Instituições de acolhimento: o silenciamento da saúde mental

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Instituições de acolhimento: o silenciamento da saúde mental

Estigmas sociais, visibilidade dos traumas e acompanhamento especializado são algumas das questões em que a psicóloga Liliana Morais, diretora técnica no Lar da Santa Cruz, incide, abordando os papéis das instituições de acolhimento na vida das crianças e a mediatização da saúde mental.

[Texto de: Matilde Silva e Pedro Silva]

Fotografia fornecida pela entrevistada, Liliana Morais

Fundado em 1936, em Matosinhos, o Lar da Santa Cruz acolhe crianças e jovens  do sexo feminino, em risco, seja de abandono ou maus tratos no domicílio. Liliana Morais, atual diretora técnica da instituição, desempenha, há 17 anos, um papel essencial na vida destas crianças, sendo o mais próximo de uma figura materna, acompanhando o seu desenvolvimento diariamente. Licenciada em Psicologia, foi neste centro de acolhimento que fez o seu estágio, em 2005, e por aqui ficou. A sua pós-graduação em Proteção de Jovens e Crianças em Risco, advém de uma necessidade profissional de “depois de já cá estar, de aprender mais sobre estas questões”, que envolvem as jovens, tanto a nível judicial como social. A formação permitiu-lhe ter uma maior perceção sobre o funcionamento da lei e dos processos que tem em mãos.

“Acho que devemos sempre tentar reciclar conhecimentos porque as coisas  vão mudando e evoluindo. Sinto esta necessidade, pois a lei é uma questão muito  prática, que eu precisava para trabalhar aqui.” 

Liliana Morais

Atualmente, esta instituição acolhe 15 meninas com idades compreendidas entre os os 11 e os 28 anos. No entanto, o Lar da Santa Cruz alberga crianças a partir dos seis anos, que dependendo da idade, competências e patologias, ganham e demonstram alguma autonomia, para nunca dependerem de ninguém. “O nosso trabalho desde muito cedo, mais cedo do que nós nas nossas casas, é que elas comecem a fortalecer a sua independência”, seja na ida para a escola ou em tarefas domésticas. A divisão em grupos, para a realização de tarefas domésticas, contribui para um melhor ambiente e abertura entre as jovens. 

“Elas é que se organizam, umas limpam a casa de banho, outras a cozinha…  Ao almoço não dá, mas todas as noites há grupos que nós estabelecemos que põem a  mesa, lavam, secam e guardam a loiça. Todos os dias há um grupo, e elas sabem que  se nesse dia são elas, no próximo são outras.”

Liliana Morais

Hoje em dia, no Lar da Santa Cruz trabalham quatro membros da equipa técnica e quatro assistentes. Apesar do esforço de todos os trabalhadores deste lar, o  acompanhamento psicológico ocorre fora da instituição, o que é o ideal para estas jovens, pois fomenta uma maior independência emocional entre elas e as colaboradoras do lar. Liliana Morais não faz acompanhamento psicológico individual, de modo a não existir uma mistura de papéis, que podem ser prejudiciais ao desenvolvimento destas jovens. Com o apoio da comunidade, as meninas são, assim, acompanhadas fora de portas, nomeadamente na Casa da Juventude de Matosinhos, na Associação Plano i, no Centro de Saúde, em clínicas privadas e até na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. 

“Não seria compatível eu estar aqui como diretora técnica e a fazer tantas  outras coisas, e ainda estar a fazer acompanhamento individual.”

Liliana Morais

De acordo com a diretora técnica, ao chegarem a instituições com uma idade mais avançada, já a entrar na pré-adolescência, estas jovens tendem a enraizar vícios de comportamento muito difíceis de contrariar e moldar.  Ou seja, esses comportamentos obedecem a circunstâncias individuais, do contexto de vida dessas jovens, e que fogem um pouco ao controlo das instituições, tornando a intervenção e a evolução de integração um pouco mais difíceis.

Síndromes como a de abandono estão, na sua maioria, na origem destes  comportamentos. Segundo a diretora técnica, as crianças que chegam a este tipo de instituições têm graves problemas de confiança devido a acontecimentos passados, nomeadamente com a família. Ao serem separadas dos seus progenitores, e após passarem por diversas outras instituições, estas jovens criam problemas de vinculação.  

“Há aqui uma síndrome de abandono, que começa na família, como é lógico, e que depois cria problemas de vinculação, de não se conseguirem relacionar de  forma saudável com os outros.”

Liliana Morais

A psicóloga refere ainda que pelo facto de não serem capazes de manter uma relação saudável com as outras pessoas, estas jovens tendem a desenvolver comportamentos de proteção que podem levar “à agressividade e à frustração”, “ao desenvolvimento de depressões” e “à dissolução das fronteiras entre a privacidade e intimidade, especialmente em vítimas de abuso sexual”. 

“Os sintomas, ou as problemáticas que depois ficam associadas a este tipo de maltrato, seja ele físico, psicológico ou sexual, são os problemas de vinculação. De não saberem relacionar-se, não sabem em quem podem confiar.” 

Liliana Morais

Entre as jovens institucionalizadas, existe uma panóplia muito grande de traumas, sintomas e formas de reagir, muito devido a problemas de vinculação e à síndrome de abandono. Estes problemas de vinculação, quando o trabalho feito em tenra idade não foi o ideal, podem acarretar problemas em lidar com a autoridade, nota ainda a técnica. Nas escolas, estas jovens são rotuladas e estigmatizadas por colegas de sala e por professores. O estigma social evidencia-se nesse preciso momento “quando na adolescência diferenciam que esta menina é da instituição”.

A visibilidade pública nos media deste tipo de intervenção é, de acordo com a psicóloga, “essencial para a sobrevivência destas instituições”. Isso porque, acredita que “quanto mais se falar, mais se consegue desmistificar uma série de ideias preconcebidas que há por estes sítios”. Contudo, acrescenta, o mais importante é a abertura de lares mais especializados, onde existe uma intervenção mais direta e por pessoas com experiência técnica especializada, como a esquizofrenia ou as dependências químicas. Nesse tipo de instituições, há um conjunto de instrumentos e estratégias muito mais direcionadas ao problema, “mas o acolhimento familiar seria o ideal”, sublinha.  

“Em idades até mais pequenas é sempre preferível ter um ambiente mais familiar, do que viver numa casa com muita gente.”

Liliana Morais

Com a pandemia, as pessoas despertaram ainda mais para os problemas ao nível mental. Os psicólogos ficaram com as suas agendas completamente preenchidas, tanto no sistema de saúde público como no privado. Um acompanhamento que deveria ser quinzenal, teve níveis de espera mínimos de um mês, o que levou “quem estava mal a ficar pior”, nota.

O mesmo ocorreu nos lares de acolhimento. Liliana testemunha que as meninas cujos sintomas depressivos eram já evidentes, pioraram o seu diagnóstico, pois não podiam sair de casa, e apenas algumas conseguiam contactar as suas famílias por videochamada. Contudo, a diretora técnica do Lar de Santa Cruz afirma que tudo correu bem devido ao valor humano, ou seja, às pessoas que trabalham na Instituição. “Os recursos humanos da casa, a disponibilidade que mostraram foi das coisas mais importantes para que isto corresse bem”, reforça, referindo-se à importância da equipa no acompanhamento das jovens.

O estigma de ir ao psicólogo ainda se encontra enraizado no pensamento das famílias portuguesas. Contudo, uma nova geração de pais, mais despertos para a temática da saúde mental, cada vez mais têm atenção para com os seus filhos. Isto é fruto de uma maior mediatização do tema, nota a psicóloga, quer seja através de debates ou de figuras conhecidas a dar os seus testemunhos, em horário nobre.  

Para além dos pais, Liliana acredita que as escolas também desempenham um papel fundamental nesta temática, embora seja uma problemática a que atendem com alguma dificuldade. “As psicólogas que trabalham nos agrupamentos escolares não têm mãos a medir. Elas fazem um excelente trabalho dadas as suas condições”, mas isso leva a uma escassez de meios e de apoios, principalmente em casos mais graves. “Há uma clivagem grande entre pais que são cada vez mais despertos para este tipo de questões, e os que estão na outra ponta, que mandam o miúdo para a escola e a escola que resolva.”

A sociedade civil é um dos principais apoios destas instituições. A comunidade matosinhense presta todo o tipo de serviços, de forma gratuita, a estas jovens. Desde consultas no dentista, ao fornecimento de pão diariamente, o Lar da Santa Cruz consegue sobreviver através de campanhas e de angariações de donativos e serviços gratuitos. As redes sociais são uma forma de divulgação, da sua situação, e alcance para mais possíveis ajudas.

O poder local, como a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia de Matosinhos são dois dos grandes apoiantes deste projeto. O lar, com ajuda monetária desses dois colaboradores, foi sujeito a obras e remodelações, em 2019, construindo uma casa nova. “Nós fizemos uma casa nova, esta casa estava literalmente a cair, tínhamos um buraco com umas vigas de ferro a segurar o teto, estivemos uns tempos assim.” 

A época natalícia é a mais especial para o Lar da Santa Cruz. As jovens escrevem cartas ao Pai Natal que, mais tarde, são publicadas nas redes sociais da instituição. A comunidade une-se para tornar os desejos das meninas realidade, proporcionando-lhes um dia mágico. 

Contactos:

Rua Roberto Ivens, 446

4450-248 Matosinhos

229 382 478

larsantacruz.ipss@gmail.com

Donativos em género, entregues na instituição  

NIB: 0007 0000 0081709696123 

Matilde Silva

Matilde Silva, 20 anos, natural de Leça da Palmeira. O gosto por novas línguas, culturas, costumes e leitura fez com que a comunicação surgisse como uma paixão e carreira a seguir. Estudante de terceiro ano em Ciências da Comunicação, na Universidade Lusófona do Porto, e colaboradora na editoria da “Geração Z” na plataforma #infomedia