Meter os pés pelas mãos, ao som de uma tatuagem
- Diana Loureiro
- 13/01/2022
- Crónica Texto Jornalístico
[Texto de Diana Loureiro]
O relógio marca as dez horas da noite de uma terça-feira de janeiro. Sentada no sofá da minha sala, apenas a luz do ecrã do computador me ilumina o rosto. Não se escuta qualquer ruído vindo lá de fora e, aqui dentro, apenas o ocasional miar dos três gatos que me cobrem as pernas. É tudo meu e tenho todo o tempo do mundo.
Daqui a 2 dias, tenho de publicar uma reportagem sobre os malefícios e os benefícios da tatuagem. O texto está praticamente finalizado, mas ainda não tive oportunidade de fotografar para ilustrar o trabalho. A covid-19 impediu-me de me deslocar até à Spider Tattoos e, amanhã, é o último dia que tenho antes da apresentação. O prazo não me incomoda, já disse que tenho todo o tempo do mundo?
“Não tenho marcações para amanhã”, diz-me Kisto, tatuador da Spider Tattoos. As cadeias de contágio do vírus que marcou estes 2 últimos anos estão cada vez maiores e parecem afetar, também, as lojas de tatuagem, que sofrem desmarcações de última hora, chegando até a passar dias sem abrir.
A Cities in Dust de Siouxsie & the Banshees ressoa em loop na minha cabeça, como se se tratasse de um separador de explorador de internet que não consigo encontrar para fechar. No meio destes pensamento soltos, surge uma ideia. “Vamos a isto”, penso. “Fazes-me uma tatuagem amanhã então?”, pergunto, justificando, para mim própria que preciso mesmo de fotografar o processo de tatuagem.
Após alguma ponderação, de uma tatuagem passo para duas. Já que me vou dar a esse trabalho, por que não? Primeiro, a capa do álbum The Best of Siouxsie and the Banshees, na coxa. Depois, o sigilo do demónio Paimon, uma alusão a um dos meus filmes favoritos, Hereditary de Ari Aster, no pé. Sim, no pé, já lá vamos.
Umas horas de dor para ter uma tatuagem para o resto da vida
Quarta-feira, um dia chuvoso de janeiro. Saio de casa, obviamente sem guarda-chuva, porque me esqueci de ver a meteorologia. E não sentia o ar exterior da rua na minha cara há duas semanas. Aquela chuva miúda, que não encharca, mas é suficiente para irritar e causar desconforto, principalmente para quem usa óculos. Chuva “molha-tolos”, como diria o meu pai. E a tola sou, claramente, eu.
É meio dia. Na loja, Kisto prepara o papel químico com os desenhos, um guia só com as linhas, para colar na pele, como se fosse uma tatuagem da bollycao, para depois passar por cima com a máquina de tatuar. A sala de tatuagem em que entramos, tem uma marquesa preta no meio, revestida a película aderente por motivos higiénicos e esconde por trás, à primeira vista, a parede traseira com o material a ser usado na tatuagem. As paredes laterais são revestidas por cartazes de espectáculos passados, como o mítico concerto de Wolfbrigade no Porto Rio, ou a última festa do Altar Café-Concerto, e um espelho.
“Esta é a parte mais chata”, diz-me, levando-me a pensar que vai ser mesmo o meu sofrimento. A desinfeção de superfícies, separação do material necessário como grips, tips descartáveis, água destilada, green soap, lâmina para pêlo, e isolar todos os sítios em que irei tocar, fazem parte de um processo moroso que é a parte mais aborrecida do processo.
Enquanto me cola o papel químico no pé, outro tatuador da loja aparece para ver o que estamos a fazer. “Vais tatuar os dois pés?”, pergunta Pedro. “Achas?” responde Kisto, “depois de tatuar este não se mete no outro”. A ansiedade deixa-me o coração a mil. “Umas horas de dor para ter uma tatuagem para o resto da vida”, repito várias vezes para mim mesma.
Na workstation estão pousadas três máquinas de tatuagem, que parecem uma mistura entre uma máquina de costura e uma caneta de aparo. O pé direito de Kisto está no pedal, a mão esquerda estica a minha pele, e a mão direita segura no grip de uma das máquinas, que primeiro bebe das cápsulas com tinta, pousadas no móvel e, de seguida, me marca a pele do pé, numa dor que parece fazer maratonas entre a ponta da espinha dorsal e o polegar.
A sessão de tortura do pé-batata
Muitas pessoas veem o processo de ser tatuado como uma terapia. Para mim, é quase uma tortura. Mordo os lábios e a língua para me abstrair da dor, faço scroll nas redes sociais, atualizo-me com as notícias do dia, vou tratando de outros trabalhos. Aproveito para gravar uns áudios da máquina de tatuar e tiro algumas fotografias.
As linhas já estão. Tatuar linhas, geralmente, custa mais porque as agulhas atuam como uma faca a cortar a pele, enquanto que o preenchimento é mais suportável, porque a área é maior e a dor torna-se menos incisiva num sítio só. Pelo menos é essa a desculpa que me dão sempre que estou prestes a desistir de uma tatuagem. No entanto, como faço sempre questão de marcar pontos, decidi preencher o desenho com sombras em pontilhismo. As horas passam lentamente, como se tivesse entrado num vórtex onde a linha contínua do tempo não existe e uma tatuagem que deveria demorar 2 horas, acaba por demorar 6.
Por volta das 4 horas da tarde, uma cara amiga aparece. “Como é que vais para casa, rapariga? Não vais conseguir calçar as botas”. Entre risos e algum gozo, Frágil fala comigo para tentar com que eu esqueça a dor. “E foi exatamente aqui”, penso eu, já sabia que ia meter os pés pelas mãos nalguma parte e foi exatamente aqui que me lixei. “Quando eu tatuei o pé andei uma semana de chinelos”, afirma Kisto, a rir-se na minha cara. Lá fora chove torrencialmente e o meu pé parece a batata doce que preparei ontem para o jantar.
A tatuagem do pé está acabada por hoje, se eu prometer que volto para finalizar alguns pontos. “Juro que não faço mais nenhuma tatuagem nos próximos 2 anos, não me meto mais nisto”, penso. Depois do pé, a Siouxsie na coxa é uma canja feita em meia hora. Fácil.
Após quase cair ao calçar as botas, saio da loja a coxear, enquanto sinto o coração no pé. Chove torrencialmente e o meu guarda-chuva espera-me em casa, à entrada, como quem goza comigo.
Agora, sentada outra vez no mesmo sofá a escrever esta crónica, olho para as tatuagens ainda envolvidas em película aderente e penso já em quais serão as próximas. Estas tatuagens já tinham outros significados por trás, mas sempre que olhar para elas vou-me lembrar da história da minha primeira grande reportagem e como meter os pés pelas mãos se revelou até, diria eu, num sucesso.