Futebol feminino: crescimento sustentado com foco na igualdade
- Vitória Costa
- 29/06/2022
- Desporto Portugal
Na última década, são cada vez mais as mulheres a optarem pelos relvados futebolísticos. Os desafios ainda persistem, porém, a cada passe, a paridade para com os homens fica mais próxima.
[Texto de Vitória Costa]
Faltam menos de 15 minutos para as oito da noite. Neste momento, são muitas as movimentações ao redor do centro de treinos do Rio Ave Futebol Clube, localizado nas traseiras do Estádio dos Arcos, em Vila do Conde. Diversos grupos dos vários escalões da formação do clube trabalham na preparação dos próximos desafios.
É por esta altura que começam a chegar os primeiros elementos do plantel da equipa sénior de futebol feminino do clube. Dentro de escassos minutos terá início mais uma sessão de treino. As primeiras jogadoras a prepararem-se para entrar em campo são Andreia Ribeiro, Inês Portugal e Érica Rodrigues.
Estas jogadoras são apenas três exemplos que representam a realidade de cada vez mais meninas e mulheres em Portugal. De acordo com dados anunciados pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) no início do passado mês de abril, e relativos a 31 de março de 2022, foi atingido um recorde histórico de praticantes federadas de futebol e futsal. Atualmente, são mais de 12000 atletas inscritas na FPF, um número que, quando comparado com os registos da época 2011/2012, corresponde a um aumento de 95,9%. Destas, quase 8000 jogam futebol.
Praticantes federadas em 31 de março de 2022: 12.005 – 7.773 em futebol (64,8%) e 4.232 em futsal (35,2%) 7965 – Jovens (66,4% do número total) 4.040 – Séniores (33,6% do número total) |
Para as jogadoras do Rio Ave FC, não é difícil notar essa evolução, bem como as suas consequências. “Tem havido um claro aumento, não só das jogadoras, como também da afluência do público”, garante Inês Portugal, “há cada vez mais jogos a serem transmitidos e cada vez mais pessoas a ver e isso é um claro indicador de que estamos a evoluir no futebol feminino”. Érica Rodrigues relembra um outro momento histórico recente na modalidade. “Ainda há pouco tempo tivemos um recorde de espetadores no SL Benfica x Sporting CP e isso mostra muito daquilo que tem sido o evoluir do futebol feminino nos últimos anos”, explica.
Um crescimento que também é reconhecido pelas direções dos clubes. Tiago Garcia, Diretor de Futebol Feminino do Rio Ave Futebol Clube, relata a forma como este fenómeno se fez sentir no clube vilacondense. Conta que, há duas épocas, existia apenas uma equipa de sub19, de futebol 9, enquanto, na mais recente época, para além do plantel de juvenis, foi criado o plantel da equipa sénior. Uma equipa que tem como objetivo atingir o principal escalão do futebol feminino nacional – a Liga BPI.
A maior diferença que notámos é o facto de que, há duas épocas, para competir no escalão de sub-19, era difícil recrutar. Havia poucas atletas a quererem aparecer para jogar. E aquilo que se tem visto, atualmente, é que já somos contactados por encarregados de educação de atletas com 12, 13, 14 anos que já querem jogar futebol, e pedem para integrar as nossas equipas.
Tiago Garcia
Percentagem de praticantes por escalão: Sénior 4 040 (34%) Sub-19 1 297 (11%) Sub-17 1 574 (13%) Sub-15 1 476 (12%) Sub-13 1 399 (12%) Sub-11 1 217 (10%) Sub-9 674 (6%) Sub-7 328 (3%) |
De acordo com o dirigente para o futebol feminino da equipa de Vila do Conde, os dois principais fatores que ajudam a compreender esta evolução são a mudança gradual da forma como a sociedade encara o futebol feminino e o crescente incentivo e investimento das principais entidades que regem a modalidade – tanto a nível internacional como a nível interno.
O preconceito perante a modalidade, embora se tenha vindo a esbater, ainda deixa marcas na sociedade. “Sentimos, claro, uma diferença no público, bem como na remuneração. Sabemos que isso é uma luta que ainda temos que percorrer, mas acho que o preconceito já não é tão vincado como era há dez ou 15 anos”, revela Andreia Ribeiro.
Segundo um estudo desenvolvido pelo Portugal Football Observatory, a unidade de investigação e desenvolvimento da FPF, denominado “Como angariar e reter mais no futebol feminino?” e divulgado a 8 de março de 2021, nove em cada dez pais mostraram-se recetivos a motivar os filhos a jogar futebol. Porém, quando questionados sobre se estariam dispostos a motivar as filhas para a prática da modalidade, apenas um pouco mais de metade, cinco em cada dez, admitiu fazê-lo.
Nos casos de Andreia Ribeiro, Inês Portugal e Érica Rodrigues o apoio por parte dos familiares mais próximos, nomeadamente os pais, nunca faltou. Ainda assim, por vezes, ainda são confrontadas com situações menos confortáveis.
Há pessoas mais velhas que acabam por dizer que “o futebol é só para os rapazes”, mas acho que nós já não sentimos tanto isso.
Andreia Ribeiro
Já me fizeram perguntas do género “porque é que não fazes outro desporto experimentas outro desporto?”, faz parte. O que eu respondo é que tenho que fazer aquilo que gosto.
Inês Portugal
Já ouvi comentários do género que futebol não é para raparigas e isso é normal, mas nós só temos que ouvir e calar e fazer o nosso trabalho.
Érica Rodrigues
O início do sonho, de pés assentes na relva
Foi aos seis anos de idade que Andreia Ribeiro começou a jogar futebol. O gosto pela modalidade, que herdou do pai, levou-a até às escolinhas da Associação Desportiva e Cultural de Balasar, na Póvoa de Varzim, de onde é natural. “Desde aí nunca parei”, declara. Oito anos mais tarde, depois de deixar o clube da terra que a viu nascer, chegou ao emblema vilacondense, onde se tornou federada. Lembra que “uma amiga minha começou a jogar cá [no Rio Ave FC] e disse-me «vai fazer umas captações e ver o que é que dá». Vim, fiquei e a partir daí estive sempre no futebol federado.”
Para a jogadora, atualmente com 21 anos, ser jogadora de futebol não fazia parte dos planos, uma vez que sempre teve objetivos fora da modalidade. “Eu sempre quis tirar medicina veterinária. Ainda não tenho esse curso, tenho o de enfermagem veterinária, que é licenciatura, mas tenciono concluir o mestrado”, explica. O futebol sempre foi encarado como “um hobby ao qual me dedicava como se fosse realmente aquilo que eu queria”, até porque, “caso desse para jogar futebol e ganhar dinheiro, ótimo. Mas, caso não desse, tinha sempre uma alternativa mais viável, porque se no masculino já é complicado, no feminino mais difícil é de chegar a patamares mais elevados”, afirma a atleta.
Já Érica Rodrigues, de 21 anos, natural da ilha da Madeira, começou a jogar no Clube Desportivo Ribeira Brava, aos 12, com rapazes. Conta que a paixão pela modalidade é transversal a todos os membros da família. “O meu pai foi jogador, a minha mãe foi atleta, também de futebol e o meu irmão é jogador”, refere. Tornou-se jogadora de futebol federada aos 16 anos, altura em que passou a representar os madeirenses do Club Sport Marítimo. Revela que não esperava que as coisas acontecessem “desta forma”, mas que, depois dos 18 anos, “apurei ainda mais o gosto pelo futebol e, até hoje, tenho me mantido por aqui”.
Por sua vez, Inês Portugal, começou a jogar de forma mais profissional aos 18 anos, depois da entrada na faculdade, em Lisboa. Relata que sempre demonstrou uma “grande vontade de jogar”, e, perante o incentivo de amigos e familiares, experimentou ir a um treino de captação. Foi aceite na equipa e adquiriu, simultaneamente, o estatuto de federada. Porém, os primeiros contactos com a modalidade remontam a fases anteriores da vida da atleta. “Os meus tios jogavam comigo quando era criança. No colégio onde estive também fiz parte de algumas equipas masculinas, mas depois acabei por ter que sair porque deixaram de permitir a presença de raparigas na equipa masculina”, comenta.
Federadas nas últimas dez épocas desportivas: 31 de março de 2022: 12.005 31 de março de 2021: 6.497** 31 de março de 2020: 11.353 31 de março de 2019: 9.945 31 de março de 2018: 8.851 31 de março de 2017: 8.533 31 de março de 2016: 7.252 31 de março de 2015: 6.621 31 de março de 2014: 6.722 31 de março de 2013: 6.254 31 de março de 2012: 6.040 31 de março de 2011: 6.012 **Número reflete a paragem nas competições dos escalões de formação provocada pela pandemia de Covid-19, na época de 2020/21 |
À semelhança de Andreia Ribeiro, Inês Portugal admite que competir a este nível sempre fez parte dos planos, mas apenas “como hobby”. “Tenho noção que não é um plano para ganhar a vida com isso. Sempre foi parte do meu plano jogar, nem que fosse com amigos, mas sendo em competição acho que é melhor ainda”, admite.
As três atletas estão de acordo no que diz respeito às vantagens de jogar enquanto federadas. “As condições são completamente diferentes”, salienta Andreia Ribeiro, “nós aqui somos federadas, ainda não somos profissionais, recebemos algumas ajudas de custo. Mas, claro, o nível de exigência aumenta e a nossa capacidade também é outra”. Érica Rodrigues destaca que o facto de “ser mais valorizada no mundo do futebol do que propriamente se não for”, enquanto, na opinião de Inês Portugal sublinha que “nós conseguimos competir contra as melhores equipas e a competição acaba por ser saudável”.
Um caminho a consolidar
Relativamente às perspetivas para o futuro do futebol feminino, Inês Portugal considera que o investimento na modalidade ainda está aquém das expectativas e necessidades das equipas. “Ainda há pouco investimento por parte dos clubes. É certo que tem sido um investimento cada vez maior, nós vemos isso ao longo dos anos, mas poderiam investir um bocadinho mais nas condições para o feminino e também ter mais incentivos da Federação, porque os clubes acabam por não ganhar tanto com o futebol feminino como masculino”, constata a jogadora.
Por sua vez, Andreia Ribeiro tem uma visão mais otimista da realidade. “O caminho está a ser feito”, assegura. “O facto de a Federação estar a aumentar a verba faz com que os clubes grandes comecem a ter que investir no futebol feminino – porque depois de terem a equipa ninguém gosta de perder, não é? – e, por isso, todos à volta vão começar a subir a fasquia. Isso vai começando a gerar dinheiro no próprio futebol feminino, que vai começar a auto sustentar-se. A partir desse momento a intensidade do futebol, bem como a velocidade, vai ser diferente, o que também vai chamar mais adeptos”, argumenta, e conclui salientando que “tudo isto é um processo que vai demorar, mas já estamos no bom caminho”. Da mesma forma, Érica Rodrigues mostra-se confiante quanto ao futuro. “A valorização é maior, há cada vez mais clubes a apostar no futebol feminino. Estamos a crescer”, garante.
Na opinião de Tiago Garcia, a melhor forma de os clubes contribuírem, ainda mais, para a evolução da modalidade, prende-se essencialmente, com a equidade com que as instituições devem abordar tanto o futebol masculino como feminino. “Dar as mesmas condições e não discriminar sexo masculino e feminino. Aí está o segredo. Os clubes conseguirem oferecer, dar garantias de boas condições de trabalho, de bons treinadores, bons métodos de treino e boas condições no que toca a departamentos médicos”, declara. Isto porque “se as condições forem boas vai haver cada vez mais meninas e mulheres a quererem optar pelo futebol em vez de outras modalidades que a sociedade, de modo geral, associa sempre ao sexo feminino. Cada vez mais, as modalidades não têm géneros”, defende.
Sou a Vitória Costa, tenho 20 anos e sou natural de Barcelos. Neste momento, frequento o terceiro e último ano da licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Lusófona do Porto, no ramo de Comunicação e Jornalismo. Sou colaboradora na editoria de Desporto da plataforma #infomedia e tenho como objetivo trabalhar em qualquer vertente da comunicação no contexto desportivo, aliando, assim, duas das minhas grandes paixões.