já afamada da cidade. Preenche os dias com vendas de meias e guarda-chuvas na Rua de Santa Catarina, uma das vias mais comerciais da cidade. No entanto, apesar dos seus pés caminharem pelas ruas mais famosas do Porto, é na Sé que está a sua cabeça e coração, desde sempre. “Nasci na Travessa de Sant’Ana”, afirma com um tom assertivo, “não na rua, na travessa”, faz questão de referir.

A bandeira do FCP da janela de Fernanda Silva | Fotografia: Diana Loureiro

Portuense e portista, mora atualmente na Rua de Sant’Ana. Todos os que conhecem a Sé sabem que é na casa amarela com a bandeira do Futebol Clube do Porto que habita a pessoa “que impõe respeito na zona”, tal qual uma matriarca.

Na cara da portuense, lê-se cansaço e o desânimo por causa do ambiente que hoje se impõe no lugar a que pertence. A preocupação exalta-se-lhe dos olhos. “O que se passa aqui é que tiraram toda a gente para fazer hostels”, denuncia.

Fernanda Silva:
“Tiraram muito morador que saiu daqui e os poucos que ficaram cá como eu foi por muito sacrifício. Também queriam que eu fosse de vela daqui.”

Casas de cores diferentes, com acabamentos ora em tons vivos e sólidos, ora em azulejos, compõem a vista para a cidade. “Aqui, prédios há”, confirma Fernanda, “mas é tudo hostels”. Um olhar mais atento repara que há prédios que se notam ter sido restaurados recentemente, outros em obras e outros dos quais só os destroços subsistem.

Fernanda Silva:
“Moradores há poucos e os que há, quase não os conheço.”

A portuense indica que tudo o que o olho vê naquele horizonte foi feito hostel. “Só há uma casa que é habitação”, conta. “Há ali uma senhora, mas estão à espera de que ela morra para ir de vela também”, explicando ainda que, segundo a sua intuição, que diz estar sempre certa, aquela casa será mais um alojamento local no futuro.

Fernanda Silva:
“Foi tirar as pessoas da Sé do Porto, que nasceram cá, como as minhas irmãs, e muitas mais que nasceram aqui. Tiraram as casas aos moradores, para fazer hostels.”

A mais famosa vendedora de Santa Catarina conta ainda que aos moradores que foram retirados da Sé, só lhes foi dada uma hipótese: a da habitação em bairros sociais. Afirma saber isto porque foi o que aconteceu a duas das suas irmãs. “Eu fiquei cá porque sou mais arrebitada que elas e fiz força para ficar cá”, reitera, “mas tenho os meus filhos todos fora daqui” acrescenta Fernanda, “porque ninguém consegue arranjar casa aqui”.

Fernanda Silva:
“Porque aqui não tem assunto. A Sé já fostes. É para turismo. Turismo é o que se vê aqui.”

Fernanda relembra com carinho os dias em que os risos das crianças ressoavam pelas paredes de todas as casas que abraçam o Largo do Colégio. “Eu chegava de vender, ao fim da tarde, eles andavam todos na rua a brincar, a jogar às cordas, as meninas”, conta, “os meninos jogavam ao peão, à sameirinha, à bola.” O tom de voz altera-se. “Agora não se vê criança nenhuma!”, conta, com olhos que gritam desilusão. “Nada, nada, nada!”

Fernanda Silva:
“Não há, não há canalha. A menina se viesse cá, há anos atrás, isto aqui não havia carros, a canalha andava ali a jogar à bola uns contra os outros, todos. As raparigas jogavam com os rapazes… Eles vinham para casa de uns, outros iam para a casa dos outros. Agora não vai ninguém para casa de ninguém. A minha casa parecia quase a fanfarra, iam todos para lá brincar. Uma casa tão pequena que eu tinha, pequena não, tinha dois andares. A canalha cabia lá toda a brincar.”

As crianças “já não dão valor ao que a gente tinha”, lamenta a portuense. “Eu com meias, aquelas meias-calças de mulher”, explica, “fazia bolas para eles jogarem”. “Muita meia, muita meia”, acrescentando que, depois de começar a receber mais dinheiro, conseguiu comprar bolas para as crianças que brincavam na sua rua.

Fernanda Silva:
Agora não se vê ninguém a brincar. Ninguém. Tenho os meus netos, que nem aqui param.  

“Ai, rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando se lhe armava aquele palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um coreto e um púlpito, aonde grasnava a música, berrava o frade, e toda a vizinhança tinha um dia de folgar?… E muito se rezava e muito se namorava e muito se comia, e todos iam para o céu – Ora que o façam hoje!”

Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845

“Antigamente”, recorda Fernanda, “as vizinhas sentavam-se aqui, falavam umas com as outras, sentavam-se nas escadas, nas portas”. Sente-se sozinha no lugar onde nasceu.

Relembra que, primeiro, todos os dias eram uma festa, e se alguém acendesse um fogareiro, a rua toda juntava-se como uma família. “Eu dizia “olha vou assar sardinhas” e as minhas vizinhas gritavam da janela “ai traz para mim, eu dou uns pimentos”, agora não há nada”, lamenta.

No São João, Fernanda enfeita tudo, desde a porta de sua casa até ao final da rua. “Mas não é a mesma coisa, sou só eu”, o cansaço lê-se a voz, “já não há vizinhos”.

Fernanda Silva:
“É isto. É isto. É a Sé. Isto não é a minha Sé. Isto não é a minha praia.”

Placa da rua de Sant’Ana | Fotografia: Diana Loureiro

“Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capucho muita berraria e muita sandice, e os festeiros jantaram mais cedo. E assim terminou a última função da senhora Sant’Ana do arco.”

Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845