Ilda Alves: “Não há lugar como este. Digam o que disserem, Campanhã é Campanhã”
- Ruben Marques
- 20/06/2022
- Arte e Culturas Atualidade Especial Híbridos Portugal
A ex-funcionária fabril, moradora na Rua de Miraflor não esconde o orgulho de pertencer à região de Campanhã. Através do desfiar de memórias do que viveu nesta rua, desde as corridas de uma ponta à outra até às canções para os ferroviários à janela da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda, é possível perceber as diferenças entre o passado e o presente desta zona, a cinco minutos da estação de comboios.
[Reportagem de Ruben Marques e Vitória Costa]
Ilda Alves, nascida a 29 de dezembro de 1951, é uma das moradoras mais antigas da Rua de Miraflor. A habitar a mesma casa desde os dois dias de idade, tem bastante presente na memória o que mais a tem vindo a marcar ao longo destes 70 anos. Noutros tempos, foi presença assídua na Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda, a poucos passos de casa, o que lhe permitiu colecionar uma infindável lista de momentos, agora partilhados de sorriso no rosto. Embora gostasse de dançar, conta que toda a gente lhe reconhecia o talento para cantar. “Eles diziam sempre: “tens de cantar””.
Refere que, onde está sediado, atualmente, o MIRA FÓRUM era no passado o dormitório dos ferroviários. “Aqueles ferroviários vinham da estação, de trabalhar, com aqueles baús, onde levavam o almoço e vinham pela travessa [de Miraflor]. Eu punha-me à janela [da associação] a cantar e eles em vez de irem para o dormitório, subiam logo as escadas por lá cima. Aquilo era uma borga! Eles pediam: “agora canta esta, agora canta aquela”, relembra.
Aquilo lá dentro era uma família, um amor!
Ilda Alves
A comunidade então era muito próxima. “Esta rua era uma família”, afirma. Era uma zona “muito divertida”, graças à azáfama provocada pelos vários armazéns que aqui existiam. “Era uma rua de muito trabalho”, lembra. “Toda a gente se conhecia” e a entreajuda era uma constante. Tanto que, pela altura do Natal, um dos donos destes armazéns “dava coisas a muita gente da rua – bacalhau, vinho, farinha, azeite. Ele era uma pessoa muito prestável”, recorda.
A portuense acrescenta que este espírito estava sempre presente, independentemente da época do ano. “Íamos ao armazém de farinhas e dizíamos: “não me vende uma saquinha de farinha de pau?” E eles davam numas sacas de pano. Ia-se ao dos cereais e dizia-se: “Senhor Fernando, não me dá um bocadinho de comida para o meu periquito?” Ele dava logo um saco”, recorda.
Ilda Alves estudou na escola da Lomba, na Rua de Frei Heitor Pinto, e mais tarde veio a trabalhar numa fábrica de malhas, na Rua de Pinto Bessa. Ela reforça o facto de ser conhecida e de conhecer tudo e todos à volta desta parte da cidade do Porto.
A infância agitada em Miraflor
As brincadeiras na rua acabaram por marcar, de forma significativa, a infância da portuense. “Antigamente, as crianças eram mais felizes, brincavam muito na rua. Toda a minha vida brinquei na rua”. De entre os inúmeros jogos em que participava, os mais presentes na memória são a patela, a sameira e a bola.
Correr pela rua, descalça – por não ser confortável correr com o calçado daquele tempo, “os socos” – também era mais um dos passatempos. “Corria esta rua de baixo até lá em cima, onde havia uma carvoaria, que era do senhor Laurindo, que já morreu. Quando chegava lá em cima, ele fazia-me barreira para não passar e depois enfarruscava-me o nariz, com as mãos cheias de carvão”.
O paradeiro de eleição era nos Malmequeres de Noêda, onde, “desde pequenita”, frequentou o folclore.
Se ainda tivessem folclore, ainda hoje lá andava
Ilda Alves
Revela que conheceu a associação pela mão de uma senhora conhecida por Emilinha Calceira, mãe de Artur Costa, que viria a ser cunhado de Ilda Alves.
“Os Malmequeres para ela eram tudo na vida! E, então, eu ia com ela aos ensaios, para todo o lado, e ela adorava”, confidencia. Para além de ter feito parte do ícone da cultura popular, o folclore, era adepta e, até, participante do grupo de teatro deste espaço recreativo. Das peças a que assistiu, a mais marcante foi “O Perdão dos Filhos”, em que o ensaiador era o cunhado Artur Costa.
Apesar de terem existido mais coletividades nas redondezas de Miraflor, a portuense realça o significado que esta Associação tem, em particular. “Já fiz muitas amizades através da associação, muitas mesmo. Bastava haver saídas, por exemplo, do folclore: “este domingo vamos dançar a Massarelos. Este domingo vamos dançar a Lordelo. Este domingo vamos dançar aqui.” Aquelas convivências, aquelas pessoas, depois ao fim havia sempre um beberete” e, estes encontros, acabavam por reforçar os laços entre os intervenientes.
Independentemente de reconhecer que “não eram só rosas, também tínhamos os nossos problemas”, não era isto que mais a afetava. “Eu só ficava muito aborrecida quando chegava lá e me diziam: “hoje não há ensaio, não veio fulano.” Bastava faltar um músico, o acordeonista, por exemplo, se faltasse, aí ficava aborrecida, mas de resto não”.
A “má fama” que não impedia Ilda Alves de dançar
As festas e os bailes levados a cabo pela associação, às sextas à noite, aos sábados à tarde e à noite e ao domingo à tarde, eram, inclusive, motivo suficiente para Ilda Alves sair de casa e ir até ao ponto de encontro daquela zona de Campanhã. “Aquilo tinha muita má fama, mas, para mim, a má fama não valia de nada porque sempre me dei ao respeito. Nunca houve problema nenhum.” Conta que, posteriormente, começou a namorar com o atual marido, José Armando, com quem casou aos 18 anos, o qual não gostava de bailes, nem de dançar, mas, como sabia que a esposa gostava, acompanhava-a e assistia às danças de Ilda com as colegas. À medida que o tempo avançou, foi-se integrando no espaço recreativo. Começou por acompanhar o folclore “para todo o lado”, chegando, posteriormente, a ser diretor.

Fotografia cedida pela entrevistada

Fotografia cedida pela entrevistada
“Eu não deixava de ir para lá de maneira alguma. Era sempre nos Malmequeres. Adorava os Malmequeres. Não quero dizer, com isto, que não adoro, porque gosto, é uma coisa marcante na minha infância. Mas, claro, aqui na rua, pessoas antigas já há poucas, contam-se pelos dedos, porque vão morrendo, depois também veio esta mocidade e eu deixei de lá ir. Vamo-nos afastando, para dar lugar aos novos. Também têm direito, não é?” O facto de terem acabado com o folclore e com o teatro, fez com que se fosse afastando daquele ambiente onde, outrora, havia sido muito feliz. Porém, mesmo já não frequentando o espaço, reitera que “Malmequeres, para mim, mais uma vez, era tudo. Ainda hoje é tudo!”, reforça.
Não admito que ninguém diga mal dos Malmequeres de Noêda
Ilda Alves
Sendo uma associação com uma vasta história, Ilda Alves considera este espaço fundamental para a comunidade, até porque “se perguntarem: “pode-me dizer onde é a Associação dos Malmequeres de Noêda?” Toda a gente conhece. Acho que se os Malmequeres de Noêda acabassem, Campanhã ficava mais pobre”.
A rua, que tem acompanhado as várias fases da vida da portuense, tem vindo a passar “por muitas transformações, em todos os sentidos”. Segundo a antiga trabalhadora fabril, a maior das alterações sentidas ocorreu aquando da abertura dos espaços do MIRA FÓRUM.
“São pessoas que, realmente, vieram para aqui em boa hora, se não estes armazéns aqui eram uma miséria, eram só desgraças”, refere, destacando a generosidade da equipa para com a comunidade. Acrescenta ainda que a reabilitação dos antigos armazéns “foi uma maravilha para a nossa rua”.
A minha casa é num bairro, mas eu prezo isso, acredite. Antes quero morar cá do que num apartamento, porque apartamentos são ilhas ao alto, como se costuma dizer. Não é que os ingleses e os estrangeiros andavam sempre atrás de uma casinha destas?
Ilda Alves
O forte apego à rua onde foi criada tem sido passado de geração em geração, nomeadamente, para os dois filhos e para os netos. Prova disto é a proposta que o filho, que reside na Póvoa de Lanhoso, lhe pediu que fizesse ao senhorio. “Ele perguntou: “ó mãe, o teu senhorio não quer vender a casa?” E eu disse: “acho que não”. E diz ele: “eu comprava aquela casa”. Eu sei porquê. Claro, nós estamos a ficar velhos, ele tem um filho que, se calhar, vem aqui para o Porto, para a universidade. O meu neto gosta muito do Porto e, às tantas, ele queria ter um cantinho aqui. Mas, para já, não”.
Da mesma forma, a filha, moradora na travessa do Freixo, demonstra uma grande afetividade para com as próprias raízes. “Ela está na casa dela, mas sempre a pensar neste bocado aqui em cima e a minha neta é igual”, revela. Tanto que segue as pisadas da avó, sendo também presença recorrente na Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda.
Na opinião de Ilda Alves, este espaço recreativo poderia ter mais atividades. “Há muitas associações que fazem para pessoas idosas, danças, ginástica… se eles fizessem isso, era a primeira a ir para lá”, exemplifica. Isto porque, tanto a portuense como o marido pagam para frequentar aulas de natação e de ginástica, respetivamente. “Se tivesse aqui numa associação, nem que tivéssemos de pagar alguma coisa, ajudávamos a associação e fazia-nos jeito. Gostava que eles fizessem qualquer coisa por Campanhã”, até porque, acrescenta, “era uma associação que, embora não faça nada por ela neste momento, não queria que acabasse em vão”.
“Espero que ninguém me tire daqui. Não há lugar como este. É um sítio maravilhoso”, justifica. “Digam o que disserem, Campanhã é Campanhã!”
Chamo-me Ruben Marques, tenho 20 anos e sou de Gondomar. Decidi seguir o curso de Ciências da Comunicação, uma vez que, foi a área que sempre me fascinou e é o que me vejo a fazer no futuro.