Trabalho infantil: Já é hora de ser adulto?
- Marco Rafael Araújo Campos
- 22/01/2021
- Atualidade Portugal
Diz a lei que só a partir dos 16 anos se pode exercer atividade profissional remunerada. Mas em muitas aldeias e vilas portuguesas as crianças crescem a trabalhar, e essa dinâmica é encarada com naturalidade.
Na freguesia de Lemenhe, no concelho de Vila Nova de Famalicão, vive Rodrigo Moreira, de 22 anos. Sentado numa das mesas do café mais conhecido da zona, acende um cigarro enquanto reflete: “Isso de só trabalhar quando se tem 18 anos é só para quem pode” e no meio de várias gargalhadas completa, “mas também não há mal nenhum de atrasar um pouco isso [trabalhar], o que é certo é que se ganha outro andamento e depois nota-se mais tarde”.
A ideia de alguém só começar a trabalhar no fim da universidade, ou só mesmo no seu início, aflige Rodrigo de uma maneira que nem o mesmo sabe explicar. Enquanto olha para o chão, diz que o assunto lhe faz lembrar os dias no início da adolescência que passava com os avós: “lembro bem, era ainda um puto, já madrugava quando ia para o campo semear e colher o que houvesse” e quando tinha oportunidade “se me chamassem para outros campos, ia! Juntava uns trocos e ia contente gastar nos tascos onde o pessoal se juntava”.
Hoje, Rodrigo estuda Gestão na Universidade Lusíada de Famalicão, intituição que: “tinha o curso que sempre quis e é a que tenho mais perto de casa, o que dá imenso jeito”. Já noutro cigarro, começa a contar histórias dos tempos académicos antes da pandemia e bate na mesa várias vezes com vontade. Ao mesmo tempo, o jovem explica a sorte que teve em passar às cadeiras [unidades curriculares] mais difíceis.
Num tom mais relaxado, desabafa o que mais lhe dificulta a vida: “tenho o meu trabalho na fábrica de costura. Só lá faço uns turnos, mas conjugar tudo? Meu Deus…”, e acaba o raciocínio concluindo que “trabalhar enquanto se estuda, principalmente na faculdade, obriga a ter muita cabecinha”. O facto de ter começado a trabalhar desde cedo “ajuda muito”. Caso contrário, “o choque de fazer as duas coisas seria muito mais forte”.
Já na saída do café, o jovem admite que em vários momentos se sentiu injustiçado e forçado a trabalhar muito mais cedo que os colegas: “Tantas vezes quis ficar em casa, ir à casa do meu vizinho para jogar playstation durante um dia inteiro”, mas num ápice de azar “os meus pais apanhavam-me sem fazer nada, lá estava eu, nem que fosse no telhado de casa a mudar umas telhas”.
Na opinião do entrevistado, grande parte dos pais, nesta zona, acham normal e positivo colocarem os filhos a fazerem desde muito cedo ofícios de adultos, remunerados ou não: “Já fiz um pouco de todos os biscates que possas imaginar, já os faço desde criança. E se fores perguntar o que sabem fazer aqueles que só vivem dentro dos apartamentos, nem um furo na parede sabem”.
Marcas de infância
Alexandra Gonçalves acaba de chegar do trabalho, na freguesia de Chavão, concelho de Barcelos. A jovem de 19 anos, bem-humorada e irrequieta, partilha da mesma opinião do amigo chegado Francisco: “não temos escolha” e enquanto cruza os braços, encostando-se ao muro de casa, expõe “acho que não tem mal nenhum trabalhar quando se é pequeno, muitas vezes acartei sacos de cimento. Não morri por causa disso”.
Aqui, à frente de casa, Alexandra brinca com as chaves do carro. Olha para os campos de milho seco pelo frio do inverno, e comenta: “acredito que noutros sítios isto até seja estranho, mas aqui tem de se começar a trabalhar quando somos muito novos”. À medida que responde, começa a ganhar uma maior noção sobre a dessemelhança entre a sua e outras infâncias. A ideia trivial de andar descalça por entre florestas e quintais de casa dos vizinhos, parece agora enfadonha.
“Tanto podias encontrar os teus amigos a jogar à bola como a trabalhar nas fábricas dos pais! A serrar pedras de 20 toneladas sem qualquer tipo de formação!”
Alexandra Gonçalves
Quando era mais nova, percorria freguesias inteiras de bicicleta junto de Rodrigo e muitos outros amigos. A liberdade que sempre tiveram na rua, contrapesava com outras responsabilidades impostas pelos pais. Juntos, sentavam-se nesta mesma estrada, sujos e felizes. Agora, o dia escurece e a jovem explica o percurso de vida que escolheu, diferente do amigo: “preferi estudar num curso profissional no ensino secundário porque desde pequena fui habituada a coisas mais práticas”. Diz que as teorias de universidade não são para ela: “sempre aprendi muito mais na rua, principalmente com as pessoas mais velhas”.
Atualmente, Alexandra trabalha numa fábrica de indústria metalomecânica – o emprego que tem mantido desde a sua conclusão escolar. No futuro quer educar os filhos da mesma forma: “os meus filhos vão saber o valor do trabalho” e afirma ainda: “a minha infância foi muito boa. Sempre trabalhei no campo e nunca me fez mal. Sou o que sou hoje, devido a isso”.
O som dos tratores e máquinas fabris aumenta no fundo da rua. Aqui vive Francisco Oliveira, o primo mais velho de Alexandra. Enquanto limpa os óculos à camisola, o jovem tenta descontrair os ombros cansados do longo dia de trabalho na quinta: “eu com 12 anos já sabia conduzir os tratores do meu pai”.
Diz ainda: “encontras rapazes por volta dos 14 anos, a conduzir tratores com carga nestas estradas. É muito perigoso”. Ainda relembra alguns amigos de 16 anos que “fazem umas horas nos restaurantes, sem qualquer fiscalização”.
O que se vê mas não se fala
Desde sempre que Francisco vive e trabalha na quinta do pai. São 23 anos de vida ligados intimamente à terra e ao seu cultivo. O desgaste das botas, o pó nas mãos, o suor.
“Não existiu nenhum acidente fatal, mas conheço casos de jovens que estiveram perto disso. Os acidentes acontecem e ninguém faz nada.
Francisco Oliveira
Enquanto relembra as histórias que lhe mais ferem, diz: “No caso do Rui, foi uma sorte. Estava a serrar lenha com o pai, por milagre não perdeu todos os dedos das mãos”. Um caso que segundo Francisco, foi completamente ignorado. É um de muitos exemplos de acidentes que acontecem, seja com jovens ou com crianças.
O sossego da terra é ofuscado pela insegurança destas histórias. Aqui, o problema está escondido na mentalidade. Como o jovem agricultor afirma: “são ideias que se passam de pai para filho. Tem de ser a nossa geração a agir, não vão ser os nossos pais” e conclui: “agradeço pela educação que tive, mas não vou fazer igual. As crianças não devem ser sujeitas a certos perigos”. Devem, defende, assistir a todos os ofícios (não os praticando). Enquanto se despede, deixa o recado: “O acompanhamento de um adulto é fundamental, e este deve ter a sensibilidade e noção do que está a ensinar. Roubar a infância é roubar um pedaço de nós”.