INTERSECCIONALIDADE: “As representações passam muito pela legitimação de um discurso securitista”

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INTERSECCIONALIDADE: “As representações passam muito pela legitimação de um discurso securitista”
Ana Cristina Pereira.
Imagem disponibilizada pela entrevistada.

Ana Cristina Pereira é investigadora de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, como membro do projeto (DE)OTHERING.

É doutorada em Estudos Culturais, pela Universidade do Minho, com a tese “Alteridade e identidade na ficção cinematográfica em Portugal e em Moçambique” (2019). Tem como principais interesses de investigação: racismo, identidade social, representações sociais e memória cultural no cinema, numa perspetiva pós-colonial e interseccional.

Entre 2017 e 2019 foi investigadora do projeto “À margem do cinema português: um estudo sobre o cinema afrodescendente produzido em Portugal“. É, ainda, investigadora colaboradora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, como membro do projeto CulturesPast&Present.


Enquanto ativista, o #infomedia sabe que já se envolveu em várias ações. Dessas experiências, qual (ou quais) destacaria como mais marcante?

Esta é uma pergunta difícil, porque a maior parte do trabalho ativista passa por engrossar um grito, ou seja, acompanhar ações, atividades e campanhas levadas a cabo em grupo. Talvez possa destacar, contudo, a atividade em que participei recentemente com o Movimento Negro Português — um conjunto alargado de associações e coletivos— que teve como propósito construir um contributo, texto, para o plano nacional antirracista que o governo aprovará, acredito, em breve.


Acha que os média têm um papel de grande importância quando se trata de ressalvar questões intersecionais? 

Mais do que um papel importante, os meios de comunicação social possuem um papel determinante. Não é por acaso que são chamados o quarto poder. Infelizmente nem sempre esse poder é exercido no sentido de questionar estereótipos e preconceitos e de trazer à luz questões invisibilizadas, mas sim de os reproduzir as lógicas discursivas, ou seja, a ideologia vigente. Por exemplo, quando o cabo-verdiano Luís Giovani Rodrigues, foi espancado e acabou por morrer no hospital nenhum meio de comunicação social noticiou o acontecimento, só foi noticiado quando e porque as associações de estudantes e antirracistas locais começaram a protestar (ele morreu uma semana depois de ser espancado).

Por outro lado, nessa mesma altura, um jovem (branco) foi assaltado por dois rapazes guineenses em Lisboa, e o assunto fez os cabeçalhos dos jornais logo na manhã seguinte. É apenas um exemplo da forma como os meios de comunicação tratam de forma diferente realidades/acontecimentos em tese iguais. 


A sua tese foca-se no estudo da “alteridade e identidade na ficção cinematográfica”, quer em Portugal como em Moçambique.
Assim sendo, na sua ótica, de tocas as ausências de representação – e tendo plena consciência da gravidade que todas acarretam, quais deveriam ser discutidas com mais urgência na esfera pública?

A minha tese debruça-se sobre a construção da alteridade e da identidade no cinema, em Portugal e em Moçambique. Por outras palavras, este estudo compara a forma como são representados os africanos no cinema português, com a forma como são representados os europeus no cinema moçambicano, e tenta perceber, nesse processo, como cada nação se constrói por oposição a um ‘outro/alter’ – um outro africano no caso português e um outro europeu no caso moçambicano.  O estudo procura pensar no cinema enquanto circuito cultural – desde a produção, até ao consumo. Um aspeto muito importante deste trabalho foi o estudo de receção. Eu mostrei um conjunto de filmes portugueses e moçambicanos cá e lá, e conversei com os públicos sobre eles, para tentar perceber a forma como públicos não especialistas em cinema dialogam com as representações propostas pelas obras. 

No cinema português mainstream as personagens negras são raras e quando existem, com frequência, não têm voz. Seria importante, claro, ter maior diversidade racial nos ecrãs, mas também nos lugares de produção, escrita, realização, etc. 

Existe uma produção afrodescendente muito importante, mas que se debate com grandes dificuldades para ser distribuída, divulgada e vista. Estes filmes, além de contarem histórias sobre os temas tradicionais da arte – o amor, a morte, etc. – abordam uma quantidade de questões muito próprias – racismo(s), discriminação, memória, imigração, identidade, etc.


Considera que movimentos sociais, tais como o “Black Lives Matter”, por exemplo, tiveram um impacto direto
na indústria cinematográfica,
em específico, e alteraram alguns padrões errados? 

Considero que a nível internacional movimentos como o BLM têm tido um impacto na atenção que as grandes produtoras de conteúdos audiovisuais dão às questões da inclusão. A NETFLIX, por exemplo é um caso interessante para estudantes de comunicação – há uma preocupação de inclusão não só temática, mas ao nível da constituição das equipas de trabalho e das lideranças. Em Portugal, a discussão ainda é muito recente e os movimentos sociais têm menos força, mas penso que, apesar de tudo, alguns jornalistas (mais do que as empresas de comunicação em si, que seguem lógicas neoliberais) têm influenciado positivamente o ‘ambiente’ geral. Refiro-me, por exemplo, ao trabalho de Joana Gorjão Henriques, jornalista do jornal Público.


Atualmente é membro do projeto “(DE)OTHERING”. Cientes de que a investigação apenas termina em janeiro de 2022,
será que nos poderia adiantar algumas das conclusões a que já chegou sobre a representação mediática de migrantes,
refugiados e “outros internos” em Portugal e, de forma geral, na Europa?

Há algum país ou meio de comunicação, por exemplo, que se destaque por reproduzir representações desadequadas?

A nível europeu, penso que não. Infelizmente os países estudados (Portugal, Itália, Alemanha, França e Reino Unido) falam a uma só voz nesse aspeto. As representações passam muito pela legitimação de um discurso securitista que vê no ‘outro’ migrante e/ou refugiado um invasor do qual precisamos de nos defender, ou um ‘coitadinho’ sem agência, a quem os europeus dão ajuda, porque são muito bons. Relativamente aos ‘outros internos’ – pessoas nascidas na Europa, mas que são percebidas como estrangeiras, no caso português negros e ciganos, por exemplo – cada país tem as suas especificidades e o seu modo próprio de produzir ‘outros internos’, mas todos o fazem.


Recorda-se de algum evento/acontecimento em específico que, erradamente, foi altamente condenado pelos média? Se sim, porquê?

Vou dar apenas três exemplos que a meu ver dão a, estudantes de comunicação, bons estudos de caso:

O falso arrastão de 2005 – já bastante falado e que motivou um documentário feito pela jornalista Diana Andringa e o SOS Racismo. Os telejornais abriram com a notícia de que ‘centenas de jovens negros invadiram a praia de Carcavelos’… para depois se descobrir que tudo não passava de uma grande falácia, mas ainda hoje muita gente fala e pensa no arrastão.

Em 2015, na Cova Da Moura – um grupo de jovens dirigiu-se à esquadra de Alfragide para tentar perceber porque é que tinha sido detido um morador do bairro – que foi detido de forma aleatória – e foram insultados e espancados pela polícia. Foram levados para o hospital e os diagnósticos médicos eram assustadores. Órgãos de comunicação social como o Correio da Manha, o Diário de Noticias, a TVI, etc. deram a notícia como “Jovens invadiram a esquadra de Alfragide”. Os jovens estiveram presos 48h. As vítimas desta tortura falaram diretamente à imprensa, e por serem pessoas com maior capacidade discursiva, porque são ativistas, e têm estudos etc. tiveram capacidade de resistência e explicaram com pormenores o que lhes aconteceram. A pouco e pouco (Público, RTP e revista Sábado) mudaram a narrativa. O processo em tribunal foi ganho pelo grupo de vítimas, mas não totalmente. Porque apesar dos polícias serem condenados não foram acusados de racismo. Este caso é importante, porque começa com a comunicação social a mostrar apenas a perspetiva da polícia, e só depois dá a volta. Mas quando o faz acontecem coisas interessantes, por exemplo reportagens com os moradores da Cova da Moura e a sensibilização para o drama da violência policial, que atinge de forma desproporcional as populações racializadas, em Portugal (não apenas nos EUA). Houve uma sensibilização para os média em geral não se precipitarem. É um caso em que a comunicação social fez autocorreção, por pressão dos movimentos sociais e das redes sociais virtuais.

O vídeo doméstico do bairro da Jamaica, que viralizou. Percebeu-se que aqueles moradores são violentados. Aquilo é corriqueiro, mas a imprensa não foca. No entanto, ao ser divulgado pela deputada Joana Mortágua, entre outras personalidades conhecidas tornou-se impossível ignorar. Os telejornais reproduziram o vídeo que já era trend, nas redes sociais. Na sequencia destes acontecimentos os moradores jovens do bairro da Jamaica organizaram uma manifestação espontânea, pacífica. Só que ao irem para a Avenida da Liberdade, estavam a ocupar um espaço que não é normal ocuparem. Os desacatos foram provocados e a cobertura noticiosa foi “há pedras e a polícia responde com balas”. A jornalista Fernanda Câncio escreveu uma crónica na TSF com o título “a avenida da Liberdade não é para negros” – Os corpos negros não podem estar na zona nobre da cidade; a ausência de participação política e cívica da população negra tornou-se uma evidência, mas os média não valorizaram esse gesto cívico, pelo contrário, aquela manifestação foi tratada como um ato de delinquência. No entanto, houve gente a passar como por exemplo o cineasta, João Salaviza, que filmou, e que negou essa violência. As manifestações são vistas de forma diferente, pelos média, consoante a identidade percebida dos manifestantes.


Numa das suas publicações, é possível ler que a interseccionalidade é uma “teoria vítima do seu próprio sucesso”.
Pode explicar em que dimensão?

Creio que isso foi um desabafo de facebook e creio que tinha a ver com a apropriação que o capitalismo e o discurso hegemónico fazem das teorias radicais. Quando as teóricas da interseccionalidade dizem que não há uma hierarquia de opressões obviamente não querem dizer que a opressão de não poder conduzir o carro do papa, é igual à opressão de não conseguir um emprego por causa da cor da pele. Hoje muitas pessoas falam de interseccionalidade, mas creio que muitas não percebem bem o que ela implica, trata-se apesar de tudo, de uma teoria de base marxista.  


O nome da aula aberta é “Interseccionalidades: pode o Ciberjornalismo ser um lugar de fala?”. Na sua opinião, o ciberjornalismo,
enquanto jornalismo on-line, pode ser realmente um lugar de fala reivindicativo?

A voz e o lugar de fala sempre existiram – a internet é só mais um meio. Este meio é, como todos os outros, e cada vez mais, dominado pela hegemonia e reproduz, portanto, lógicas de poder. A internet permite a todos e ao ciberjornalismo em particular estar em contacto e ser lido virtualmente em todo o mundo o que alimenta também colaborações entre pessoas de diferentes pontos do globo. No entanto, não se deve cair na tentação de pensar que é a internet que dá voz. Por outro lado, os discursos alternativos – os diferentes lugares de fala – existem, mas sempre existiram, se serão apagados ou não vai depender de nós todos apenas. É preciso não esquecer que os discursos minoritários racistas, xenófobos, homofóbicos, etc. também encontram na internet e no ciberjornalismo um meio para se expandirem.

No entanto, também é verdade que “No mundo dos media, a presença negra assume, cada vez mais, a força de uma nova narrativa, que desconstrói estereótipos étnico-raciais demasiadas vezes reproduzidos de forma racista nos meios convencionais. Sem espaço nesse universo mediático mainstream, um número crescente de profissionais negros encontra no mundo virtual o seu lugar de fala” (Paula Cardoso – Afrolink).

ALGUNS EXEMPLOS: