INTERSECCIONALIDADE: “A interseccionalidade é uma forma de ler e de entender as realidades sociais à nossa volta”

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INTERSECCIONALIDADE: “A interseccionalidade é uma forma de ler e de entender as realidades sociais à nossa volta”

[Catarina Preda e Inês Conde]

Daniel Cardoso foi convidade na Aula Aberta, que se realizou a 1 de junho de 2021, pelos finalistas do curso Ciências da Comunicação.

Tem doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, uma bolsa de investigação no departamento de Sociologia da Manchester Metropolitan University, no Reino Unido e faz parte da Research Center of Applied Social Sciences.

Lecionou durante 10 anos, em associação com a universidade Lusófona de Humanidades e as suas principais áreas de investigação são Não Monogamias consensuais, BDSM, género e sexualidade, jovens e novos media e cibercultura. 

O #infomedia sabe que investiga mais tópicos do que aquele abordados na Aula Aberta. Gostaria de aprofundar em particular?

Eu acho que há sempre tanta coisa para adicionar. Eu acho que, uma outra questão que eventualmente precisa de ser começada a ser adicionada com uma camada extra é talvez dois tópicos:

Por um lado a questão do capacitismo e a forma como pessoas com diferentes configurações físicas ou com diferentes características neurológicas, de saúde mental etc. é mais uma camada a intersectar com as outras, por um lado e por outro relaciona-se com questões do foro da ecologia e dos direitos dos animais. 

E eu acho que o último ano e meio tem sido uma espécie de case study absolutamente aterrador, sobre como estas questões precisam de ser centradas porque claramente, qualquer coisa aqui não está a funcionar.

Para si o que é interseccionalidade porque é que o papel desta é tão importante?

Bem, não é para mim, é para a Kimberle Crenshaw.

A interseccionalidade é uma forma de ler e de entender as realidades sociais à nossa volta, por um lado e por outro ajuda a compreender como é que a nossa posição individual, as nossas experiências individuais são em boa medida – passo a redundância – mediadas por questões estruturais.

Eu acho que há aqui uma questão fundamental que acabo por não ser muito diretamente mencionada durante o evento, mas que tem tudo a ver com a questão da interseccionalidade, que é o conceito de privilégio e as pessoas geralmente fica muito reativas, o que mais uma vez é compreensível.

Há um pequeno exercício que eu costumo fazer com as minhas turmas, que é há uma lista – não sei se alguma vez viram uma espécie de exercício prático no youtube, chamado de privilege walk.

Funciona assim: há uma série de pessoas muito diferentes entre si, alinhadas lado a lado no centro de uma sala e conforme, elas terem ou não tipos de privilégio, elas têm de dar um passo à frente ou um passo atrás. No fim do exercício há umas que estão no fundo da sala e outras que estão na ponta oposta da sala. Portanto há umas que estão com muito pouco ou nenhum privilégio e outras que estão cheias de privilégio.

Eu adaptei isto, para uma versão em papel e tomei muito cuidado com uma coisa muito importante, que é tópico que estão nesta lista, não são da responsabilidade das pessoas que estão a responder à lista. Então é algo do género “eu cresci numa casa onde havia muitos livros”, a pessoa quando é criança não tem responsabilidade quanto à quantidade de livros que tem em casa; “eu cresci numa família onde se ia muitas vezes passar férias a outro pais”, mais uma vez, uma pessoa quando é criança não tem responsabilidade nem controlo nenhum de onde é que a família vai passar férias.

É uma forma de entender o privilégio, sem entrar naquele jogo da culpa e da responsabilidade, e ajuda-nos a perceber  mais uma vez, como é que as nossas experiências pessoais, do passado, de quando éramos crianças/bebés , são profundamente impactadas por esta questão da interseccionalidade e de onde é que  estamos socialmente situadas e situados. Ajuda também a compreender que o privilégio não é só ter ou não ter. Eu posso ter muito privilégio num determinado eixo e, portanto, as interações entre todas estas formas de privilégio ou de discriminação, portanto todas estas  interseções são absolutamente fundamentais para compreender o quão complexa é esta dinâmica. 

E é muito engraçado, porque eu depois, a partir deste exercício, entendo quantos pontos de privilégios as pessoas têm quando acabam de preencher a ficha e eu depois comparo os resultados no quadro, e eu assinalo também a minha pontuação. Na maior parte das vezes em que eu faço isto, eu sendo a pessoa com mais poder formal dentro da sala, geralmente tenho alunos com mais pontos de privilégio do que eu.

Portanto estas coisas mudam. Porque é que isto é importante para os média? Porque os jornalismo especificamente, existe também dentro destas interseções. Lida com pessoas que estão situadas diferentemente, dentro destes complexos processos de interseção. E como é que estas interseções não funcionam? Porque o jornalismo não consegue cumprir o seu suposto trabalho de defesa e de proteção da democracia e vai tratar de forma igual situações entre si. 

Acha que a inclusão da linguagem neutra e outros mecanismos que, em vez de criar barreiras na sociedade servem para as quebrar, são utilizados ou abordados pelos media? Ou ainda precisamos de mais trabalho para ajudar na inclusão social?

Falta muito, falta muito muito muito mais trabalho. Falta muito mais trabalho e quanto mais não seja, isso vê-se claramente na maneira como notícias sobre linguagem neutra são apresentadas no jornalismo, ou seja, nem sequer são os órgãos de comunicação social a decidirem sobre o que é que vão fazer ou não em termos de linguagem que implementam nos seus livros de estilo. Eu estou a falar de notícias que são em linguagem neutra, noutras instituições, noutros países e é muito clara a reatividade a essas questões. E quando as coisas são enquadradas, normalmente são a partir desta perspetiva alternante de “olhem o que é que os outros estão a fazer”. 

Eu lembro-me de ter participado numa entrevista em março deste ano. O título é Politicamente correto ou fascismo linguístico?  e esta notícia é sobre o facto de a  Universidade de Manchester ter criado novas guias de língua, para tornar o inglês mais neutro, com a utilização do they/them (eles/deles). No Reino Unido esta intervenção não gerou polêmica, mas em Portugal tem esta conotação de “politicamente correto ou fascismo” .

O fascismo matou centenas de milhares de pessoas e, de repente, tratamos correções de ortografia, dentro da mesma caixa conceptual, como um dos regimes mais opressores. Isto mostra que, claramente, há muito para fazer. Se já há esta reatividade sobre uma coisa que aconteceu noutro país, noutra instituição e disto as redações começaram a implementar estas coisas.

Outra conclusão tem a ver com os facto dos grupos ativistas terem de servir de tutores ou de orientadores, para ensinar aos jornalistas sobre os temas que eles próprios estão a tratar. 

E isto já me aconteceu, por exemplo, em imensas situações, onde alguém quer fazer uma peça comigo sobre investigação em não monogamias consensuais e começa a perguntar “como é que casais vivem a não monogamia consensual?” Eu fico do género – casal são dois, não monogamia são mais do que dois, talvez haja aí um problema gramatical.

Há uma falta de preparação prévia, que no fundo se traduz para uma falta de seriedade e uma falta de profissionalismo.  Um jornalista que vai fazer uma entrevista com o ministro das finanças, sabe pelo menos o significado de PIB, porque se preparou e informou. Mas o mesmo já não é feito a estas questões que ainda são consideradas secundárias. Portanto, a partir do momento em que há coisas mais importantes que outras. 

Isto não é um problema só do jornalismo, é um problema macro social, um problema cultural. Em 2007, quando comecei a fazer a minha tese de mestrado, um professor e jornalista, perguntou-me sobre o que era a minha tese – que era sobre não monogamias consensuais- e ela riu-se na minha cara. Esta hierarquização e valor faz com que ninguém que vai entrevistar o ministro das finanças não saiba o significado de PIB, mas quando vão entrevistar pessoas sobre não monogamias, falam em casais.

Claro que há o valor notícia, a agenda mediática e é impossível tratar dos mesmos assuntos ao mesmo tempo, mas não precisamos de ir ao limite de começar peças com “Politicamente correto ou fascismo linguístico?” como título da notícia, que ainda por cima é uma pergunta, que estudamos errado, depois chegamos à prática profissional e, em certos assuntos, já não há problema, porque “isto” não é a sério.

É também de salientar que as pessoas que estão em posição de tomada de decisão (os editores) são regra geral as pessoas que menos relevância dão a estas questões. São pessoas com um certo estatuto e um certo conservadorismo às vezes conceptual  que “empurram” esses temas para baixo e determinam a cima do jornalista, a forma como estas coisas são enquadradas ou cobertas. Ou então se alguém tem uma peça para escrever sobre isto, mas naquele dia tem mais 4 peças para escrever é óbvio que a pessoa não tem tempo para se preparar.

Não quero cair no erro de culpabilizar jornalistas em concreto, mas há problemas estruturais, sobre o quão sério ou não é determinado tema.

Com o exemplo que deu na aula aberta, sobre o facto de um jornal português ter escolhido um número irrealista, para descrever a quantidade de pessoas que assistiram e marcharam na Marcha de Orgulho LGBTQIA+ em Lisboa. Não será uma forma de aproximar Portugal, a potências como a América, que sim têm centenas de milhares de adeptos?

Aqui há uns anos atrás a América elegeu o Trump, portanto estas coisas não são lineares e justamente agora, que estamos no mês do orgulho preocupa-me sempre muito aquele fenômeno de pinkwashing  – de marketização e comercialização e capitalização dos movimentos sociais – que em parte é aquilo que permite aos EUA terem essas marchas gigantescas. Ela são organizadas profissionalmente, ou semiprofissionalmente por empresas, enquanto que em Lisboa, numa reunião da Marcha do Orgulho LGBTQIA+, o que vocês têm são pessoas de classe média/média baixa que saem de um dia inteiro de trabalho e ainda vão para uma reunião da comissão organizadora, durante 3 horas depois de uma semana inteira a trabalhar e que gastam do seu tempo e da sua energia pro bono para fazerem as coisas acontecer. E às vezes trabalham com orçamentos, esses sim, de umas pequenas centenas de euros para organizar um evento daquela dimensão. 

A minha abordagem a estas questões têm muito a haver com considerações em torno do privilégio, ou seja, eu tenho neste momento na minha biografia de vida eu tenho uma série de privilégios. E eu acho que esses colocam em mim a responsabilidade de tentar de alguma forma diminuir as assimetrias sociais no meu cantinho, no meu pequeno mundinho, à minha maneira, dentro do contexto do meu trabalho.

Por isso é que eu procuro tanto ao nível da investigação como da lecionação ter uma abordagem sempre muito virada para estas questões. Felizmente, sobre questões de racismo estou numa posição muito confortável porque sou uma pessoa branca a falar maioritariamente para outras pessoas brancas e portanto não me é psicologicamente ou emocionalmente difícil falar destas questões porque eu não tenho traumas históricos à volta de questões raciais. Cada vez que eu dava aquela aula sobre racismo, eu demorava meia hora a conseguir fazer com que a turma inteira concordasse com a definição de racismo. 

A parte difícil da definição era que o racismo não é uma questão de atitudes individuais, é uma questão sistêmica, histórica, macrossocial. E demorava cerca de meia hora a convencer 50 ou 60 pessoas extremamente inteligentes, extremamente engajadas de que coisas como o racismo inverso não existem. Porque temos a interseccionalidade e os lugares de fala altamente moralizados, então é difícil eu virar-me para 60 pessoas e conseguir convencê-las de que elas são racistas e ao mesmo tempo conseguir convencer essas mesmas pessoas de que elas são más pessoas, porque na cabeça delas – eu sou racista, é igual a eu ser uma má pessoa. 

Quando aprendemos a ver estas coisas, já não conseguimos não ver, mas também é muito comum esquecermo-nos que nem sempre as vimos. 

Acho que a dificuldade e o desafio, mas também uma área de interesse está justamente nesse nexo que é nós tentarmos perceber como empatizamos com quem não percebe e como nós próprios passamos por esse processo.

Mas se voltarmos a questão dos media e do jornalismo em particular, eu acho que os media tem um potencial pedagógico gigantesco mas precisam primeiro de tudo, tomar conta da posição onde nos encontramos, que interseção ocupamos porque só a partir de uma perceção clara e crítica da interseção que ocupamos é que nós conseguimos efetivamente fazer esse trabalho pedagógico, ter  uma postura crítica em relação a nossa própria posição. Eu falo de racismo enquanto uma pessoa branca, não sou suprassumo do conhecimento acerca do racismo, muito pelo contrário, eu falo a partir da minha posição como pessoa branca que sente que deve ter um engagment pró ativo com estas questões. Mas os media e a comunicação social não estão a fazer esse trabalho pedagógico e nem têm interesse em fazê-lo, e

eu diria que uma das formas do jornalismo ter uma atitude mais responsável em relação a estas questões é o próprio jornalismo pró- ativamente procurar formar e informar a classe jornalística sobre estas questões.