Justino Teixeira: uma rua dotada para o comércio e para a caridade

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Justino Teixeira: uma rua dotada para o comércio e para a caridade

Na cidade do Porto, do lado direito de quem sai da estação Porto-Campanhã, a rua histórica Justino Teixeira destaca-se pelos vários estabelecimentos comerciais, restaurantes, oficinas mecânicas e até uma associação de caridade. Nos últimos cinco anos, tem sofrido várias alterações: nova pavimentação, restaurantes que faliram, fábricas que se deslocaram e uma nova associação com morada nesta rua.

[Estrela Sofia Flores e Francisca Cruz]

Ao subir a rua íngreme e estreita chamada Justino Teixeira, na freguesia de Campanhã, na cidade do Porto, com casas de um lado e do outro, que, em dias de sol, fazem uma pequena sombra no chão, vão-se encontrando fábricas abandonadas. Entre o silêncio, o barulho dos carros e o chilrear dos pássaros, não se vê grandes movimentos, como se a rua estivesse abandonada. Há poucas pessoas que saem à rua ou nela caminham. E, quando assim sucede, são moradores ou trabalhadores das fábricas e comércios que ainda restam na Rua Justino Teixeira.

Rua Justino Teixeira

Já quase a chegar a meio da rua, do lado esquerdo, situa-se a oficina Auto Justino Teixeira que é uma das mais antigas da rua. Desde 1966 que marca a rua pelos seus serviços de reparações mecânicas, revisões, pinturas e chaparias. Situada no número 343, conta agora com mais um armazém.

José Teixeira, funcionário da empresa, recorda que a rua sempre foi dotada para a indústria e para o comércio. Sabe nomear e descrever as indústrias que passaram pela rua. A maior parte fechou, ou foi deslocalizada, hoje restam ainda as oficinas e um armazém de vinho. “Era uma rua de armazéns, essencialmente”, relembra José Teixeira. E acrescenta: “Foi desaparecendo tudo e ficou assim”. Segundo ele, todas as fábricas davam vida à rua. Hoje são poucas, mas ficam as memórias. 

A oficina teve de se adaptar e fazer esforços para sobreviver a esta perda de movimento da rua. “Tivemos de nos reorganizar e ir buscar clientes fora daqui”, começa por indicar José Teixeira. “Hoje, o nosso grosso de clientes não são clientes aqui da zona, mas sim clientes de outras áreas que nos procuram aqui, visto que já estamos aqui há muitos anos.”

O funcionário nota diferença no tempo. As ruas de há 20 anos não eram as mesmas. Era sempre movimento de um lado para outro, camiões a descarregar, outros a carregar, o barulho das fábricas fazia-se sentir na rua. À noite, nem o barulho de um carro se ouvia porque sempre foi uma rua industrial.

“Há 20 anos não passava ninguém, até metia medo”. Depois, na época da Páscoa e do Natal “era o pico do movimento, a afluência dos camiões era grande, chegavam a ocupar a faixa de rodagem, o trânsito causava engarrafamentos, ninguém conseguia passar na rua”, recorda. Hoje em dia, a maioria das fábricas faliu, mas começa-se a sentir o regresso do comércio e da indústria, que voltaram a dar cor e vida à rua. “Agora já tem mais movimento do turismo e os alojamentos locais já têm um bocado mais de dinamismo”, nota o funcionário da oficina mecânica.

Por sua vez, o pavimento também sofreu alterações.  “A calçada da rua é a mesma de há 70 anos, só mais no cimo da rua é que já não se veem os paralelos, os passeios também mudaram”. Foi feita uma intervenção municipal de setembro de 2022 a março de 2023, a nível dos passeios e de pavimentação: os passeios em terra passaram a ser em cimento e parte da rua deixou de ser em paralelo, para dar lugar ao alcatrão.

A recuperação foi lenta, mas a rua voltou a renascer e a ganhar novamente dinamismo: os armazéns estão a ser recuperados e as casas restauradas. “A rua caiu e agora está a renascer”. 

“Tivemos de nos reorganizar e ir buscar clientes fora daqui. Hoje, o nosso grosso de clientes não são clientes aqui da zona, mas sim clientes de outras áreas que nos procuram aqui, visto que já estamos aqui há muitos anos.”

José Teixeira

Há restaurantes a fechar e uma rua a ficar deserta

Em março de 2023, subindo mais uns metros da rua em direção a norte, ainda se alcançava o “Bufete Os Compadres”. Com a sua fachada vermelha este restaurante histórico, com cerca de meio século, não passava despercebido. No dia 25 de maio, fechou as suas portas. As empresas que faliram levaram os clientes, não sendo possível ver uma casa novamente cheia.  E isso apesar da promessa de requalificação de Campanhã, conforme anunciado por várias notícias publicadas quer em 2016, pelo jornal Público — Câmara do Porto quer duas novas áreas empresariais em Campanhã em 2017,— quer pelo JPN que indicava “Campanhã de cara lavada em dez anos”, ou em 2021, também no Público, sobre a venda do terreno Justino Teixeira para a construção do novo complexo desportivo municipal.

Bufete Os Compadres. Fotografia: Raquel Souza

O negócio começou com dois homens que eram compadres. Dando, assim, origem ao nome da casa. Depois ganhou a fama de um copo de vinho chamado “negos”, era um copo que tinha uma medida que fazia com que qualquer um quisesse experimentar o famoso “neguinhos”.

José Vieira, um dos sócios do Bufete Os Compadres, esteve 37 anos à frente do negócio. Com 27 anos, chegou à rua Justino Teixeira e pôs mãos à obra. Recorda que a rua era muito movimentada e que estiveram vários anos a “trabalhar bem”. O cenário mudou. Com a saída das fábricas a rua ficou um pouco “abandonada”. Os seus clientes eram sobretudo funcionários dessas empresas. Conta que há sete anos saíram 27 empresas da rua, algumas delas com mais de uma centena de empregados. 

José Vieira sócio do Bufete Os Compadres. Fotografia: Raquel Souza

Estas empresas foram saindo “porque as políticas da Câmara foi tirar as empresas de indústria do centro de habitação”, diz José. Visto que Campanhã é uma zona de habitação “querem tirar as indústrias da zona habitacional para as zonas industriais”, nota.

Assim, começaram a escapar os negócios. “Há empresas que foram assim, e há outras, por falta de capacidade de transporte, quando se juntavam aqui aqueles 15 camiões-TIR para descarregar, uns eram por um lado, outros por outro, e impediam o trabalho uns dos outros, um estava a descarregar, o outro podia passar, o outro não podia, ficou-se mesmo num beco sem saída”. 

Uma rua que sempre foi movimentada devido aos negócios vê-se a ficar sem as empresas que tiveram de “arranjar alternativas que fossem mais fáceis para eles, e mais práticas” porque o trânsito era um verdadeiro “pandemónio”.

O sócio do Bufete relembra este alvoroço, afirmando que as empresas foram saindo pela falta de acessos que não lhes permitia trabalhar. Umas abriram falência, “não vão ter despesas, sem ter rendimentos”, outras viram-se obrigadas pela Câmara Municipal a sair.

“Isto começou a entrar num buraco sem fundo”, hoje se passarmos em frente ao Bufete Os Compadres este encontra-se encerrado. Não conseguindo sobreviver à solidão da rua, fechou as portas no passado mês de maio.

Frente do Bufete Os Compadres no dia 30 de maio. Fotografia: Catarina Almeida

Hora de ponta: “Parecia o São João das seis da tarde”

Continuando a subida da rua repleta de terrenos abandonados, que pertenciam às antigas fábricas, existe outro restaurante, do lado direito da Justino Teixeira: a Casa Fonseca. Hoje só o segundo está em funcionamento. A Casa Fonseca é um café de família, aberto desde 1968. Não só a rua foi sofrendo alterações como o estabelecimento foi se alterando. Entra-se no café e sente-se o cheiro a comida caseira, ouve-se o barulho dos pratos e o ponteiro do relógio a movimentar-se. Toca o relógio de cuco anunciando meio dia. Os clientes começam a entrar e sentar-se nas mesas. Ao balcão está o atual dono a receber os clientes com um sorriso na cara: Fernando Fonseca, que representa a segunda geração deste negócio de restauração.

Fernando Fonseca – Proprietário da Casa Fonseca. Fotografia: Estrela Flores

Uma rua de trabalho, completa de empresas e fábricas com centenas de empregados. A Casa Fonseca está aberto há mais de 55 anos. Fernando descreve que, outrora, a rua era “cheia de gente”. O movimento era notório de segunda-feira a sexta-feira, mas a maior confusão era mesmo as seis da tarde: “parecia o São João”. “Dizer é uma coisa, viver é outra”, a aglomeração de pessoas que saíam dos seus empregos parecia um ajuntamento da festa popular festejada no Porto. A confusão chegava a ser tanta que nem nos passeios cabia toda a população. Sendo a Rua Justino Teixeira uma rua de comércio o São João não era festejado.

Fernando Fonseca nasceu a 11 de junho de 1962, na aldeia Formosa, perto da Serra da Estrela. Veio para o Porto com seis anos, onde estudou, viveu e trabalha. A sua primeira casa, tinha ele 6 anos de idade, localizava-se na rua Justino Teixeira. Na altura veio para a cidade invicta porque os pais iam tomar conta do negócio, hoje em dia é o atual proprietário do restaurante Casa Fonseca, situado na Rua Justino Teixeira, número 584.

Recorda a rua com saudade, as brincadeiras que fazia, os reencontros com a família que vivia no Brasil, a escola e o restaurante que já em pequeno gostava de ajudar os pais. Os primeiros proprietários foram os pais que acabaram por lhe passar o negócio. O estabelecimento sofreu algumas alterações, mas nunca perdeu a sua essência.

Os clientes “têm vindo a mudar”, afirma que o restaurante estava sempre repleto de clientes ao ponto de não ter tempo de falar com o seu pai enquanto trabalhava, mas atualmente já não tem tantos. Sendo uma casa com portas abertas há 55 anos, quem ali passa já conhece bem o nome deste estabelecimento. Mas Fernando Fonseca, afirma que os seus consumidores são trabalhadores da rua e que a saída das empresas veio prejudicar o negócio. As empresas vão-se embora e levam também consigo os clientes de quem a Casa Fonseca estava habituada a receber.

“Há menos gente”, começa por afirmar, “nada a ver com aquilo que existia antigamente, [quando] muita gente trabalhava aí”. Tal como os funcionários da Casa Compadres, Fernando nota que as “empresas foram saindo, foram deslocadas, faliram, reduziram em muito o pessoal e os próprios conceitos empresariais são diferentes”.

O negócio permitia conhecer as pessoas que frequentavam a rua, o ambiente era familiar. Com o passar dos anos, a rua foi ficando menos movimentada, diminuiu o número de pessoas, algumas empresas faliram e outras mudaram-se para outro local. As pessoas na rua eram simples e humildes, descontraídas e mais leves. Hoje, já não é assim tão fácil conhecer e criar ligações com todas as pessoas que por ali trabalham e com as poucas que lá ainda vivem.

“Menos gente, nada a ver com aquilo que existia antigamente, muita gente que trabalhava aí. Empresas que foram saindo, foram deslocadas, faliram, reduziram em muito o pessoal e os próprios conceitos empresariais são diferentes. Mas, em termos de gente de trabalho há muito menos gente”.

fernando fonseca, restaurante casa fonseca

Esta rua sendo ela uma rua de comércio, traz consigo uma grande responsabilidade para a comunidade, pois ainda é o posto de trabalho de muitos cidadãos. Até para Fernando, a rua já só é de trabalho, quando se casou deixou de viver na rua Justino Teixeira, diz que, “já não é aquela ânsia de morar aqui, ou seja, é mais distante.”

Uma rua de caridade, a Associação Viver de Afetos

Não só de comércio vive a rua, mas também de caridade. Num ambiente familiar e calmo a rua acolheu há ano e meio uma associação sem fins lucrativos que tem como objetivo dar apoio à comunidade local e que sublinha, através da ação diária, o objetivo de ajudar os mais desfavorecidos. A fundação desta coletividade surge da consciência da conjuntura social do país e, mais especificamente, da cidade do Porto, cada vez propicia mais a desigualdade social. Quem entra na associação não imagina a onda de amizade e companheirismo que se sente.

Logotipo Associação Viver de Afetos. Fotografia: Estrela Flores.

Ricardo Teixeira, utente da associação, tem 27 anos. Sempre frequentou a Rua Justino Teixeira, pois vive na rua vizinha desta. Hoje, passa todos os dias por esta rua para ir para a associação, onde diz ser muito feliz e sentir-se útil. Um verdadeiro fã da associação, para onde esta for ele vai atrás.A Associação Viver de Afetos (AVA) foi fundada em 2015. Inicialmente localizava-se na rua Pinto Bessa no número 522. Há cerca de um ano e meio mudou-se para a Rua Justino Teixeira. Entre as mais diversas causas da sua saída das antigas instalações, uma delas deve-se ao fim do contrato de arrendamento. Apesar de nas antigas instalações serem frequentadas por mais pessoas e ter um movimento maior do que agora, o utente diz preferir o novo local.

Ricardo Teixeira. Fotografia: Francisca Cruz
Qual a missão da Associação Viver de Afetos (AVA)?

Apoio a crianças e jovens em risco de exclusão social;
– Apoio a pessoas com deficiência e incapacidade;
– Proteção social dos cidadãos nas eventualidades de doença, velhice, invalidez e morte, assim como em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou capacidade para o trabalho;
– Prestação de cuidados primários de saúde em casa dos mais desfavorecidos e sempre que se justifique assistência medicamentosa;
– Equipas de rua organizadas para prestarem ajuda alimentar e cuidados primários às pessoas em situação de sem-abrigo do Grande Porto.
Fonte: Folheto Geral da Associação Viver de Afetos, disponível através da plataforma SCRIBD
Sala de aula da Associação Viver de Afetos. Fotografia: Francisca Cruz

Ricardo frequenta o curso modular de empresas do qual admite estar a gostar. Ele ressalva espírito de ajuda que se sente na instituição, referindo que a coletividade tem “o coração aberto para todos”. Além disso, faz questão de referir, a amizade é o sentimento predominante dentro da Associação Viver de Afetos, nos colegas de turma, Ricardo, já os vê como amigos. Diz que acima de tudo são companheiros.

A instituição apoia crianças e jovens em risco de exclusão social, pessoas com deficiência e incapacidade, oferece proteção a cidadãos em casos de doença, velhice, invalidez e morte, assim como em situações de falta de meios de subsistência, prestam cuidados de saúde aos mais desfavorecidos e ajudam os sem-abrigo.

No meio destas ajudas, a associação tem uma parceria com o banco alimentar e a Junta de Freguesia tendo já contribuído com roupa para a Ucrânia. Devido à preocupação com os desempregados e desfavorecidos, oferecem, também, formação profissional que ajuda na procura de emprego e na melhoria da qualidade de vida. 

Cartaz elaborado pelos utentes da AVA de Apoio à Ucrânia. Fotografia: Estrela Flores.

Ricardo conta que a melhor memória que tem da associação foi quando três estagiárias o convidaram para participar numa ação de voluntariado, onde davam alimentos aos sem abrigo, ver e sentir a realidade dos carenciados, fez com que o utente refletisse a importância que a associação tem na sua vida.

“Já não se houve as mosquinhas, agora é sempre o mais movimentado possível”. Uma rua onde o sossego predomina e o movimento começa a crescer. Ricardo Teixeira realça que se encontra satisfeito com o facto das indústrias localizadas na rua trazerem dinamismo e movimento que torna as pessoas alegres e mais bem dispostas. Considera que a rua evoluiu muito “antes só tínhamos a estação”, agora está tudo “mais dinâmico”, a alteração na calçada da rua também a tornou diferente. Durante a noite, a rua é calma e silenciosa porque o comércio está fechado. Na altura das obras a comunidade teve de “suportar o barulho”, mas veem com positividade estas alterações da rua. As obras deixam uma queixa geral: a “falta de estacionamentos” atrapalhando assim vida de quem frequenta esta rua.

Da oficina até à associação as pessoas contam as fases que a Rua Justino Teixeira passou a nível de comércio e caridade. Houve épocas de sucessos e insucessos e conseguiu renascer e adaptar-se à evolução que o tempo impôs. Agora ao comércio ainda existente na rua junta-se a caridade. É uma rua em que a saudade está presente naqueles que nela passaram.