José Armando: “Ainda bem que existe quem abra a porta dos Malmequeres todos os dias”

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José Armando: “Ainda bem que existe quem abra a porta dos Malmequeres todos os dias”

O encerramento da Fábrica Gaiopas só veio acentuar a agonia em que vivia a zona de Campanhã. No velho armazém onde se vendiam cereais, floresceu o MIRA FÓRUM . Os ratos e as baratas deram lugar à arte e à história. Na Rua de Miraflor, as memórias de José Armando voaram do permanente tumulto nos Malmequeres à resiliência na Cruzada. Agora, na Capelinha, prossegue a viagem de uma vida dedicada aos outros.

[Reportagem de Inês Lopes Costa, Rita Almeida e Tiago Oliveira]

Localização

Na estação de Porto-Campanhã, junto ao parque de estacionamento, uma rotunda  liga três ruas: Rua da Estação, Rua de Pinto Bessa e Rua de Justino Teixeira. Une-as o pequeno círculo ajardinado, mas também o ruído urbano, dos trabalhadores, dos viajantes, dos carros, pontualmente pautados pela chegada das carruagens, prontas a aumentar a confusão. À porta da estação, as pessoas acumulam-se para seguirem o seu caminho. Espalham-se em táxis, autocarros, na rua. Entre os pingos da confusão entra-se na estação ferroviária e atravessa-se para o outro lado. Vira-se à esquerda, numa rua retalhada pelas obras. Segue-se em frente e na esquina, do lado direito, encontra-se o Centro Juvenil de Campanhã – Seminário dos Meninos Desamparados. Com 200 anos de vida, já albergou quase  5300 “meninos pobres, sem família e que ali iam parar para a sua formação de vida”, dentro das quais José Armando, de 72 anos, morador de Campanhã.

José Armando | Fotografia tirada no Espaço Mira Fórum
Apresentação de José Armando
Centro Juvenil de Campanhã- Seminário dos Meninos Desamparados 
 
O Centro Juvenil de Campanhã nasce, fruto da tragédia da Ponte das Barcas, na cidade do Porto, onde milhares de pessoas sucumbiram

às águas do rio Douro. Para acolher as crianças que ficaram órfãs me koi fundado, pelo Padre José de Oliveira, o Seminário dos Meninos Desamparados. Foi-se instalando em vários locais até chegar ao espaço atual: Casa e Quinta do Pinheiro de Campanhã, doado por Luís António Gonçalves. “A partir de 24 de novembro de 1967, a instituição passou a denominar-se Internato Juvenil de Campanhã. Em 15 de junho de 1982 em homenagem ao seu Fundador, passou a denominar-se Internato Juvenil Padre José de Oliveira. Em 20 de novembro de 1986, por escritura pública, esta instituição passou a denominar-se Centro Juvenil de Campanhã. Desde 1998, a Assembleia Geral aprovou novos Estatutos e uma nova denominação: Centro Juvenil de Campanhã – Seminário dos Meninos Desamparados. Atualmente, o centro propõe-se a criar uma Estrutura Residencial para pessoas idosas. 
Retirado de http://centrojuvenilcampanha.com/

Percurso entre Campanhã e o Centro Juvenil de Campanhã atualmente

“Assim, recordações de infância, de coração, é para esquecer, porque não foi fácil. Era um dia de cada vez.”

José Armando, 72 anos

José Armando recorda a infância dura e de miséria. A “fome” arrasta-se no meio dos “percevejos, do rato e da barata”, lembra. O facto de a mãe e o padrasto ganharem pouco (“e o pouco que ganhava, não sabia gerir”) foram as razões que o levaram, ainda em tenra idade, a ser internato. Apesar de lá viver, a sua casa era a “10 metros” dali, em Pinheiro de Campanhã.

Entre as paredes cuidadosamente recuperadas do MIRA FÓRUM, o olhar de José Armando acompanha os tempos em que viveu no Centro Juvenil: “ainda hoje lhes agradeço aquilo que eu sou”, pois conseguiu ter acesso à “formação académica” e a fazer a “quarta classe”. 

Em 1963, com 11 anos de idade, sabia que “familiarmente, a coisa estava tremida”. Em conjunto com a “irmã já falecida, mais velha, também institucionalizada numa instituição, no largo primeiro de dezembro”, decidem ir “os dois embora [das instituições] para fazer face à vida e ajudar os que estavam em casa”, conta o morador de Miraflor. É então, com essa idade, que começa a trabalhar como “lavrador, tasqueiro, merceeiro e ourives” em Ermentão, Gondomar, explica. 

“De pequenino andava-se aos recados às senhoras e elas davam um tostãozinho e aquilo era tudo amealhado, porque a minha mãe controlava.”

“Eu e a minha falecida irmã fomos fazer um favor a um senhor e então, a minha falecida mãe, quando vinha do trabalho, viesse a que horas viesse, ia bater à porta: “Olhe os meus filhos levaram o quê? Ah, levaram pombas”. Houve uma ocasião em que levamos rebuçados e levamos uma sova de caixão à cova.”
José Armando

Ao fim de dois anos, já com 13,  foi morar para  “Novais da Cunha, que é ali em Nova Sintra.” Foi perto do atual MIRA FÓRUM — antes, armazéns de cereais — que, “no cafezinho ao fundo que faz esquina”, começou a viver e frequentar “ mais o ambiente de Campanhã”. 

As memórias não se resumem apenas a estuque, tijolos e padieiras, mas também a caras e a corações. José Armando recorda os tempos em que era novo, onde “só havia televisão nas casas ricas, cafés. A Casa Aleixo, já aqui em baixo na rua do Freixo”, que pertencia a um “senhor chamado Ramiro, muito sociável e amigo para a canalha e nós éramos da geração do filho dele e ele deixava-nos ir para lá, ver televisão.” Criou-se um grupo de amigos de infância, que ainda hoje existe e que todos os anos se reúne.

O luxo do cinema também desencadeia memórias que o fazem regressar ao passado, a “esses tempos que nos fazem viver”. Recorda-se de “ir lavar o carro do patrão por 7 escudos e 50 centavos para dar por um pirolito, uma sande e um bilhete”.

Entre convívio e amigos, existia a responsabilidade de ajudar a família. A necessidade de trabalhar levou-o ao mundo das artes gráficas. “ Uma tipografia ou litografia e depois tem uma série de variedades de formações dentro do próprio emprego.” José Armando foi cortador de guilhotina e “fazia de tudo, desde cortar papéis para dar trabalho às máquinas, até ao acabamento. Por exemplo, cartões de visita, faturas, recibos, tudo o que fosse tipografia”. “Gostava muito da arte”, admite.

“E a verdade é que para se estar num sítio tem de se gostar, ter amor e paixão”.

José Armando

Na década de 70 do século XX, a sua vida, tanto pessoal como profissional, acaba por sofrer grandes mudanças. A 21  de junho de 1970 casa-se e vai viver para Espinhaço, Avintes. “Tinha lá uma tia e ela arranjou-me para lá um barraco”, explica. 

Em 1971, nasce a primeira filha, que tem, hoje 51 anos. Quando ela tinha 18 meses, José Augusto, na altura com 21 anos, é empurrado para a denominada Guerra do Ultramar. Chegou a 3 de dezembro de 1972 a Monte Pulhas, em Moçambique. Ficou até 21 de outubro de 1974.

Ida de José Armando para Monte Pulhas, Moçambique

22 meses foi tempo de “uma experiência de chorar muito”, onde desesperavam, na cabeça, as dúvidas sobre “o que estava ali a fazer se aquilo não era meu”. Com a esposa e a filha, na altura em Portugal Continental, havia a necessidade de se comunicarem. A única forma de o fazerem era através de “aerogramas, uma folha de papel verde”, que eram transportadas gratuitamente com o apoio do estado português. José Armando lembra que a sua esposa “escrevia 20 e tal aerogramas por dia, todos os dias. Havia sempre o que dizer e o que escrever e tudo numerado, que eu sabia o que a casa gasta”, a lembrar os tempos da censura.

Guerra Colonial
Durante muitos anos, Portugal era constituído pelo território continental, arquipélago dos Açores e da Madeira, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique. Após 1945, com o término da Segunda Guerra Mundial, muitas potências mundiais começaram a descolonizar os seus territórios. Com uma forte pressão a nível internacional, Portugal começou a ter dificuldades na governação, adotando novas políticas que não surtiram efeito. Em 1961 inicia-se em Angola a Guerra Colonial, prolongando-se até à Guiné em 1963 e em 1954 a Moçambique. 
A Guerra Colonial prolongou-se até ao 25 de Abril, em 1974, altura em que se começou a preparar a descolonização e se iniciou os processos de paz para os partidos independentes a disputarem a governação. 

Regressado a Portugal, no pós-25 de Abril de 1974, retoma o seu emprego nas Artes Gráficas. Esteve lá empregado 45 anos, onde adquiriu “muita sabedoria” e teve a oportunidade de trabalhar com vários artistas da Escola de Belas Artes. Por exemplo: “Júlio Resende, poeta Eugénio de Andrade, muita gente.”

Agora já tenho 72 anos, a maturidade também já é outra, porque quem quer evolui todos os dias. Então, isto para mim é uma questão de estar concentrado e ser aquilo que tem que ser, porque eu não tenho dúvidas, muito sinceramente, que nós temos de nos adaptar à realidade.”

José Armando

Quando regressou, em 1974, foi confrontado com a sogra muito debilitada e acaba por vir morar para Noêda e “aqui fiquei”, até aos dias de hoje. Vive há 52 anos no local onde espera continuar “porque já não estou com idade para andar com as tralhas às costas”, mas principalmente porque “ gosto de viver neste ambiente aqui de Campanhã”.

Em 1979 nasce o seu segundo e último filho, atualmente com 43 anos.

José Armando e a zona de Campanhã

Os Malmequeres de Noêda

“Ainda bem que existe quem abra aquela porta todos os dias!”

José Armando

Inspirada num homem de alcunha “o Vagarinho” — que o tempo fez esquecer o nome e a idade —  a Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda começou quando formou o Grupo dos Rapazes e Raparigas. Inicialmente era “na Eira do Moutinho, aqui em Noêda, num largo” que se davam os ensaios do rancho Folclórico. “Mais tarde, com o amor pelo nome”, passaram para um espaço na Rua do Freixo “e ali formou Os Malmequeres de Noêda”.  Com o passar do tempo, o progresso era notório e o número 17 da Travessa de Miraflor, em Campanhã passou a ser ocupado por esta associação, até aos dias de hoje.

“Fui um benfeitor do progresso daquela casa.”

José Armando

Vivia-se o ano de 1984 quando José Armando foi convidado para pertencer à direção de Os Malmequeres de Noêda, como vogal. Uma casa que não lhe era estranha, já que foi “de lá que a minha mulher veio para a minha companhia”, mas o convite, esse sim, foi estranho. “Não tinha experiência nenhuma de associativismo cultural”, mas integrou-se. Teve ao seu lado “boas pessoas, diretores”, todos eles dialogantes e todos eles à procura de fazer mais e melhor.

A cadeira onde José Armando está sentado, no MIRA FÓRUM, sente o corpo enrijecer. Antes de pertencer aos Malmequeres de Noêda, José Armando “odiava aquela sede”. Relembra que “era tudo retirado de lá a tiro”, então, em todo o seu percurso na Associação, tinha como missão retirar “o mau nome que aquilo tinha” por causa dos bailes. Apesar disso, afirma que com o tempo “raciocinei e eu estava errado, mas depois também fui um benfeitor do progresso daquela casa.

A viagem ao passado estaciona no ano de 1986. Ano do festival de Folclore. No largo da Estação de Campanhã, “ao lado de onde estão os táxis”, José Armando deu nas vistas com o trabalho que desenvolveu e “alguém começou a ver-me de outra forma”. Aí candidata-se a vice-presidente, cargo que desempenha “até finais de 1987”, ano em que volta a realizar o festival de Folclore que tanto gostava. 

“Uma instituição vai até onde os diretores quiserem.”

José Armando

Para José Armando, “a missão de qualquer diretor é zelar por aquilo em que estamos inseridos”, então, enquanto vice-diretor de Os Malmequeres de Noêda, tentou alterar hábitos e costumes. Veio-lhe à memória uma ocasião em que lhe contaram que alguém abria os Malmequeres, de madrugada, para jogar. José Armando começou a fazer “um controlo ao tabaco, às bebidas”. Com a informação que tinha recebido, decidiu-se a ir ver com os seus próprios olhos. Era verdade. Indignou-se.

“-Seu filhos…Todos já lá para fora. Chamo já a polícia. Tudo já lá fora.”

A intransigência para com alguns membros gerou inimizades, mas para ele, era a forma que tinha de fazer algo por aquela casa, porque “os Malmequeres da Noêda não é para estarem lá de madrugada e a investir o deles. Faz falta em casa para o pão, para os filhos.”

Mais tarde acabou por separar “o trigo do joio”. Na sua perspetiva, água e azeite não se misturam. Jogo e cultura também não.

José Armando na Associação | Fotografia cedida por MIRA FÓRUM

 Dirigiu-se ao presidente da Assembleia Geral, pediu um orçamento e procedeu às obras na sede. Em menos de nada, o andar de cima estava destinado a jogo “e a cultura ficou cá em baixo”.

Além de jogo, folclore e teatro, muito se fez, incluindo intercâmbios institucionais: “eu ia à sua instituição, você vinha à minha e assim sucessivamente.”

Conta uma ocasião em que foi “à praça da Corujeira assistir a um festival de um atleta do Bonjóia” e que ficou surpreendido quando pede uma bebida e lhe dão um papel. Ficou espantado com o sistema: pagar, receber a senha e levantar o pedido. Pensou “olha que grande ideia.” Mais tarde decidiu implementar o sistema nos Malmequeres. Fez os papéis, arranjou o carimbo e estava tudo discriminado “uma sande, uma bebida, um maço de tabaco”. No dia seguinte a ter inserido os papéis percebe que faltava uma sandes mista. “Quem foi, quem não foi? Não foi ninguém. E depois passado uns dias eu vim a descobrir que o bacano lá deu ao dente, foi ele que comeu  a sandes e que não a pagou”. Afirma que eram atitudes que não gostava. “Não é do meu agrado, nem do meu timbre.”

A sede de Os Malmequeres estava sob ordem, mas nem tudo estava como José Armando gostava. Ali todas as caras eram conhecidas. “A comunidade envolvente era sempre os mesmos. Sempre a família dos dançarinos, a família dos atores de teatro.”  E até aí tudo bem. Mas para José, aqueles que “só se lembravam de Os Malmequeres da Noêda no dia em que houvesse bailarico” não eram tão bem vindos: “Proibi muita gente de entrar lá”, exclamou.

Com todas as dificuldades para moldar aquele espaço ao seu gosto, a rotina que conjugava a vida profissional com a dedicação aos Malmequeres alimentava o sonho de conseguir mudar alguma coisa. Levantava-se às seis da manhã para ir trabalhar, mas já era parte da rotina parar nos Malmequeres para ligar a máquina do café, “para servir cafés à uma hora da tarde. Estava a máquina quentinha. Estava a máquina operacional.” Eram esforços como este que permitiam ver naquele espaço “os convívios das pessoas, os casais a conversarem-se”.

Para José Armando, selar um compromisso com uma associação significava entregar-lhe todo o tempo que tivesse, em seu benefício. Muitos havia que apareciam ocasionalmente. Não podia ser! “uma instituição era a nossa segunda casa” e devia ser tratada como tal.

Entretanto, no MIRA FÓRUM, o coração palpita e lembra que também havia momentos bonitos para recordar. Fala em recordações felizes, como os fins de semana com os cunhados, em que “íamos os quatro por aí abaixo com os filhos e lá íamos tomar um cafézinho”. Os Malmequeres eram o destino final, o ponto de encontro e a casa fora de casa.

“Não sou otimista nem pessimista.”

José Armando

Hoje não é presença assídua nos Malmequeres, mas vai-se mantendo a par das dificuldades que a Associação atravessa. Define o futuro como “complicado”, mas admira os jovens que lá andam: “Um catraio que eu praticamente vi nascer e hoje deu uma vida aos miúdos aqui da zona.”

A realidade do presente é mais dura do que o saudosismo do passado. Para ele, a cultura daquele espaço nunca mais será a mesma. “Hoje da canalha quem é que quer folclore? Hoje da canalha quem é que quer teatro? Hoje em dia, contamos com os MK dance que não trazem folclore, mas brindam aquela casa com hip hop.”

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades  e daqui para a frente, só o futuro dirá.

A relação de José Armando com a Associação Recreativa Malmequeres de Noêda

Cruzadas de bem-fazer de Campanhã

O olhar de José Armando voltou a desviar-se da mesa onde se debruçava, no MIRA, e correu atrás das memórias da Campanhã. Na Rua de Justino Teixeira, que liga a estação dos caminhos de ferro com a “Feira da Ladra”, encontrava-se “A Áurea” — mais um dos inúmeros e típicos tascos que polvilhavam de ópio a velha zona dos armazéns, das fábricas, das ilhas e dos humildes operários. Lá, recorda os primeiros passos da Cruzada de bem-fazer de Campanhã. Não assistiu. Contou-lhe o tio que lhe abriu o apetite à missão de mitigar a pobreza de uma zona onde se passava fome e algum frio. 

“Eu dou se tu deres… Mas só dou se formarmos já aqui uma associação”

Um dos fundadores da Cruzada de bem-fazer. Testemunho contado por José Armando

Corria o ano de 1987. José Armando era vice-presidente de Os Malmequeres de Noêda quando um tio começou a desafiá-lo para a Cruzada. Mas este adia por não gostar de acumular cargos associativos. A sua fundação não podia ter sido mais espontânea. Havia uma cruzada de bem-fazer em Santo Ildefonso que se aventurou em Campanhã para as suas habituais campanhas de angariação de fundos. Entraram no Tasco d’A Áurea para tentar a sua sorte. Lá dentro, dois dos homens abordados comentaram entre si: “Eu dou se tu deres. Mas só dou se formarmos já aqui uma associação”. E José Armando entusiasma-se ao lembrar que “um deu, outro deu e ali durante a tarde, no tasco, formaram uma direção”. 

Em Portugal, os anos 80 do século XX viram renascer a febre das cruzadas de bem-fazer – pequenos batalhões de “boa gente” que se organizavam para vestir os pequenos, alimentar famílias e cuidar dos mais velhos, onde se destacaram as Cruzadas de bem-fazer da Paz e a Cruzada do Bem, proveniente da Associação de Cruzadas de bem-fazer, fundada em 1945. Nessa altura, “entre cidade do Porto, cidade de Gondomar e Vila Nova de Gaia, tivemos setenta e tais instituições Cruzadas. Cruzadas de bem-fazer”, recorda.

Em 1987, o vice-presidente de Os Malmequeres de Noêda, que se tinha destacado pela organização dos Festivais de Folclore em Campanhã, terminou o seu mandato e acabou por abraçar o desafio na Cruzada de bem-fazer. O tio tinha continuado a insistir e José Armando gracejou, “tem de ser, senão ele não me vai largar”. 

Na Cruzada de bem-fazer de Campanhã, o único elemento de estabilidade era o apoio a quem mais precisava, porque a associação fundada num ‘tasco’, nas vésperas de Natal andava permanentemente com a ‘casa às costas’ e era constantemente surpreendida com crises diretivas. “Mais tarde a áurea fechou, depois foi para casa de um diretor. Depois da casa desse irmão do meu tio, andou assim um bocado à deriva, mas vestia-se sempre crianças”. 

A freguesia de Campanhã abrigava, nessa década, quase 50 mil pessoas e os primeiros passos da humilde Cruzada tinham um impacto social considerável. Com todas as dificuldades, “vestia-se sempre uma média de cento e pico crianças e dava-se bodo a 30-40 idosos”. 

Dez anos depois, as fábricas começaram a deixar os armazéns devolutos e as pessoas suplicavam pelo ‘ganha-pão’. Umas saíram — Campanhã perdeu quase 20 mil habitante — e ficaram os mais velhos e uma parte considerável dos habitantes em idade ativa, desempregada. A junta de freguesia tentou responder à crise social que se agravou e estabeleceu uma parceria com os membros da Cruzada. A associação instalou-se num armazém abandonado e começou “a fazer sopa para os necessitados”. 150 pessoas, nas palavras de José Armando. 

De sede em sede, e presidentes subitamente falecidos e outros subitamente desaparecidos, a Cruzada de bem-fazer de Campanhã foi perdendo força até ao momento em que José Armando se viu isolado. Era o único vivo, da primeira direção.

“Era a dificuldade de arranjar quem dirigisse a presidência”

“Vem o falecimento do primeiro presidente que morava aqui em frente, que era o Armando, o alfaiate. Depois tomou conta outro senhor que morava ali em baixo, o senhor Paulo. Esse homem desapareceu do mapa, não se sabe como e teve de se fazer uma direção e essa direção foi um senhor ali de Justino Teixeira com toda a sua boa vontade que formou a direção e continuamos a ser a cruzada de bem fazer de Campanhã. Esse depois também faleceu assim de repente, também fumava muito, mas foi muito de repente e depois era a dificuldade de arranjar quem dirigisse a presidência.”
José Armando sobre a instabilidade diretiva da Cruzada de Bem-fazer de Campanhã

O último membro da primeira direção da Cruzada não se deu por vencido. Havia um grupo de jovens a ajudar, mas não tinham vocação diretiva. Então, José Armando recorreu novamente à junta de freguesia de Campanhã. Em diálogo com o presidente do poder local, desabafou: “estamos nesta situação e gostava de resolver isto para que aquilo não feche”. Com o apoio da junta, “o senhor Amaral, o presidente, resolveu falar com uns magnatas e formou-se novamente a presidência da cruzada de bem fazer de Campanhã”. 

A formação da nova direção trouxe consigo a profissionalização da Cruzada de bem-fazer. “A partir daí começa a avançar e estávamos bem”, a ponto de se celebrar um protocolo com o Banco Alimentar. Os membros recorriam aos seus armazéns para recolher sacos de bens alimentares que começaram a distribuir por um número cada vez maior de famílias carenciadas. Os rostos deram lugar aos números. “Tínhamos ali os sacos porque aquilo era por número de família. Família um, família dois, família três, e assim sucessivamente”. “Grandes naus…”, proverbiava José Armando, para antecipar o fim, com “grandes tormentas”. 

“Serviu muita gente. Ainda hoje, se calhar servia, porque as pessoas atualmente têm necessidades maiores, mas pronto. É assim. A vida é assim.”

José Armando

A Cruzada de bem-fazer de Campanhã cresceu e precisou de mais voluntários. Desentendimentos pessoais levaram aquele que serviu os mais pobres de Campanhã durante décadas a abandonar a missão de uma vida. A Cruzada ruiu. Restam as memórias e o lamento. “Serviu muita gente. Ainda hoje, se calhar servia, porque as pessoas atualmente têm necessidades maiores, mas pronto. É assim. A vida é assim.”

A história de José Armando nas Cruzadas de Bem-Fazer de Campanhã

Capela Senhora da Saúde, Bonfim

O olhar de José Armando cansa-se de fitar boas memórias que viraram tormentas e regressa ao presente. Esteve sempre na Rua de Miraflor, mas deu a volta à Campanhã. É uma vida entregue aos outros. 

Dedicar uma vida a zelar pela comunidade é uma escolha empurrada pela vontade, mas José Armando nem foi por aí. “Ser diretor de uma instituição, e essencialmente presidente, é preciso duas coisas: Para já, ter um bom fundo maneio — dele próprio, para, às vezes, investir. E segundo, ser-se pessoas reformadas que possam estar ali o tempo inteiro”. 

José Armando é reformado e diz que os 72 anos de vida pesam. O olhar mantém-se no presente. Quando deixou a Cruzada de bem-fazer tornou-se Confrade da Capela Senhora da Saúde — o número um da Rua do Heroísmo. Mas, pagar uma quota anual para ajudar a manter a fachada azulejada, os santos e o branco quase fluorescente das paredes, não chegava. 

“Oxalá que aquela senhora dure uma vida eterna”. 

José Armando

Integrou a direção da Confraria porque tem tempo e gosta de ajudar, mas também porque faltava quem ajudasse. Queria que a capela continuasse de pé e acredita que “uma instituição vai até onde os diretores quiserem”. Dos cinco, apenas ele e outro dirigem verdadeiramente a coletividade, mas ressalva: “Eu também compreendo, eles também trabalham. Não têm vida, não é?”

As palavras soam com orgulho quando fala do edifício onde passa, agora, os seus dias. Há um ano, gastaram uns milhares de euros numa renovação completa da Capela. Garante que, quem decidir visitar, ficará encantado com “a forma como aquilo está embelezado”. 

José Armando tem 72 anos e a zeladora, 81. Fitando, agora, o futuro, o olhar fixa-se. “Oxalá que aquela senhora dure uma vida eterna”.

José Armando e Capela Senhora da Saúde

MIRA FÓRUM

“Abençoado espaço o dos Miras que trouxeram uma evolução muito grande a isto” 

José Armando

Campanhã, zona de classe trabalhadora. Por muitos considerada uma das áreas mais deprimidas da cidade do Porto. As transformações que a zona tem sido alvo nos últimos anos trouxe à Rua de Miraflor a presença assídua da arte. Mas nem sempre foi assim.

Há 54 anos, quando José Armando se mudou para estas ruas, entre armazéns e escritórios, este espaço estava ocupado pela empresa Gaiopas. “Isto era um armazém de cereais. Aqui em cima eram escritórios”.

Entrada Espaço Mira Fórum

Apesar disso, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. José relembra que quando a Gaiopas deixou Miraflor, o espaço ficou ao abandono. “Isto aqui era só buracos. Era cada ratazana que parecia coelhos porque isto aqui havia de comer.” 

E assim foi ficando. Até que a 24 de abril de 2013, chega a mudança. Manuela Matos Monteiro e João Lafuente trouxeram arte ao número 159, quando abriram uma galeria ligada à fotografia. Agora, nos escritórios de cima, “estão lá três habitações” e no piso de baixo, os armazéns deram lugar à presença assídua de exposições de arte. 

Para José Armando, “os miras” trouxeram evolução à zona. “Isto veio dar uma vida aqui à zona. Abençoados miras”. 

José Armando e a chegada dos “Mira” a Campanhã
Rita Almeida

Rita Almeida, 21 anos, natural de Vale de Cambra. O gosto por comunicar e querer sempre saber mais surgiu muito cedo, definindo CC como carreira a seguir. Atualmente no terceiro ano do curso, na Universidade Lusófona do Porto, sou, também, colaboradora na editoria “Geração Z” na plataforma #infomedia.