José Neves: “Não trocava a vida que tenho aqui [Campanhã] por nada”
- Rui Ribeiro
- 21/06/2022
- Arte e Culturas Internacional Multimédia Portugal Viagens
Durante 12 anos, José Neves navegou em diversos mares, onde pescava, nomeadamente bacalhau, na Gronelândia. Trabalhava 20 horas por dia, com seis meses dia e os outros seis meses noite. Hoje, dedica o seu tempo a construir barcos em miniatura na Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda.
[Reportagem de Diogo Costa e Rui Ribeiro]
A porta da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda, na Travessa de Miraflor, em Campanhã, no Porto, abre-se e por ela entra José Neves. Sobe as escadas que rangem até ao primeiro andar, onde uma nova porta, caiada de branco, esconde o canto de Bú, tal como é conhecido pelos amigos mais próximos. Trancada, a oficina guarda os trabalhos que relembram o mar e as memórias do gosto pelo Futebol Clube do Porto e a devoção pela religião católica, com posters que vão cobrindo as paredes velhas e desgastadas. Apresentou o chamado “refúgio”, no qual passa o tempo a “fazer barquinhos”, de forma a expressar o sentimento pelos sete mares onde passou imenso tempo de vida e relembra toda a sua experiência como navegante.
A vida pesqueira e a oficina
Após cada olhar pormenorizado pela oficina, já um pouco envolta pelo pó, Zé Pescador foi recordando os tempos como pescador e navegante. Começa, logo após o último exame escolar em Lisboa. Foi para a fragata de D. Fernando II, como aluno. Após a primeira experiência no mar, foi trabalhar para uma oficina, como ajudante de serralheiro.
Com um misto de alegria e desilusão, conta que a vida profissional de pescador começa com uma tentativa falhada de entrar na Marinha, que era o objetivo desde pequeno. Mais precisamente em Lisboa, José relembrou algumas das maiores aventuras, enquanto mirava com saudade as recordações transmitidas pela oficina, onde começa pela pesca do bacalhau entre a capital portuguesa e Gronelândia.
Salientou que era uma profissão muito dura e que, apesar de ter adorado, trabalhava cerca de 20 horas por dia, “o que era impensável”. Foi com risos que falou deste assunto, sentia-se algum brilho de saudade no olhar ao relembrar a experiência na Gronelândia, que era para onde ia no fim do mês. “Na Gronelândia é seis meses dia e seis meses noite, e trabalha-se sempre seguido”.
Na Gronelândia, de abril a setembro os dias são envoltos 24 horas sob a luz do dia e no resto dos meses acontece o contrário. Isto deve-se à inclinação do planeta em relação ao plano da órbita ao redor do Sol. O movimento que o Sol faz no céu é circular, sempre próximo ao horizonte sobre os polos durante um semestre do ano. A estrela muda apenas de posição. |
A viagem pelo passado marítimo de Bú continuou com algumas das histórias que aconteceram dentro do mar, tais como as centenas de pescadores existentes em cada barco, com as diversas tempestades e nevoeiro. Relembra que alguns dos seus colegas se perdiam no alto-mar e que acabavam por voltar, mais comum no mês de setembro. Os sustos também foram muitos, entre eles os vários ciclones a que foi submetido, e nessas alturas refere que era “impossível pescar e que tinha de procurar abrigo”, falando ainda nas tropas portuguesas e francesas que estavam juntos dele.
“Os ventos que sopravam a mais de 200km/h assustavam todos os pescadores que estavam dentro dos barcos”, comparando o ambiente com a “guerra, em que quem vai tem de fazer pela vida para não ser morto”, reforçando com a “luta pela sobrevivência para voltar para casa, junto da família”.
Foram doze anos que andou na pesca do bacalhau. Após esta experiência, seguiu-se a pesca da sardinha, em Matosinhos e a pesca do arrasto, que ia de Portugal até Espanha, durante todas as semanas.
Além destas aventuras no mar, outras paixões incorporam o “refúgio” do Zé Pescador. Com posters do Futebol Clube do Porto, da Seleção portuguesa e da Nossa Senhora de Fátima e muitos terços, um olhar na oficina deu o realce à simplicidade e carinho de Bú por aquilo que estima.
As memórias da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda
Depois de um “mergulho” nas memórias presentes no “refúgio” de Zé Pescador, a viagem pelas recordações tomaram outro ponto na bússola. Lembrou, com carinho, as imensas memórias que guarda da Associação Recreativa Os Malmequeres de Noêda e o que representa para ele, nos dias de hoje. Começa aos 20 anos, aquando da mudança de Lisboa para o Porto, onde fixou a residência na zona de Campanhã. Foi nessa altura que revelou que o principal motivo da vinda para a cidade invicta foi a família, onde acabou por conhecer a prima e referiu, entre gargalhadas, “gostei imenso dela, decidimos casar e casámos”.
Após o casamento, José Neves ficou sempre pela cidade do Porto, onde já mora há 61 anos na mesma casa, na rua Miraflor, na freguesia de Campanhã. Com uma comparação entre Lisboa e Porto, Bú acrescentou que as pessoas nortenhas são mais “carinhosas”, “são mais amigas umas das outras”, ao contrário da população de Lisboa, que são mais “fechados”. A afirmação, que seguiu como conclusão desta opinião, é uma das razões que o leva a ser uma das pessoas mais acarinhadas da associação: “não trocava a vida que tenho aqui [Campanhã] por nada”.
Depois de se fixar na rua de Miraflor, o pescador referiu que “passava pouco tempo em casa”, sendo que a vida foi sempre restringida àquela zona e foi assim que ficou a conhecer a Associação. “Passava lá os domingos” e foi “a partir da reforma que as visitas começaram a ser mais constantes”, onde “construiu amizades que levou para a vida”.
Bú sempre adorou a associação pelas amizades que fez. Sente-se contente por dizer que “não tem inimigos lá dentro”, agradecendo à freguesia de Campanhã por ter estes amigos que sente que gostam imenso dele. Outro fator que relembrou, que deu logo um sorriso de saudade no rosto, foi a vida noturna, que só chegava a casa “entre as quatro e cinco da manhã” e que também abriu asas a que fosse bastante conhecido naquela zona.
Zé Pescador falou, também, da importância da associação, não só para ele, mas para “todos os que frequentam”. Salienta a importância do convívio para as pessoas, mas preocupa-se com o facto de o convívio ter o futuro incerto. Lamenta que a associação está cada vez mais vazia devido aos interesses da direção “em encher o bolso”. “Têm de ter uma direção que seja mais para a quantidade, não para os interesses de cada um”. A comunidade, na opinião de José, tem muito a ganhar com a associação, principalmente, os filhos dos residentes. Olhou no interior dele para as gerações futuras, antes de desenvolver a pergunta, porque vê neles o futuro da felicidade. Isto porque “são eles que cantam, têm imensa alegria”. O principal fator é porque os mais novos são quem providencia mais o convívio na associação, por trazerem sempre mais gente, o que leva a “desenvolver coisas novas”.
Acredita que a melhor maneira de a associação continuar é “arranjar homens e mulheres competentes” e que a melhor maneira é fazer mais reuniões entre os moradores. “Tem muito espaço para fazer qualquer coisa” e o ponto fulcral está nas pessoas que tiverem à frente na direção, dando o foco “na juventude”. Já em relação ao que é que a corporação pode fazer pelos moradores, Zé Pescador insiste, mais uma vez, na questão das reuniões, de forma a “discutir os problemas que todos têm”. Relembra aqueles que precisam de ajuda e não a pedem e os que têm as casas degradas e acredita que a corporação pode “fazer muito por essas pessoas”. Apesar de todas estas soluções dadas, deixa o lamento que “não há união entre os moradores e a associação”, deixando uma postura vazia e com angústia.
Apesar disto, a maior memória que guarda é a visita do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. A olhar na expressão de Bu enquanto recordava esse dia, era notório a felicidade e desejo de voltar a repetir esse dia. Zé Pescador não esquece a simplicidade e humildade da maior figura do Estado português. “É mesmo uma jóia”, relembrou. Além deste dia, nunca esquece as festas e reuniões, “que eram muitas”.
O Bú dos dias de hoje
Acerca do dia-a-dia na associação, começou logo a rir, pois “como todos os velhos”, gosta de jogar sueca ou dar uma volta no jardim São Lázaro, “no entanto com a pandemia, deixou de o fazer”. Outro dos motivos que o leva à associação é a promessa feita a si mesmo: cuidar do gatinho a quem transmite toda a ternura que resta. Conta que tem uma relação amável e que “pode fazer tudo o que quiser que nunca mete as unhas”. O maior entretenimento “é o gatinho”, com quem agora passa a maior parte do dia.
Para além disso, conta, também, que, de vez em quando, vai arranjando “coisas relacionadas com a eletricidade e pichelaria”. No entanto, veio um momento de lamento por Bú devido à falta de mobilidade que não permite continuar a dar este tipo de ajudas na associação.
Agora, para Zé Pescador, o mais importante é “aproveitar o pouco que lhe resta” a entreter-se com “coisas mais simples”, cumprir a promessa de tratar do gato “que deixaram ao cuidado dele” e acreditar nas próximas gerações, “que não podem estar sempre a curtir” e que “têm de fazer aquilo que, um dia, já foi capaz de fazer”, onde irá levar para sempre boas memórias e replicá-las no “cantinho”.
Rui Ribeiro, 22 anos, natural da Senhora da Hora. Atualmente no terceiro ano do curso de Ciências da Comunicação na Universidade Lusófona do Porto. Tendo os avós combatido na Guerra Colonial, por Portugal, ganhou curiosidade em tudo o que envolve o tema "guerra", onde tem como objetivo chegar a repórter desse ramo.