Mas afinal não somos todas feministas?

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Mas afinal não somos todas feministas?

[Reportagem de Ana Catarina Ferreira e Juliana Silva]

As mulheres são, há várias décadas, vítimas do sistema machista e opressivo, que perpetua as desigualdades entre os sexos. O #infomedia decidiu dar voz a feministas e organizações que lutam pela igualdade de género em Portugal.

O relógio marca 17h e o GPS indica que estamos na Praça D. João I, no Porto. Está a decorrer uma manifestação contra a violência machista e a justiça patriarcal. Ao longe, vê-se a Catarina, uma jovem de 32 anos, que se caracteriza como sendo feminista. Segura um megafone, reivindica a mudança e grita palavras de ordem – “a nossa luta é todo o dia, somos mulheres e não mercadoria”.

A cor da sua t-shirt representa o movimento do qual faz parte.

A Catarina é a representação de muitas mulheres que são, diariamente, vítimas do sistema machista e opressivo. Pertence ao Núcleo do Porto da “Rede 8 de março” – um grupo que combate as desigualdades e que tem como luta a defesa pela igualdade de género.

A Rede 8 de março, presente em todo o país, articula várias associações feministas, que combatem o racismo, defendem os direitos da comunidade LGBT, dos imigrantes e lutam contra a precariedade. É a responsável pela organização da Greve Feminista Internacional, que ocorre todos os anos em Portugal, precisamente no dia 8 de março.

Curiosamente, foi enquanto defensora do feminismo que viveu o mais recente episódio de abuso. Num domingo, por volta das 15h, colava na rua uns cartazes que aludiam à manifestação. Recorda com raiva: “Fui abordada por dois homens. Um deles dizia que as mulheres merecem levar porrada e até ameaçou arrancar os cartazes”. Em plena luz do dia, tentou agredi-la. É irónico pensar que isto aconteceu no momento em que divulgava um protesto, que defenderia, entre muitos outros aspetos, a segurança da mulher na via pública.

Catarina luta por um futuro onde exista mais segurança e espera, sobretudo, que não haja espaço para a discriminação. Traz à memória o medo que viveu naquele instante. Quando um dos homens lhe começou a tocar no corpo, sentiu que precisava de se defender – “ele já estava com o braço esticado pronto para me bater”. Foi então que Catarina se lembrou que tinha na mão uma tesoura de pontas redondas. Não o podia magoar, mas apontou-a ao pescoço do agressor.

Repentinamente, surgiu a mãe de Catarina. Sabia que a filha estava perto de casa, a divulgar a concentração e decidiu sair à rua para a ajudar. O instinto maternal não engana, não costumam dizer?

“Correu até mim e conseguiu acalmar a situação. Felizmente, o episódio acabou por ali, mas foi uma situação triste, principalmente porque estava a espalhar um evento que defende a segurança da mulher, e foi isso que me faltou naquele momento”.

Apesar de estar com máscara, o olhar não engana. Emocionada, relembra: “se, naquela altura, estivesse ali a minha filha de 12 anos, ela não teria capacidade para se defender”. Revela que a sua presença no protesto tem por base o pensamento de que “não se pode travar a luta porque não podemos viver em clima de insegurança”.

Mas a sua história não fica por aqui. Em janeiro do ano passado, viveu no local de trabalho um episódio de assédio. Visivelmente transtornada, recorda o momento em que foi maltratada por um superior – “fui agredida pelo meu chefe-geral no gabinete da fábrica. Ameaçou-me com uma cadeira, agarrou o meu braço e pisou-me”. Face a esta situação, a nortenha de 32 anos sentiu necessidade de se despedir, justificando que “não aguentava mais trabalhar naquele local”.

“Para mim foi o extremo, eu nunca mais me vou sujeitar a passar por algo do género, isso é garantido”.

Desigualdade salarial entre géneros

Encarregada da secção de embalagem na fábrica de onde se despediu, confessa a disparidade que sentia a nível salarial – “eu ganhava o salário mínimo e um homem no mesmo cargo que eu ganhava muito mais”. Explica que, na característica de mulher, foi desrespeitada inúmeras vezes por elementos do sexo oposto – e di-lo com um sentimento de revolta.

“O problema não está só naquela fábrica, mas sim no mundo preconceituoso em que vivemos”.

Em janeiro deste ano, Catarina foi à procura de um novo rumo para a sua vida. Conta ao #infomedia, com ar de frustração, que, durante a entrevista, o responsável da empresa afirmou que não empregava mulheres. Justificou que o trabalho desenvolvido na sua firma era feito apenas por homens e acrescentou uma breve explicação – “as mulheres têm filhos e normalmente precisam de faltar mais do que um homem”.

Tainara Machado, de 32 anos, é latino-americana, militante e ativista feminista. Reconheceu-se como defensora do movimento quando percebeu que não existia igualdade em determinados aspetos da sociedade. Essa questão foi-se complexificando quando reparou na presença de estruturas machistas e patriarcais em espaços de interação social, como a universidade, o local de trabalho e até zonas públicas. No que diz respeito à discrepância salarial entre géneros, acredita que isso só será alterado quando o debate for feito, não só pelas mulheres, mas sim por todos os agentes sociais. No entanto, identifica que “há quem não tenha interesse em mudar a configuração das estruturas predominantes na comunidade, porque beneficiam delas e dos seus privilégios”.

Sobre esta temática, Pedro Correia, membro da direção da ILGA Portugal, considera que lutar contra a disparidade salarial é um dever político e cívico. Salienta que “o valor e o mérito de uma pessoa não pode ser minorado ou ignorado por ser mulher ou de uma outra identidade/realidade discriminada”.

A associação ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo – foi fundada em 1995. Em Portugal, é a maior e mais antiga associação a defender a igualdade e a lutar contra a discriminação das pessoas LGBTI+.

De acordo com Pedro, a luta contra o preconceito, a discriminação e o ódio por motivos LGBTIfóbicos é indissociável da luta contra a misoginia e o machismo, porque se baseiam numa imposição desigual e sistémica de poder na sociedade. “A igualdade de género é, por isso, sendo uma associação declaradamente feminista, uma das nossas frentes de batalha, por uma sociedade assente nos princípios da igualdade entre todas as pessoas que nela vivem”.

A propósito deste assunto, a palestiniana Shahd Wadi, doutorada em Estudos Feministas, acredita que existe pouco diálogo a nível mediático – “uma vez por ano falam da desigualdade salarial, em Portugal e na Europa”. Considera que seria totalmente diferente se existisse uma comunicação regular sobre o tema, de forma a que os cidadãos pudessem compreender as desigualdades presentes na sociedade. Segundo a investigadora, “criar condições para existir igualdade de oportunidade” era imprescindível.

“Deviam existir, nos media, espaços regulares onde se falasse do feminismo. É preciso educar e dar voz a pessoas que não a têm”.

Começou a seguir o movimento feminista quando conheceu determinadas hsitórias de vida, que a fizeram questionar o clima de discriminação presente na sociedade. Identifica-se com o feminismo interseccional e justifica a sua posição afirmando que defender este ideal não é só debater a questão de género.

“É também as questões climáticas, o colonialismo, o capitalismo. Este é o meu pensamento político e pessoal, é assim que eu vivo. Eu vivo o feminismo”.

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) representam uma agenda mundial adotada em setembro de 2015 para ser cumprida até 2030. É composta por 17 objetivos e 169 metas. Na análise do feminismo, destaca-se o ODS cinco, que, tal como o movimento, tem como finalidade a luta pela igualdade de género. Além de ser um direito humano, esta pode ser vista como um elemento primordial na construção de uma sociedade sustentável. As nove metas definidas refletem a importância e, sobretudo, a necessidade de se eliminar as desigualdades, desenvolvendo, assim, um mundo melhor.

É urgente defender o feminismo?
O transfeminismo

O transfeminismo representa a corrente que dá voz aos transexuais. Surgiu da necessidade de emancipação das pessoas trans, cuja identidade de género nunca foi reconhecida como legítima. Enquanto vítimas de opressão, lutam pelos seus direitos e pelo fim da desigualdade. Têm esperança no avanço do feminismo enquanto movimento de libertação.

Cátia Almeida tem 20 anos e é estudante de Relações Internacionais. Cresceu ao lado de mulheres que nunca toleraram ser rebaixadas, e isso desafiou-a a desconstruir o pensamento machista e patriarcal, transmitido pela sociedade. Sobre o transfeminismo, reflete: “apesar de alguns progressos, espanta-me, ainda, como é que existem tantas pessoas a quem não é intrínseco o pensamento de que somos todos iguais e que devemos ser tratados da mesma forma”. Considera que a educação, em ambiente familiar e escolar, assume um papel fulcral no combate deste conflito social.

No que diz respeito a esta questão, Pedro Correia, em representação da ILGA Portugal, afirma que “existem muitas vozes que ainda não são escutadas, porque a sociedade tende a beneficiar e dar palco às mesmas de sempre”. Salienta que, se queremos viver numa sociedade igualitária e justa, é necessário abraçar a diversidade da mesma.

Pouca abordagem no contexto mediático

Eduardo Couto tem 18 anos e é estudante de Educação Social. Acordou para o feminismo em 2017, quando aderiu ao Bloco de Esquerda e se aproximou da luta pela igualdade de género. Define-a como sendo uma questão que passa também pela salvaguarda de uma hegemonia social em defesa da mesma causa. Enquanto jovem da Geração Z, acredita que a comunicação social seria um importante elemento no combate à falsa ideia de que o feminismo significa femismo.

fe·mi·nis·mo
“Movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem”.

fe·mis·mo 
“Comportamento ou linha de pensamento segundo a qual a mulher domina socialmente o homem e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas”.

Fonte: https://dicionario.priberam.org

“O progresso da sociedade passa por isso mesmo, sensibilizar a população para a definição correta de cada termo”.

Carolina Franco tem 24 anos e é jornalista no Gerador. Cresceu numa família com um legado ancestral matriarcal e teve uma educação muito feminista. Sente que estes fatores fizeram com que se tornasse, de forma muito natural, defensora do movimento que luta pela igualdade de género.

Reconhece que ainda existe um desconhecimento geral do termo “feminismo” e, enquanto profissional na área da comunicação, assume que os media deveriam explicar determinados conceitos, que para algumas pessoas são primários, mas para outras não são de fácil compreensão.

“Vivemos uma ditadura durante muitos anos e o rasto que existe desses tempos não se esvai em dez, 20, 30 anos, aliás são coisas que ainda estão presentes na nossa geração”.

Sofia Neves, doutorada em Psicologia, é a presidente da direção da Plano i. Em termos científicos, interessa-se, especialmente, pelo estudo da violência de género. Defende a urgência de os órgãos de comunicação social se envolverem nesta reflexão. De acordo com a sua visão, o ideal seria que as instituições que, assim como a Plano i, têm combatido as desigualdades, se aliassem aos media e promovessem a igualdade.

A Plano i é uma associação não governamental que defende a igualdade, através do combate à discriminação, à exclusão, à pobreza e à violência. Age de acordo com uma perspetiva interseccional, na qual se articula o género, a orientação sexual, a etnia, a nacionalidade e a religião. Segundo Sofia, a equipa tem sempre presente a ideia de que os objetivos “devem contemplar as assimetrias e garantir que as pessoas têm direitos e oportunidades iguais”.
Desporto feminino VS masculino

Quando falamos de desigualdade no desporto, é importante notar que existe uma assimetria, na esfera pública e privada, entre homens e mulheres. Isabella Rezende, preparadora física, reconhece que “a visão do mundo é voltada para o poder e a permissão do mundo masculino e a proibição e restrição do feminino”.

O projeto “ALL IN: Towards balance gender in sport”, uma cooperação da União Europeia (UE) e do Conselho da Europa (COE) mostra que, em Portugal, as mulheres representam apenas uma pequena parte dos desportistas federados. Isabella considera que esta pouca representatividade “está associada a entraves sociais e culturais, que dificultam a participação ativa das mulheres no desporto”.

Neste sentido, é importante que homens e mulheres tenham direito aos mesmos acessos e condições na prática desportiva,  sendo “fundamental uma educação e (trans)formação de toda a cultura machista que nos é ensinada desde pequenas”. Enquanto profissional da área, debate, diariamente, a falsa ideia de que o rendimento no desporto feminino é baixo, devido a um menor desenvolvimento das habilidades técnicas e táticas do jogo. Define este pensamento como sendo “extremamente descabido”.

No que diz respeito à exposição mediática, a preparadora física reforça a necessidade de haver canais televisivos e empresas a concederem “mais espaço ao desporto feminino, permitindo que este assunto seja abordado com maior holofote em outdoors, em horários nobres e também nas capas de jornais”.

“É imprescindível a criação de políticas públicas que abordem este tema e que deem cada vez mais suporte para o crescimento e viabilização do desporto feminino”.

Cláudia Martins tem 37 anos e é jornalista na Antena 1. Enquanto profissional de comunicação na área do desporto, luta para que chegue ao fim o preconceito e a desigualdade, de que a mulher é vítima. Recentemente, após já alguns anos de trabalho, conduziu pela primeira vez uma emissão desportiva. Sendo uma profissional de referência na área, considera que deve ser feita uma “abordagem transversal e multi-setorial”.

“Toda a sociedade tem que se consciencializar do valor da mulher”.

A jornalista acredita que as desigualdades no desporto se relacionam com o surgimento tardio das mulheres na área. Para reverter estas diferenças é necessário “um processo paulatino de mentalização e consciencialização”, menciona. De acordo com a sua perspetiva, os media apresentam um papel fulcral “na divulgação e desconstrução de estereótipos”, sendo que deveriam ter como objetivo romper as ideias pré-concebidas, que estão enraizadas na sociedade.

A dimensão mediática está intrinsecamente relacionada com o interesse do público e o investimento. Posto isto, Cláudia reflete que a pouca importância atribuída ao desporto feminino se deve ao facto de se tratar de uma área que representa, no fundo, uma indústria. Neste sentido, quanto maior for a visibilidade e o consumo por parte do público, maior é o investimento.

“Creio que vamos caminhando de forma positiva. A visibilidade do desporto feminino e a sua valorização começam a ser maiores, mas acho que deveria ser formalizada uma estratégia global para que esta mudança fosse mais rápida e eficaz”.

Dentro desta temática, a ILGA Portugal defende que “o desporto deve ser um palco de transformação social, tendo o Estado e respetivas federações, associações e clubes, o dever de promover um desporto mais igualitário em termos de género”.