Máscara pandémica, o novo instrumento da música

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Máscara pandémica, o novo instrumento da música

A cultura foi um de muitos setores afetados pela Covid-19. Deste modo, o ensino da música teve de adaptar-se ao novo contexto pandémico. Duas escolas de música, na cidade do Porto, são exemplos desta realidade.

No número 455, da Rua Guerra Junqueiro, sentada nas cadeiras cobertas com plástico, da sala de espera e aguardando que o álcool gel seque das mãos, ouvem-se instrumentos a tocar. O ambiente não engana, piano na entrada, paredes preenchidas com quadros e fotografias. Trata-se do Curso de Música Silva Monteiro, uma escola privada situada nas redondezas da cidade do Porto. O edifício branco, sem marcas de desgaste, acolhe alunos desde o mais pequeno ao mais graúdo. 

Ao entrar no auditório, de janelas abertas e naturalmente iluminado, está Sara Braga Simões. É professora de canto há 21 anos e começou a dar aulas nesta escola quando ainda terminava o curso de canto na Escola Superior de Música. Acaba de dar uma aula de canto lírico e logo se prepara para a seguinte, com a aluna Maria França. A atmosfera da sala remete para um ambiente familiar, mas clássico, que torna este ensino específico mais envolvente. 

Sara Braga Simões, professora de canto lírico no Curso de Música Silva Monteiro: fotografia cedida pela entrevistada

O ensino de canto durante a pandemia da covid-19, tem sido uma atividade desafiante. Sara avalia constantemente os contextos mais seguros para dar aula: “Há um risco, como há em todo o ensino. Nas salas de aula, quanto mais gente estiver, mais risco há. Neste caso, nós temos aulas de canto e como o canto projeta imensos aerossóis [gases], eu optei por manter a sala constantemente arejada.” Sendo o canto uma atividade que depende do aparelho respiratório, que está diretamente ligado à propagação do vírus da Covid-19, a professora foi acompanhando todo o tipo de artigos que foram saindo acerca de medidas de segurança e higiene. Considera que o ambiente “estar sempre arejado é o mais seguro para os alunos, mas como pode ver usamos o acrílico e algumas vezes até cantam com máscara”. Já ela evita retirar a máscara durante a aula, fazendo-o apenas para exemplificar algumas notas vocais.

Sara tem o cuidado de desinfetar tudo depois de cada aluno sair da aula, para que outro possa entrar: “o acrílico, a estante, as mesas e as cadeiras, sou eu própria que desinfeto. São os professores que tratam disso, porque na escola não poderia haver funcionários para isto tudo e acho que é uma questão de consciência”.

Tanto a sua adaptação, como a dos alunos tem sido o que a mais inquieta, ao longo destes meses de pandemia. Refere que tem sido difícil adaptar-se ao novo método de ensino, por não poder realizar as mesmas atividades. Durante as aulas, nos anos anteriores, era feito teatro e havia sempre interação entre alunos e professor: “Acho que estão a perder. Do ponto de vista do canto, vamos tentando que não se perca nada. Mas do ponto de vista técnico e do ponto de vista dramatúrgico acho que estão a perder, porque em várias cenas havia cooperação entre alunos e, neste momento, não é possível fazê-lo, porque não queremos arriscar. É nesse nível que se perde um bocadinho, mas achamos que é melhor jogar pelo seguro e manter toda a gente bem.”

Sentada na secretária, com um acrílico à frente, está Luísa Caiano, diretora pedagógica da escola. Refere que “dentro das aulas, respeitamos as normas de lotação de cada sala e cada sala tem uma norma de lotação estabelecida para que os alunos possam estar distanciados.”

Salienta ainda que o método de ensino foi alterado, quando a escola encerrou em março de 2020, tendo sido feito um plano de contingência. Aponta para a nova estratégia adotada pela escola para prosseguir com o ensino: as aulas online.

Ensinar música à distância

Num edifício amarelo, adjacente à escola principal, encontra-se André Ramos, professor de flauta transversal. Devido à Covid-19, o Curso de Música Silva Monteiro teve de ajustar-se, uma vez que as poucas salas da escola não tinham condições para abranger tantos alunos. Assim, optaram por arrendar um espaço, num centro de acolhimento, para prosseguir com as aulas, nomeadamente de orquestra.

Aqui, o professor inicia a aula com uma aluna de 11 anos, Joana Barbedo. A estudante não utiliza máscara durante a aula e o professor mantém-na posta e sempre a cumprir a devida distância, apenas aproximando-se para exemplificar algo: “eles [alunos] na sala, devem fazer a aula como se não houvesse pandemia e temos de ser nós [professores] a tomar as devidas precauções.”

Joana Barbedo durante a aula, de flauta transversal, com o professor André Ramos: vídeo de Beatriz Santos

André Ramos considera que dar aulas em ensino remoto não foi um problema, apenas dificulta o seu trabalho enquanto professor de um instrumento tão complicado de estudar. Apesar de ser adepto do sistema híbrido de dar aulas [combinação de ensino presencial e online], “o que mais me custou foi mesmo afastarem-me dos alunos, porque quando nós entramos em lockdown [confinamento] completo, estávamos cada um em sua casa e o trabalho não rendia tanto. Alunos diferentes precisam também de posturas diferentes na aula e é muito mais fácil fazer isso ao vivo, do que propriamente atrás de um ecrã de computador.” Ainda sobre este tema, aborda o facto de este novo desafio [ensinar à distância] ser uma aprendizagem constante. O som caracteristicamente robotizado das aulas online afeta a perceção dos professores em relação ao som do instrumento ou da voz: “não conseguimos ouvir da mesma maneira, a não ser que o aluno tenha um microfone espetacular. Portanto, a captação que temos da voz do aluno é totalmente diferente da real”, declara Sara Braga Simões.

Na mesma cidade, situa-se a Escola de Música Valentim de Carvalho, instituição privada, onde David Paixão dá aulas de canto. Natural de Braga, é professor há sete anos e reflete que as aulas online foram uma mais valia, uma vez que “ensinou muitas coisas e abriu todo um mundo. Nunca pensei que seria capaz de dar essas aulas online e inclusive, pós confinamento, acabei por manter e ganhar alguns alunos fora do contexto das escolas, por começar a entrar nesse mercado.” Ainda assim, sente que teve uma parte menos benéfica para os alunos: “nas aulas online senti que atrasou o desenvolvimento dos alunos, não senti o mesmo empenho.”

A transição para voltar ao ensino regular [presencial] foi mais uma barreira a ultrapassar. Mesmo com todas as medidas, de higiene e segurança, implementadas pelas escolas, o que realmente importa é o bem-estar dos alunos.

Joana Barbedo, aluna de flauta transversal, no Curso de Música Silva Monteiro, timidamente conta que “o regresso foi um bocadinho estranho, porque no início estávamos noutra sala no Silva Monteiro e o professor usava máscara e viseira, porque a sala era mais pequena e por isso, as janelas tinham de estar abertas”. Agora tendo aulas num espaço maior sente-se mais confortável.

No geral, o que causa mais desconforto aos estudantes é o uso de máscara, uma vez que se trata de alunos de instrumentos de sopro e vocal. Natalia Fonseca, de 36 anos, é aluna de canto na Escola de Música Valentim de Carvalho e constata que, apesar de se ter adaptado bem ao novo contexto pandémico, foi nas aulas online que teve mais dificuldade. Posto isso, passou a utilizar outras técnicas de estudo para não perder o foco “descobri novas técnicas que agora uso. Por exemplo, comecei a gravar as aulas completas com ele [professor de canto], depois ao ver tentava melhorar e até agora continuo a fazer isso”. Já no ensino presencial, as mudanças que mais sentiu foram o não poder estar tão próxima do professor e “a máscara é mesmo o que dificulta mais”.

Sentada na receção do Curso de Música Silva Monteiro, está Maria França de 15 anos, acabada de ter uma aula de canto lírico com a professora Sara Braga Simões. Recém-chegada à escola, neste preciso ano letivo, confessa que não tinha ideia de muitas das técnicas que são precisas saber para cantar. Durante a aula, a jovem coloca-se atrás de um acrílico enquanto está a seis metros de distância da professora, que se senta ao piano. Faz o início do aquecimento da voz, com a máscara posta, e de seguida retira para poder ensaiar livremente.

Maria França durante a aula, de canto lírico, com a professora Sara Braga Simões: vídeo de Beatriz Santos

Mesmo assim, para Maria França o maior obstáculo foi ter de passar a maior parte do tempo com máscara no rosto: “eu tenho de estar de máscara, a professora tem de estar de máscara, então há certas técnicas no que toca à posição da boca, que eu nem sempre percebo e é preciso a professora explicar melhor. Existe uma falha de comunicação, por assim dizer”.

Na Valentim de Carvalho, a gestora Maria João Marques admite que o ensino remoto trouxe mais desistências para a escola: “nós estamos com cerca de menos 80 alunos que no ano passado”. Muitas delas pelos alunos não possuírem os instrumentos em casa. Com isso, a perda de receita foi também notória: “no período em que tivemos com aulas online, algumas mensalidades tiveram de ser ajustadas”. Confiante que o futuro será mais promissor, conclui que vão ter de se continuar a adaptar ao que a pandemia da Covid-19 ordena, sendo o seu principal objetivo “continuar a ensinar música. Com ou sem pandemia, a excelência da música vai continuar”.

Das aulas online aos espetáculos virtuais

A diretora pedagógica do Curso de Música Silva Monteiro expõe ainda a questão dos espetáculos. Destaca que todos os espetáculos agendados para aquele ano letivo [2019/2020] tiveram de ser cancelados, mas que em alternativa optaram por fazer festivais online, nas redes sociais da escola, durante o confinamento.

Regressando ao sistema presencial, Luísa Caiano declara que “até agora, desde setembro, tivemos dois [concertos presenciais], um de orquestra e um de agrupamento”, tendo sido uma diminuição drástica comparativamente ao ano passado [2019], no qual deram, pelo menos dez. “Tudo isto tem sido um desafio em que estamos constantemente em adaptação”.

Voltando ao auditório principal, em que se encontra Sara Braga Simões, ainda se fala sobre a questão das atuações.

Com o cancelamento de todos os espetáculos agendados, teve de adaptar o programa para que os alunos não desmotivassem e não perdessem o interesse pela disciplina. A ideia dos espetáculos virtuais surgiu por isso mesmo. A professora explica: “optou-se por fazer transmissão online, mas principalmente houve um festival criado na página da escola [“Em casa toco melhor”], em que os alunos mandavam vídeos e colocava-se online no Facebook. Para além disto, acrescenta que surgiu um novo festival, organizado pela escola, com a mesma dinâmica, intitulado De volta aos palcos… virtuais“, onde serão publicados vários vídeos de alunos. Isto torna-se positivo, principalmente porque os alunos estão a ser preparados para a apresentação pública e isso é uma parte muito importante da sua aprendizagem”. Contudo, isto ainda preocupa a professora com o facto de os alunos não poderem participar em espetáculos ao vivo “porque se estudam música, é para se apresentarem presencialmente num palco, não para tocar apenas para os professores”. Garante ainda que “quando eles cantam ou tocam em público, não é a mesma coisa que estar na sala de aula a tocar, eles sentem nervosismo”. Reconhece assim que esses nervos são bons para a preparação de um bom músico.  

Sara Braga Simões, apesar de ser cantora lírica profissional, aborda, emocionalmente, o facto de adorar dar aulas e, por isso, a preparação de um bom músico é um dos seus objetivos: “Gosto muito desta partilha com os alunos, de os ver evoluir, de partilhar com eles as coisas que vou aprendendo também e ver um cantor a aparecer, é muito bonito”.