Food Not Bombs, quando a alimentação é uma forma de protesto

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Food Not Bombs, quando a alimentação é uma forma de protesto

O coletivo Food Not Bombs tem um novo capítulo na cidade do Porto. O movimento voluntário que recupera alimentos sem valor comercial e os transforma em refeições veganas gratuitas está presente em mais de mil cidades em 65 países. O objetivo não é a caridade, mas sim uma forma de protesto contra a guerra, a pobreza e a destruição do meio ambiente.

[Texto e Fotografia de Diana Loureiro]

São cinco horas da tarde de uma segunda-feira de abril. Os dias começam finalmente a prolongar-se e esta promete ser uma tarde cheia de sol.

Colheres na cozinha | Fotografia: Diana Loureiro

No interior de um restaurante no Porto, sete pessoas reúnem-se para uma ação da Food Not Bombs, aproveitando o dia de descanso do estabelecimento 8 para usar a cozinha. Apesar de sorridentes e prestáveis, esta é uma comunidade um pouco hermética e a maioria dos seus intervenientes prefere permanecer no anonimato.

Pedro está encostado à porta. O calor da tarde permitiu-lhe tirar os calções do armário. Na cabeça, traz um chapéu com pala e o cabelo em rastas que lhe acompanham o dorso. “Costumamos reunir-nos às segundas-feiras, normalmente por esta hora”, explica Pedro. “Hoje vamos fazer seitan com arroz e vegetais fritos”, referindo-se ao prato a distribuir mais tarde.

Carlos cozinha numa ação da Food Not Bombs | Vídeo: Diana Loureiro

A Food Not Bombs (FNB) chegou ao Porto pelas mãos de Pedro e Sheila, que vieram de Berlim para passar uma temporada na cidade e sentiram a necessidade de criar, no Porto, um novo capítulo do movimento.

“A base da Food Not Bombs é que a alimentação deve ser um direito, não um privilégio,” afirma Pedro, “por isso este movimento não é um projeto de caridade”, completa. “É mais uma forma de ativismo social, pela ação direta”, acrescentando ainda que esta forma de protesto tenta lutar contra o formato desequilibrado da distribuição de alimentos numa sociedade capitalista.

O Índice de Desperdício de  Alimentos 2021 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) mostrou a enorme escala do desperdício alimentar em todo o mundo. Em 2019, 931 milhões de toneladas de alimentos foram desperdiçados.

Estima-se que 17% dos alimentos disponíveis aos consumidores, nos mercados e restaurantes, vão diretamente para o lixo.

O coletivo da FNB Porto afirma-se sem fins lucrativos e visa combater o “enorme desperdício da superprodução na sociedade de consumo”. É por isso que, na medida do possível, “tentamos usar apenas o excedente de alguns para compartilhá-lo com os que atualmente precisam, evitando pedir qualquer dinheiro”. Por outro lado, as doações de alimentos são sempre bem-vindas e muito apreciadas. Algumas coisas são sempre necessárias e nem sempre possíveis de obter gratuitamente, tais como as caixas de comida para levar, talheres descartáveis, ou alimentos básicos como arroz, massa, sal, azeite, óleo de fritura, pão e claro, frutas e vegetais.

Pedro fala sobre a FNB Porto e o seu início | Vídeo: Diana Loureiro

Inicialmente com ações pontuais, o movimento usava alimentos em excesso que Pedro tinha em casa, como fruta ou legumes do quintal pessoal. “É difícil arranjar acordos com mercearias ou mercados aqui”, afirma. “O ideal seria usar comida sem valor comercial, mas até agora temos usado alimentos que nos têm chegado através de donativos”, explica o ativista. Conta ainda que houve um concerto solidário no dia 29 de Janeiro de 2022 em que receberam donativos alimentares e monetários.

Cartaz do concerto solidário

“A resposta foi enorme”, diz, com um olhar perplexo, “estava à espera que o pessoal aparecesse com pequenos alimentos, uma lata de feijão cada um, mas encheram-nos imensos sacos com comida”, acrescenta. “Soja desidratada, especiarias, óleo, azeite, leguminosas secas e enlatadas…”, enumera, “até agora, ainda temos usado esses donativos”.

Depois do concerto solidário, a Food Not Bombs Porto começou a reunir-se todas as segundas-feiras, no restaurante, para ações semanais.

A ação semanal da Food Not Bombs Porto

Pedro explica a rotina de uma ação semanal da FNB | Vídeo: Diana Loureiro

“A rota é quase sempre igual”, afirma Pedro. “É importante passarmos sempre pelos mesmos sítios à mesma hora”, reitera, “pois temos pessoas, muitas delas em situação de sem abrigo, a contar connosco”. Mas as pessoas não estranham refeições veganas? “Sim, algumas delas preferem não comer refeições veganas, acham estranho ou suspeito”, lamenta o ativista. “Às vezes recebemos donativos de origem animal, como latas de atum”, conta, “tentamos dar às pessoas à parte, não cozinhamos esses alimentos”.

“Em Berlim, já me atiraram uma refeição à cara, exatamente por ser vegetariana”, relembra Pedro, “mas eu sei que não é nada pessoal, as pessoas têm o direito de estranhar, e eu sigo em frente e continuo”.

Mapa com a rota da FNB Porto | Mapa disponível em: https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=1Y1SpOYmShS3ttmPU0OTBslZqAcPonqYa&usp=sharing 

[ESTE LINK TEM DE SER INCORPORADO COMO HIPERLIGAÇÃO]
Saída para distribuição | Vídeo: Diana Loureiro

O Dia Internacional da Mulher

No dia 8 de Março, o movimento Food Not Bombs Porto esteve presente na Marcha do Dia Internacional da Mulher, realizada pela Rede 8M e outros coletivos. “Montamos uma banca na Praça dos Poveiros”, relembra Pedro. “Tínhamos chá e maçãs à disposição das manifestantes, e também um charriot com roupa feminina para doar”, acrescenta.

“É importante que, para além das ações semanais, estejamos presentes em ações pontuais como esta, ou o 25 de Abril ou o 1 de Maio”, afirma o ativista, referindo que o movimento da Food Not Bombs é também uma forma de ativismo interseccional.

Uma ideia vinda de Berlim

Inês com a t-shirt da FNB Berlin | Fotografia: Diana Loureiro

Um riso poderoso ecoa pela sala. Sheila traz o cabelo loiro preso e veste preto dos pés à cabeça. A voz de timbre grave ajuda a impor a sua presença: é impossível passar despercebida. O sotaque denuncia-a, o inglês arranhado transporta quem a ouve para a Europa Central. É austríaca, mas vive em Berlim desde 2018.

Sheila fez parte da criação da Food Not Bombs do Porto e de Berlim. Sente-se relutante em ser entrevistada sobre o coletivo da capital alemã, pois teme não o representar bem, nem quer falar pelos colegas que não estão presentes. Após alguma insistência, conta como se deu a origem deste capítulo alemão.

Sheila fala sobre o início da FNB Berlin | Vídeo: Diana Loureiro

A ativista desenvolveu o primeiro relacionamento com o Food Not Bombs quando viajou pela Ásia, passando pelos coletivos da Malásia e de Myanmar, a convite de amigos. Foi em Myanmar que teve o primeiro contacto com o conflito Rohingya (uma minoria muçulmana apátrida dessa região) e presenciou o golpe de estado. Após o regresso a Berlim, tentou sensibilizar os amigos do coletivo a formar ações de protesto e solidariedade para com os companheiros de Myanmar.

Sheila fala sobre o primeiro contacto com a FNB | Vídeo: Diana Loureiro

Food Not Bombs de Kuala Lumpur é a maior onde já estive”, assegura a austríaca, relembrando a sua viagem pela Ásia. “São superorganizados e politizados”, explica.

Segundo Sheila, a diferença entre a FNB do Porto e a de Berlim é que “a do Porto está ainda no início. A parte mais complicada e mais importante é arranjar pessoas com quem podemos contar, que apareçam sempre”, assegura. Explica ainda a razão dessa importância: “As pessoas com necessidade têm de saber que podem contar connosco a uma determinada hora e num determinado sítio, é assim que estabelecemos confiança”. “Se falharmos”, assegura, “essa relação de confiança é quebrada”.

Vídeo cedido pela Food Not Bombs Berlin

Quanto ao futuro do capítulo do Porto, Sheila acha que está assegurado, mas tem viagens planeadas já para a semana seguinte. “Tenho de sair daqui”, diz entre risos, “vim para o Porto para tirar umas férias e esta cidade acaba por ser mais “rock’n’roll” que Berlim”. Ouve-se uma gargalhada alta. “Tenho de descansar”, garante, com uma viagem para Itália já marcada para esse efeito.

O panorama internacional

Mapa com as localizações da FNB | Mapa disponível em https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1KVbOaPBP2Xh1zk59DS9nI-BjjYnrwtwD&hl=en_US&ll=20.711932885586677%2C0&z=2

Apesar de hoje estar presente em mais de mil cidades em 65 países, o coletivo Food Not Bombs começou na cidade de New Hampshire, no estado de Boston, nos Estados Unidos da América, em 1980, depois de um protesto contra a estação nuclear de Seabrook. A primeira refeição da FNB foi servida e partilhada numa banca montada à porta do Federal Reserve Bank, em Março de 1981, durante a reunião de acionistas do Banco de Boston, como forma de protesto contra a exploração inerente ao capitalismo e contra o investimento na indústria nuclear.

No livro Hungry For Peace, o co-fundador Keith McHenry explica que a FNB apoia a partilha, o respeito, a paz, a cooperação, a dignidade, a preservação do meio ambiente e, acima de tudo, o otimismo num momento em que muitos estão desesperados. O espírito Do It Yourself — faça você mesmo — é encorajado, assim como o empoderamento e a rejeição da necessidade de resolver problemas através da violência, seja a violência da guerra, violência da pobreza ou violência contra os animais e a natureza.

Cozinha FNB Porto | Fotografia: Diana Loureiro

Estava marcado o modus operandi. Recuperar alimentos que seriam descartados e compartilhá-los, como forma de protesto contra a guerra e a pobreza. “Com cinquenta centavos de cada dólar de imposto federal dos EUA destinados para a força militar e 20% da nossa comida a ser descartada, enquanto tantas pessoas lutavam para alimentar as suas famílias”, afirma McHenry “vi que que poderíamos inspirar o público a pressionar para que os gastos militares fossem redirecionados para as necessidades humanas”.

Segundo o cofundador, não é necessário desperdiçar “tanto dos alimentos que trabalhamos tanto para cultivar”, mas sim organizar um sistema voluntário de recuperação e redistribuição de alimentos. “Ninguém deve depender de uma cozinha de sopa ou caridade quando temos comida em grande abundância. Trabalhamos para acabar com a dominação do poder corporativo e fornecer acesso à participação na tomada de decisões que afetam a nossa vida e o nosso futuro”.

Quanto à decisão de partilhar refeições apenas veganas, McHenry afirma querer acabar com a exploração não apenas de pessoas, mas também de animais. “Como parte do nosso trabalho pela paz, não queremos apoiar a violência contra os animais”, explicando que uma dieta baseada em vegetais é importante para proteger o meio ambiente e uma maneira importante de fornecer o máximo de alimentos com o menor impacto possível na natureza.

Cozinha FNB Porto | Fotografia: Diana Loureiro

O cofundador sublinha ainda que, embora forneçam refeições e mantimentos para milhares de pessoas, o movimento não é uma instituição de caridade. “Tentamos inspirar o público a participar na mudança da sociedade e concentrar os recursos na resolução de problemas como a fome, a falta de habitação e a pobreza”, demonstra McHenry, “enquanto lutamos pelo fim da guerra e da destruição do meio ambiente”, acrescenta.

“Também tentamos mostrar, pelo exemplo, que podemos trabalhar cooperativamente sem líderes, por meio de esforços voluntários, para fornecer necessidades essenciais como alimentação, habitação, educação e saúde”, remata o ativista.

A questão que pairava no ar em 1980, em Boston, parece perdurar até 2022, na iminência de uma guerra mundial. “Quando mais de um bilião de pessoas passam fome todos os dias, como é que podemos gastar mais um dólar na guerra?”