Júlio Lima, morador: “Campanhã é a casa onde eu nasci”.
- Bárbara Pires
- 27/06/2023
- Especiais Fotografia Híbridos Multimédia
Júlio Lima nasceu em 1954 na estação ferroviária de Campanhã, onde viveu durante dez anos. Naquele tempo, Campanhã era repleta de turistas, imigrantes e soldados que partiam para a denominada Guerra do Ultramar. No cais, as famílias esperavam pelos parentes que chegavam e partiam da linha ferroviária. Hoje, em 2023, Campanhã é um lugar diferente. Júlio explica-nos através das suas lembranças que o ambiente já não é o mesmo. De uma estação provida de sentimento, gente com muita pressa mas que, ao mesmo tempo, apreciava aquele lugar a “uma estação entre tantas outras na cidade do Porto”.
[Texto por: Bárbara Pires e Joana Amaro]
É quinta-feira, duas da tarde, do dia 25 de maio de 2023. Júlio Lima está encostado ao murete da escadaria em granito que dá acesso à estação ferroviária de Campanhã, no Porto. De costas para a casa que o viu crescer durante dez anos começa a falar da sua origem. “Campanhã é a casa onde eu nasci”, diz o ex-economista referindo-se ao atual edifício da estação de caminhos de ferro, onde outrora terá existido a habitação que o viu nascer.
Ao falar da sua casa e ao lembrar as boas memórias que viveu na “sua Campanhã”, os olhos de Júlio brilham. Com um sorriso nos lábios, conta-nos que o comboio era o meio de transporte mais importante de Portugal, naquela época. Era a forma de locomoção que quase toda a gente utilizava, quer para trabalho, como laser. Júlio refere que a utilização do comboio era “completamente massiva”.
Recorda muitos turistas e imigrantes a chegar à estação na época natalícia, sobretudo. E de famílias com muitos filhos e dos soldados a despedirem-se das mães antes de partirem para Angola, Guiné-Bissau e Moçambique para a denominada Guerra do Ultramar. “Esta estação estava sempre cheia de gente. Eu vinha à janela e as plataformas estavam sempre cheias de gente. Gente com muitas malas, muitos sacos, muitas cestas. Gente que ia para França, ou voltavam com a família, com muitos filhos. Praticamente toda a gente andava de comboio.”
A Estação de Campanhã A Estação Ferroviária de Campanhã, situada na periferia do Porto, na freguesia de Campanhã, inaugurada a 21 de maio de 1975, foi o ponto de partida que ligou as Linhas do Norte e Minho. Desde a sua inauguração, o comboio para além do transporte de passageiros, transportava mercadoria, sendo, desde então, considerada a principal estação ferroviária do norte do país e a mais movimentada da Cidade Invicta com ligações entre norte e sul de Portugal. Atualmente, a estação de Campanhã, para além dos comboios, dispõe também de outros meios de transporte, como metro, autocarros e táxis. Mantém-se uma das mais movimentadas, não só do Porto, como do país. |
Foto: Catarina Semmann
Entre memórias, Júlio recorda uma das mais felizes: o circo. Assim que ouvia o comboio chegar, a alegria era imensa. O pequeno rapaz corria para a janela para ver toda a animação que saía das carruagens e no seu caderno começava a escrever tudo o que via. “Lembro-me dos elefantes a sair do comboio e a subir aqui a Rua de Pinto Bessa. Era um desfile de animais e palhaços a ir todos por ali acima. Era bonito de se ver. Isso hoje acabou”
Júlio recorda, ainda, por intermédio das memórias do seu avô, pois tinha apenas quatro anos, da chegada do General Humberto Delgado, um dos candidatos às eleições presenciais do Estado Novo, à Estação de São Bento, no ano de 1958. O seu avô contava que a rua, em pouco tempo, ficou completamente cheia de gente. Foi um momento de alegria para todos, ao pensarem que seria o “princípio do fim do regime de Salazar”.
Aliás, segundo indica o website da Câmara Municipal do Porto, foi nesse dia que o “General sem Medo”, como era conhecido, afirmou: “O meu coração ficará no Porto, já que no Porto nasceu, como noutros momentos históricos, o indomável espírito de luta que só terminará com o triunfo da Liberdade em Portugal”. Existe até um documentário sobre o tema, realizado por Jorge Campos, que pode ser visionado no website Lugar do Real.
Júlio já estava habituado a ver a estação de Campanhã com muita gente. Os transeuntes apressados, a entrar e sair do comboio, a descer e subir escadas. Por isso, foi para si difícil imaginar o que seria uma multidão à espera do General em São Bento.
Fonte: Porto Desaparecido
Foi também com quatro anos que Júlio fez a sua primeira viagem de comboio. Agora, passado meio século “recorda o dia como se fosse ontem”. Lembra-se de ter sido uma viagem curta mas que parecia nunca mais acabar. Estava encantado com as paisagens que via e pela sensação de finalmente conhecer o interior do comboio que passara anos a observar de perto. Quando a viagem acabou, Júlio ansiava por voltar a sentar-se na carruagem e ver passar o ambiente exterior.
Museu Ferroviário de Lousado O Museu de Caminhos de Ferros de Lousado, situado no concelho de Vila Nova de Famalicão, nas antigas oficinas do Caminho de Ferro de Guimarães, constitui um ícone no âmbito da arqueologia industrial portuguesa. A sua exposição permanente é constituída por material que pertenceu a oito companhias que operaram em linhas de via estreita em Portugal entre os anos 1885 e 1977. Por iniciativa de Armando Ginestial Machado, ex-engenheiro e ferroviário da CP, foram guardados objetos e equipamentos, bem como locomotivas consideradas “joias ferroviárias”. |
Centro Nacional de Documentação Ferroviária
O Centro Nacional de Documentação Ferroviária tem como principal objetivo estudar, conservar, valorizar e divulgar o acervo documental ligado à história ferroviária em Portugal.
Fonte: Museu Nacional Ferroviário de Lousado
Júlio fala da estação de Campanhã como sendo o seu lar. A porta da sua casa dava acesso direto à plataforma dos comboios, o que seria perigoso para uma criança da sua idade que saía de casa para puder brincar. Passava horas a apontar os números das locomotivas que circulavam.
Quando aos dez anos mudou de casa, admite ter-se fascinado com o seu novo quintal: “lá podia jogar à bola, aqui não”. Ainda assim, recorda o seu antigo sótão, um lugar cuja escuridão o assustava, mas onde passava o tempo a brincar com a irmã.
As suas primeiras amizades surgiram quando entrou para a escola primária que ficava ao subir da rua de Campanhã, bem perto da sua casa. Por não poder sair para brincar, devido ao perigo, diz que se sentiu feliz quando teve o primeiro contacto com mais crianças da sua idade. Ainda durante as aulas, Júlio não deixava de pensar nos seus “amigos adultos”: o porteiro da estação e o Sr. Babo, um dos polícias que fazia a ronda e que já o conhecia desde que nascera.
Os Lima: uma família de ferroviários
O pai e avô materno de Júlio eram ferroviários dos Comboios de Portugal (CP) e assim que chegavam a casa, após terminarem o seu turno, Júlio estava sempre pronto para mostrar os números que tinha apontado no seu caderno sobre a rota das locomotivas.
Foto: Júlio Lima
Foto: Júlio Lima
Para além do seu pai e avô materno, também os seus avós por parte de pai e tios trabalhavam na CP. Foi por ter tantas influências perto de si que Júlio sempre quis ser ferroviário. O fascínio por aquele meio de transporte corria-lhe nas veias: “A minha família era praticamente toda de ferroviários.”
Formou-se em economia e findado o curso tinha esperança de seguir o legado da sua família. No entanto, as circunstâncias da vida não o permitiram: “Eu sempre quis ir para a CP. Na altura falei com o meu pai e o meu avô, mas eles [CP] precisavam de engenheiros e eu tirei o curso de economia e, portanto, na altura não precisavam de economistas.”
Júlio recorda a família toda junta. Era numerosa e “havia muita animação à mesa, muita gente a conversar”. O tempo foi passando e tudo mudou. Estes momentos felizes começaram a transformar-se em memórias à medida que a vida foi levando os seus entes queridos: “Os tempos eram outros. Lembro-me que no dia em que festejavam os meus anos ninguém estava morto.”
Foto: Júlio Lima
“ANIVERSÁRIO” “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.” |
Fonte: Arquivo Pessoa
O presente de Júlio: Uma família de não ferroviários
Agora, já com filhos e netos, Júlio confessa ter especial carinho pelo momento em que lhes conta as suas histórias e lhes fala sobre a sua origem. Não apenas sobre Campanhã, pois Júlio Lima considera-se um apaixonado pela Invicta. “Sempre tive muito interesse pela minha cidade e sempre transmiti isso aos meus filhos”.
Os tempos são outros e não procura incutir a paixão pelos comboios aos seus filhos, porque acredita que a essência já não é a mesma, Campanhã não tem o mesmo sentido para si.
Admite ser a favor da mudança e confiante declara que tudo o que vier para melhorar será sempre bem-vindo. Mas há momentos que nunca vai esquecer.
A casa onde em tempos nasceu e viveu foi demolida. Por fora “as paredes mantêm-se, mas por dentro já não há nada, está tudo diferente”, afirma Júlio. “Eu sei que já não posso entrar lá porque aquilo já não é a minha casa, a minha casa é só a fachada.”
Diz que, apesar do carinho por Campanhã, não voltava a viver lá. Ao olhar para trás com um olhar nostálgico nota as diferenças do lugar a que um dia chamou casa.
Júlio, o que é para si Campanhã?