Movimento “Black Lives Matter” influencia mudanças no mundo da moda em Portugal

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Movimento “Black Lives Matter” influencia mudanças no mundo da moda em Portugal

Mais do que nunca a indústria da moda reinventa-se e movimentos como o Black Lives Matter têm um papel fundamental a inspirarem as mudanças. Sabrina Faria, designer, e Carla Pereira, modelo, esclarecem em que dimensões a moda se alia à esfera social e como este fenómeno é fulcral para uma sociedade mais equitativa.

Imagem cedida pela entrevistada.

Sabrina Faria, 22 anos, recém formada em Design de Moda integra, desde 2019, a direção de uma marca de calçado em Braga: a Revelacharme. Esta vimaranense expandiu, recentemente, os seus horizontes e elaborou uma coleção de roupa com designs e tonalidades inspiradas no movimento Black Lives Matter para a sua marca em produção, a KINDA. Ela destaca que a coleção, para além dela, é também “de todos os que acreditam na igualdade do ser humano”, já que “em pleno século XXI”, sublinha a designer, “não pode haver espaço para o racismo”. Para esta jovem de Guimarães, “não há futuro coletivo nem democracia saudável enquanto a discriminação prevalecer”.

A indústria da moda é conhecida por ser pautada por rígidos padrões de beleza que vigoram há décadas e que, durante muito tempo, permaneceram inalteráveis. O verdadeiro ponto de viragem foi o advento da internet. Através das redes sociais e dos vários fóruns disponíveis on-line, as minorias ganharam uma voz ativa e um lugar onde expor as suas reivindicações. Pela primeira vez começaram a fazer-se ouvir. O consumidor quer, mais que nunca, ver e ouvir pessoas reais e sentir-se representado perante a diversidade do mundo.

Também no último ano eclodiram algumas centenas de manifestações associadas ao movimento Black Lives Matter (BLM) que luta pela liberdade, libertação e igualdade da comunidade negra. Estes protestos decorreram nos Estados Unidos e foram instigados pelo assassinato do afro-americano George Floyd por um polícia. O impacto deste acontecimento foi tão grande que acabou por ser notícia em todo o mundo.

A temática do movimento BLM surgiu, para a profissional, quase que por acidente, já que o início do processo de criação da sua coleção coincidiu com a ascensão da onda de protestos em território americano. Assim, tornou-se óbvio para ela que estava perante a inspiração para o seu trabalho. “Apesar de ser um tema atual, simultaneamente é algo que está enraizado nas culturas, é um assunto que já vem de há muitos anos”, destaca, acrescentando que “para muitas pessoas é algo impensável que supostamente já está extinto, mas com toda esta situação ficamos a perceber que o racismo é algo ainda muito presente”.

Depois de um processo de criação lento, de cerca de seis meses, que foi sujeito a várias limitações impostas pela situação pandémica atual, nasceu, em setembro, a coleção “#01”, que visa “representar as diferentes etnias e culturas”. Vários elementos foram escolhidos estrategicamente, de forma a serem símbolos culturais e raciais. Por exemplo, “a paleta de cores baseou-se nas tonalidades dos diferentes tons de pele” explica a designer.

“Sou apologista de que aquilo que alguém veste transmite uma mensagem. A arte em si transmite várias mensagens, mas a forma como nos vestimos espelha a maneira como vemos o mundo, ou como o queremos ver; por exemplo, as cores que alguém usa dizem muito sobre ela e sobre o seu estado de espírito”.

É evidente que escolher como ponto de referência um movimento social tão influente é, para além de um compromisso ousado, uma forma de demonstrar apoio à causa. “Aquilo que defendo foi transmitido para a coleção, por isso, ao materializá-la, luto para evidenciar os meus valores, aqueles que eu acredito que sejam os corretos”, frisa.

Quanto à organização de um desfile de apresentação da sua coleção, a designer não se retrai e aborda entusiasticamente a possibilidade. “Na eventualidade de acontecer, uma das coisas que gostaria de colocar em prática seria escolher modelos de etnias diferentes e não seguir o estereótipo clássico de como as modelos deverão ser, optava por usar a mulher real. Estamos num mundo cada vez mais globalizado, não faz sentido criar barreiras porque, na verdade, elas só existem na nossa cabeça” garantiu.


“A “beleza ideal” caiu em desuso”

Imagem cedida pela entrevistada.

Carla Pereira, 20 anos, é uma modelo portuguesa com raízes cabo-verdianas, fala abertamente sobre a sua ascensão no mundo da moda. No seu portfólio evidenciam-se campanhas para marcas internacionais como a Lancôme, Benetton, Chloé ou New Balance; desfiles em semanas da moda de Portugal, Inglaterra, França, Austrália. E, ainda participações em várias revistas, nomeadamente, a Glamour Russia, Harper’s Bazaar UK ou Vogue Australia.

A jovem entrou no mundo da moda de uma forma inesperada. “Tinha acabado de fazer 15 anos. Um dos meus amigos convidou-me para ir à agência, eu tinha uma péssima autoestima e achava que não me encaixava no estereótipo de modelo. Pelo que ainda tive alguma dificuldade em tentar perceber se realmente era aquilo que eu queria, mas acabei por ir” conta, evidenciando que achava não se encaixar na área.

Com o passar dos anos, o seu reconhecimento foi aumentando exponencialmente. Mas, apesar de uma ascensão significativa na indústria da moda, no espaço de apenas cinco anos, a modelo admite que já viu o seu trabalho limitado devido a atitudes racistas. “Já me foi dito que não ou porque sou preta, ou porque o meu cabelo é crespo. Passei por situações em que foi um desafio controlar-me perante pessoas que podiam estragar a minha carreira. Muitas vezes cheguei a casa, não estando em Portugal, e desabei em lágrimas porque senti que foram preconceituosos comigo. Não é fácil para uma criança, como eu era na altura, lidar com determinadas situações” desabafa.

“É sempre um desafio tentar competir com uma pessoa branca. Ela terá sempre algo mais, independentemente da situação, a facilidade com que as coisas lhe são atribuídas não vai ser a mesma que a mim. Eu não vou culpabilizar essa pessoa, culpabilizo o sistema e tudo o que tem vindo a acontecer ao longo dos anos. Por exemplo, já me senti ignorada em determinados trabalhos simplesmente porque era a única pessoa preta presente, é algo muito óbvio para se desviar da verdade, só não vê quem não quer.

Imagem cedida pela entrevistada.

A verdade é que, com a ascensão do movimento Black Lives Matter, as marcas viram-se obrigadas a se adaptar a esta nova ordem social de contestação e reivindicação e, numa tentativa de escapar a um boicote generalizado aos ideais clássicos, repensaram os seus padrões. “A solidariedade também se deve ao facto de ser uma tendência, é marketing; há que perceber que as vidas negras não começaram a importar agora: elas já importavam antes, importam agora e vão sempre importar” enfatiza a modelo.

Ainda que, na sua opinião, já haja uma “representatividade incrível nas passerelles”, Carla admite que “pode ser mais desenvolvida”, pois acredita que é um caminho que tem de ser traçado ao longo do tempo. “É um processo sistemático”, reflete, “não é uma coisa que aconteça de um dia para o outro”. Enquanto isso, não esconde o seu orgulho ao relembrar um desfile de algumas estações passada no qual “de 30 modelos, 9 ou 10 eram de raça negra, só isso já demonstra que estamos a caminhar para algo muito bom”.

A modelo relembra o ano de 2015 e compara-o com a atualidade, evidenciando que agora “já se nota que, graças à presença do ativismo e à ascensão de movimentos sociais, as marcas começaram a questionar-se quais são os padrões que devem seguir e a perceber que a ‘beleza ideal’ caiu em desuso. Todos são bonitos da forma que são e eu aprecio ver isso nas passerelles”.

Mas a modelo caboverdiana nota que “a indústria ainda tem de ser alterada e há muito a ser alterado”. Como por exemplo, a necessidade de mudanças da lente da discriminação. “Há que fazer uma enorme reforma e ainda falta muito para entenderem que nós não somos diferentes, não possuímos características tão distintas para sermos olhadas como seres anormais ou criaturas alienígenas”.