Fernanda Silva: “Isto não é a minha Sé, isto não é a minha praia”
- Diana Loureiro
- 29/06/2022
- Atualidade Portugal Sem categoria
Fernanda Silva nasceu na Travessa de Sant’Ana e sempre viveu na rua com o mesmo nome. Hoje, é uma das últimas moradoras da rua que deu nome ao romance histórico de Almeida Garrett. Os prédios que cercam a sua casa foram vendidos e servem atualmente como alojamento local.
[Texto e Fotografia de Diana Loureiro]
Descendo pelas ruas e ruelas, traquinas e malandras como pequenas ramificações, que nascem da Sé, encontra-se uma das ruas mais pequenas do Porto. O coração da cidade vê pouco sol nas suas artérias, mas estas ruas bombeiam história e estórias, como é o caso da Rua de Sant’Ana, que também inspirou um romance do escritor Almeida Garrett.
“Mal pensa o voluntário académico, quando descendo da rua de Sant’Ana abaixo, o braço no armão da peça, e os olhos na alta janela donde, entre o festivo azul e branco, lhe sorri constitucional beldade; e ele vai misturando, no alvoroçado pensamento, conquistas bélicas e amorosas, as damas que há de render e as guerrilhas que há de espatifar”
Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845

“Nasci aqui”, afirma Fernanda Silva. Ela é uma personagem já afamada da cidade. Preenche os dias com vendas de meias e guarda-chuvas na Rua de Santa Catarina, uma das vias mais comerciais da cidade. No entanto, apesar dos seus pés caminharem pelas ruas mais famosas do Porto, é na Sé que está a sua cabeça e coração, desde sempre. “Nasci na Travessa de Sant’Ana”, afirma com um tom assertivo, “não na rua, na travessa”, faz questão de referir.

Portuense e portista, mora atualmente na Rua de Sant’Ana. Todos os que conhecem a Sé sabem que é na casa amarela com a bandeira do Futebol Clube do Porto que habita a pessoa “que impõe respeito na zona”, tal qual uma matriarca.


Na cara da portuense, lê-se cansaço e o desânimo por causa do ambiente que hoje se impõe no lugar a que pertence. A preocupação exalta-se-lhe dos olhos. “O que se passa aqui é que tiraram toda a gente para fazer hostels”, denuncia.
“Tiraram muito morador que saiu daqui e os poucos que ficaram cá como eu foi por muito sacrifício. Também queriam que eu fosse de vela daqui.”


Casas de cores diferentes, com acabamentos ora em tons vivos e sólidos, ora em azulejos, compõem a vista para a cidade. “Aqui, prédios há”, confirma Fernanda, “mas é tudo hostels”. Um olhar mais atento repara que há prédios que se notam ter sido restaurados recentemente, outros em obras e outros dos quais só os destroços subsistem.
“Moradores há poucos e os que há, quase não os conheço.”
A portuense indica que tudo o que o olho vê naquele horizonte foi feito hostel. “Só há uma casa que é habitação”, conta. “Há ali uma senhora, mas estão à espera de que ela morra para ir de vela também”, explicando ainda que, segundo a sua intuição, que diz estar sempre certa, aquela casa será mais um alojamento local no futuro.
“Foi tirar as pessoas da Sé do Porto, que nasceram cá, como as minhas irmãs, e muitas mais que nasceram aqui. Tiraram as casas aos moradores, para fazer hostels.”
A mais famosa vendedora de Santa Catarina conta ainda que aos moradores que foram retirados da Sé, só lhes foi dada uma hipótese: a da habitação em bairros sociais. Afirma saber isto porque foi o que aconteceu a duas das suas irmãs. “Eu fiquei cá porque sou mais arrebitada que elas e fiz força para ficar cá”, reitera, “mas tenho os meus filhos todos fora daqui” acrescenta Fernanda, “porque ninguém consegue arranjar casa aqui”.


“Porque aqui não tem assunto. A Sé já fostes. É para turismo. Turismo é o que se vê aqui.”
Fernanda relembra com carinho os dias em que os risos das crianças ressoavam pelas paredes de todas as casas que abraçam o Largo do Colégio. “Eu chegava de vender, ao fim da tarde, eles andavam todos na rua a brincar, a jogar às cordas, as meninas”, conta, “os meninos jogavam ao peão, à sameirinha, à bola.” O tom de voz altera-se. “Agora não se vê criança nenhuma!”, conta, com olhos que gritam desilusão. “Nada, nada, nada!”
“Não há, não há canalha. A menina se viesse cá, há anos atrás, isto aqui não havia carros, a canalha andava ali a jogar à bola uns contra os outros, todos. As raparigas jogavam com os rapazes… Eles vinham para casa de uns, outros iam para a casa dos outros. Agora não vai ninguém para casa de ninguém. A minha casa parecia quase a fanfarra, iam todos para lá brincar. Uma casa tão pequena que eu tinha, pequena não, tinha dois andares. A canalha cabia lá toda a brincar.”
As crianças “já não dão valor ao que a gente tinha”, lamenta a portuense. “Eu com meias, aquelas meias-calças de mulher”, explica, “fazia bolas para eles jogarem”. “Muita meia, muita meia”, acrescentando que, depois de começar a receber mais dinheiro, conseguiu comprar bolas para as crianças que brincavam na sua rua.
Agora não se vê ninguém a brincar. Ninguém. Tenho os meus netos, que nem aqui param.


“Ai, rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando se lhe armava aquele palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um coreto e um púlpito, aonde grasnava a música, berrava o frade, e toda a vizinhança tinha um dia de folgar?… E muito se rezava e muito se namorava e muito se comia, e todos iam para o céu – Ora que o façam hoje!”
Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845
“Antigamente”, recorda Fernanda, “as vizinhas sentavam-se aqui, falavam umas com as outras, sentavam-se nas escadas, nas portas”. Sente-se sozinha no lugar onde nasceu.
Relembra que, primeiro, todos os dias eram uma festa, e se alguém acendesse um fogareiro, a rua toda juntava-se como uma família. “Eu dizia “olha vou assar sardinhas” e as minhas vizinhas gritavam da janela “ai traz para mim, eu dou uns pimentos”, agora não há nada”, lamenta.
No São João, Fernanda enfeita tudo, desde a porta de sua casa até ao final da rua. “Mas não é a mesma coisa, sou só eu”, o cansaço lê-se a voz, “já não há vizinhos”.
“É isto. É isto. É a Sé. Isto não é a minha Sé. Isto não é a minha praia.”

“Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capucho muita berraria e muita sandice, e os festeiros jantaram mais cedo. E assim terminou a última função da senhora Sant’Ana do arco.”
Almeida Garrett em “O arco de Sant’Ana”, 1845