Profissionais do INEM: a primeira de todas as linhas de combate à pandemia
- Maria Joao Leal Pereira
- 22/01/2021
- Atualidade Portugal Saúde
O teste com resultado positivo, o medo do contágio, o desconforto do equipamento de proteção individual e o apoio psicológico são desafios dos profissionais do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e do dispositivo montado para os apoiar.
Durante a tarde de domingo, 27 de dezembro de 2020, o sol espreitava entre as nuvens, mas dentro da moradia branca e cinzenta da enfermeira, à face de uma rua longa, os últimos dias haviam sido sombrios. Diana Pereira, enfermeira no Centro Hospitalar Médio e Ave – Unidade de Santo Tirso – e no INEM, descobriu, no dia 15 de dezembro de 2020, que estava infetada com SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19. A profissional, isolada no seu doce lar, surge na varanda, de máscara, fato de treino, pantufas vermelhas e com um dos três gatos ao colo, o Pablo.
Segundo os dados do INEM, desde março, num universo de 1.681 profissionais, foram diagnosticados 110 trabalhadores com Covid-19. Até 31 de dezembro de 2020, encontravam-se 8 trabalhadores positivos. |
No exterior, separada pelo portão de entrada cinzento e robusto, Diana Pereira começa por referir que dois dias antes de descobrir que estava infetada, teve alguns sintomas ligeiros, porém nada que a fizesse ficar alarmada. “No dia 14, à noite, fiz um pico de febre associado a mialgias, exacerbação da tosse e dor pleurítica, mediquei-me e no dia seguinte, logo às 8h da manhã, liguei para a Linha Saúde 24”, revela. Encaminharam-na de imediato para o serviço de urgência no hospital da área de residência, Santo Tirso, para ser observada.
Após receber o resultado positivo do teste realizado, “não foi nada fácil pois tinha noção que iria causar uma grande limitação e transtorno na minha vida nos próximos dias”, reconhece. Para além disso, este foi um período em que recebia frequentemente más notícias em relação a pessoas por si conhecidas que estavam, igualmente, infetadas com Covid-19, acrescentando-se o internamento nos cuidados intensivos de um colega de trabalho e, ainda, um falecimento devido à doença. Ainda assim, o que lhe provocou medo e constrangimento foi pensar nas possíveis sequelas com que poderia ficar e o facto de não saber se poderia ter infetado alguém nos dias anteriores. Em relação ao namorado, que, entretanto, chegara de um turno de 24 horas onde realizou também ele o teste, a enfermeira refere que foi prontamente informado e houve necessidade de adotar medidas de prevenção, nomeadamente ausentar-se de casa para evitar o contacto direto. Já no que diz respeito aos pais, e de forma a protegê-los, pensou, num primeiro momento, não lhes comunicar de imediato. “Contudo, não consegui e, no final do dia, informei-os do sucedido, garantindo que iríamos arranjar outras estratégias para manter contacto”, confessa.
Iniciado o período de isolamento, os primeiros dias foram dolorosos para a enfermeira de 34 anos. “Estava bastante sintomática e psicologicamente fui invadida por uma sensação de medo e solidão uma vez que tinha de estar sozinha”. A melhoria dos sintomas foi muito gradual e “para uma pessoa bastante ativa e saudável como eu, de repente ver-me limitada, foi muito complicado de gerir”.
Eram 16h05 quando um carro preto estaciona na rua. A amiga alta de cabelo longo e escuro, decide, à distância, presentear a enfermeira com uma das suas sobremesas preferidas: delícia de chocolate. Aproveita e conta que tem sido muito acarinhada pela família e pelos amigos durante os dias de isolamento. Depois de uns breves minutos, “podemos continuar a conversa”, afirma Diana Pereira com os olhos rasgados de felicidade pelo momento proporcionado.
A 24 de dezembro de 2020, ceia de Natal, Diana Pereira cumpre os dez dias de isolamento. Pela profissão que desempenha, vê-se obrigada a repetir o teste de PCR por zaragatoa nasal e o resultado é novamente positivo. Assim sendo, passa a noite de Natal sozinha em casa e ao contrário da maior parte das pessoas, teve que ficar mais dez dias em isolamento. Contudo, à data, 27 de dezembro de 2020, 13 dias após o 1.º dia de infeção, sente-se física e psicologicamente muito melhor. “Claro que não me sinto totalmente aliviada porque ainda é muito cedo para perceber se eventualmente fiquei com alguma mazela”, conclui.
Inédito e inesperado
Ao longo dos 11 meses em que esteve na linha da frente no combate à pandemia, os maiores desafios prenderam-se, essencialmente, com o desconhecido que esta doença representa e com as novas adaptações no contexto de trabalho. Desde que foi identificado o Coronavírus e a consequente facilidade de contágio, os profissionais de saúde tiveram de adotar equipamentos de proteção individual com os quais até ao momento muitos deles não estavam minimamente familiarizados. “Trabalhar nestas novas condições principalmente nos meses de verão e em locais onde não havia uma correta ventilação transformou-se numa tarefa muito complicada”, reforça a enfermeira. A possibilidade de beber, comer e ir à casa de banho deixou de depender da vontade dos profissionais, uma vez que remover todo o equipamento e voltar a vestir obrigava-os a adiar estas necessidades para apenas um momento, de forma a minimizar o gasto de equipamento, que no início foi extremamente escasso, e deste modo, reduziam também o risco de se infetarem na remoção do equipamento contaminado. A afluência exponencial de doentes ao serviço de urgência também representou um desafio. “Começamos a trabalhar mais e em piores condições, assim como o saber lidar com a evolução repentina dos sintomas e respetivas consequências nos doentes”, confessa.
No que diz respeito às estratégias criadas para diminuir o risco de contágio, Diana Pereira decidiu criar uma zona “suja” em casa. Uma vez que reside numa vivenda, e tem essa possibilidade, começou a entrar e a sair todos os dias pela lavandaria. Conta que tinha um cesto onde depositava a roupa da rua e colocava os sapatos numa estante própria. Usava apenas dois/três casacos que ia alternando, apenas duas carteiras e restringiu ao máximo o uso de acessórios. Para além disto, todas as compras realizadas no supermercado eram desinfetadas com um pano húmido embebido em água e lixívia e todos os alimentos sem casca eram lavados e submersos em água e vinagre ou então com umas gotas de lixívia. “O facto de ser enfermeira e ter bastantes noções sobre controlo de infeção ajudou-me a adotar medidas mais rigorosas no que diz respeito à correta desinfeção dentro de casa e mesmo na minha vida exterior”, ressalva.
Em relação aos pais, pessoas de riscos e ambos com patologias crónicas, “foi muito difícil explicar que nos dias seguintes, meses, ou até mesmo por tempo indeterminado teria que reduzir substancialmente os nossos encontros”. Com os olhos a brilhar, Diana afirma “já não recebo um beijo e um abraço apertado dos meus pais há alguns meses”. Relativamente ao namorado, Pedro Leal, também enfermeiro, explica ter sido mais fácil já que decidiram assumir o risco e alguns meses após o início da pandemia resolveram viver juntos.
A nova prioridade
A premissa basilar da atuação dos profissionais é a garantia de segurança. Durante a pandemia, o uso do Equipamento de Proteção Individual (EPI) é indispensável e obrigatório. É no exterior do Centro Hospitalar Médio Ave – Unidade de Santo Tirso – que Pedro Leal, de máscara e ainda vestido casualmente, quase a dar início a mais um turno de 16 horas, explica que “existem muitas variáveis quando se utiliza o EPI”. Primeiro, enquanto o utiliza, apesar de trabalhar sob a incerteza no que diz respeito às condicionantes do Coronavírus, o enfermeiro de 39 anos afirma que existe alguma sensação de segurança uma vez que se torna quase impermeável, ou seja, poucas são as zonas do corpo que têm contacto com o ar exterior. “O problema surge quando temos que o remover, mas, com a prática passamos a dominar completamente a técnica”, avança. A remoção do equipamento é uma técnica executada a dois, isto é, um retira o fato e outro acompanha todo o processo para tentar garantir que não há risco para o profissional que está a utilizar o equipamento uma vez que toda esta parafernália encontra-se, efetivamente, infetada. “Portanto, tudo aquilo passa a ser lixo biológico”, esclarece Pedro Leal.
“Inquantificável” é como se refere às implicações do uso do equipamento: suor, cansaço, fadiga muscular, desgaste físico e psicológico… “Chegamos a um ponto em que é bastante complicado raciocinar dentro de um fato daqueles”, admite. Perante isto, e no âmbito do INEM, o enfermeiro assegura turnos de 16 a 24 horas, o que pressupõe vestir o equipamento, mantê-lo e retirá-lo inúmeras vezes durante um turno, principalmente no que diz respeito ao transportes de utentes com suspeita de infeção, que estão de facto infetados ou colheita de amostras. Assim, segundo os dados do INEM, entre os dias 27 de dezembro de 2020 e 3 de janeiro de 2021, efetuaram 3.731 transportes de utentes com suspeita de infeção por SARS-CoV-2. No mesmo período foram efetuadas 176 colheitas de amostras pelas Equipas de Enfermagem de Intervenção Primária (EEIP).
Da comunidade aos profissionais: o apoio psicológico
Sónia Cunha, de 42 anos, é a psicóloga responsável pelo Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM. Após uma reunião que terminara às 11h, começa por contar que este importante serviço foi criado em 2004 com o objetivo de atender às necessidades psicossociais das equipas de emergência e da população. Numa altura em que sucedeu o EURO 2004, foi planificada a integração de psicólogos considerando a possibilidade de existência de crises de ansiedade e ataques de pânico. De facto, a integração realizou-se e tendo em conta a casuística verificada e, segundo dados do INEM, realizaram 190 intervenções. Foi assim que se começou a delinear a integração de uma equipa de psicólogos na emergência pré-hospitalar.
O CAPIC apresenta uma evolução assinalável, tanto em número como em áreas de atuação. Atualmente, a nível nacional, são 21 psicólogos localizados nas Delegações do INEM – Porto, Coimbra, Lisboa e Faro – sob três grandes pilares de atividade operacional. Primeiramente, consta a teleassistência, ou seja, a intervenção junto dos contactes do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) com postos de atendimento que são assegurados por psicólogos 24 horas por dia. Quando as chamadas que chegam do 112 detetam necessidade de intervenção ou apoio psicológico, após a triagem, recebem os casos encaminhados pelos colegas do CODU. Atualmente, em contexto pandémico, estão dois, três psicólogos ou até mesmo quatro de serviço a nível nacional. Nesta área de atuação, por via telefónica, a intervenção dos psicólogos diz respeito a casos de comportamento suicidário, crises de ansiedade e situações com potencial traumático. Para além disto, existem situações de emergência médico-legal, por exemplo, a violência doméstica e o assédio sexual.
Perante o gráfico disponibilizado pelo Sistema Nacional de Saúde (SNS), em 2019 o CAPIC atendeu 20.104 chamadas, o que representa uma média diária de 55 chamadas por dia. Para o número de chamadas recebidas, foram registadas 6.995 ocorrências, o que representa uma média diária de 19 ocorrências. Em 2020, perante a existência de dados apenas até agosto, o serviço atendeu 13.695 chamadas. |
O segundo pilar de atuação, o terreno, corresponde às Unidades Móveis de Intervenção Psicológica de Emergência (UMIPE) – constituídas por um psicólogo e por um técnico de emergência pré-hospitalar – que estão sediadas nas delegações e a partir das quais os meios de emergência podem deslocar-se a todos os pontos do país, sendo necessária uma primeira abordagem para acompanhar o transporte ao hospital. Aqui surgem as situações de morte inesperada ou traumática, situações de tentativa de suicídio eminente e habilitações psicopatológicas.
Em 2019, a UMIPE interveio em 610 ocasiões, o que significa uma média mensal de 51 ocorrências. Já em 2020 intercedeu 842 vezes, o que resulta numa média mensal de 70 ocorrências. Em relação a 2021, registaram, em quatro dias, 23 intervenções. |
O terceiro pilar recai sobre o acompanhamento e intervenção em situações de crise com os profissionais de emergência do INEM, mas também do Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM) constituído pelos Bombeiros, Cruz Vermelha, pelas próprias forças de autoridade e pelas unidades de saúde. Portanto, a primeira intervenção em crise é feita pelo profissionais do CAPIC no local e, posteriormente, a continuidade é assegurada pelos serviços do Sistema Nacional de Saúde.
“Perante as diversas áreas de atuação e no contexto da pandemia, existiram diferentes fases ao longo destes meses”, antecede Sónia Cunha. Numa fase inicial, observaram uma redução dos pedidos de ajuda uma vez que as pessoas ainda estavam na expectativa e em contenção. Em meados de abril, registaram paulatinamente um aumento e, atualmente, estão com um índice de chamadas equivalente a 1% superior ao ano passado. Ao longo dos meses, os pedidos de ajuda relacionam-se com os efeitos do isolamento que muitas vezes não são mensuráveis e que, por isso, não conseguem quantificar. Existiu, assim, um agravamento das depressões, das ideações suicidas, da diminuição dos acompanhamentos da saúde mental e das crises de ansiedade.
Desde que surgiram os primeiros casos em Portugal e de forma a conseguir dar uma resposta mais robusta e organizada, o reforço da linha de apoio de intervenção psicológica, concretamente no CODU, foi um dos reflexos da pandemia. Possuíam, em permanência, dois psicólogos por turno, mas, como resposta à pandemia e à redução do contacto presencial, têm quatro psicólogos de serviço e por vezes até mais, consoante o período de maior fluxo de chamadas.
Para além disto, dentro do próprio serviço, CAPIC, criaram uma sub equipa para reduzir o número de elementos que tinham contacto com os colegas e profissionais e para permitir e promover a confidencialidade e a privacidade. Designada por Apoio Psicossocial ao Profissional na Covid e constituída por oito psicólogos do serviço, visa acompanhar os profissionais que são identificados para isolamento, os que vão realizar o teste Covid ou, obviamente, os casos positivos. Podem, assim, monitorizar com mais atenção e cuidado o estado emocional dos profissionais.
Sónia Cunha afirma, convictamente, que “a pandemia destaca-se de outras situações de crise já vivenciadas”. Em primeiro lugar, no que diz respeito aos profissionais de saúde, o facto de não se circunscrever ao contexto profissional. Durante estes meses, a resposta tem de ser dada no ambiente de trabalho mas também na sua esfera pessoal, portanto, é crucial negociar diferentes contextos. Os profissionais estão habituados a gerir o stress e as exigências do trabalho, mas não em simultâneo com as implicações alargadas às famílias. “Este foi, sem dúvida, o maior desafio”, sustenta.
Subjacente está o prolongamento do covid no tempo, o desgaste físico e psicológico na utilização dos EPI e o medo do contágio. São muitos meses de contínua exigência e adaptação. Para além disto, no caso do INEM, os profissionais deslocam-se a espaços que lhes são estranhos e, por isso, não estão protegidos como estariam no hospital. Se já é uma exigência do dia a dia, neste cenário de pandemia torna-se mais complexo.
Para Sónia Cunha o maior desafio prende-se com as implicações após a pandemia. “Estamos a alguma distância de considerarmos que podemos voltar às nossas rotinas, mas preocupa-me o impacto e como vamos recuperar e restabelecer rotinas após tudo isto”, realça com a voz trémula. Apesar de vivermos num contexto pandémico há vários meses e isso refletir-se no estado anímico, o maior medo recai sobre como se conseguirá descomprimir. “As faturas pagam-se depois”, finaliza a psicóloga da Delegação do Porto.
O regresso à linha da frente
A 4 de janeiro de 2021, o INEM iniciou a vacinação contra a Covid-19, tendo recebido para o efeito um total de 1.174 vacinas destinadas a profissionais prioritários. “É de facto uma motivação extra”, afirma Diana Pereira que, também neste dia, enfrenta o primeiro dia de trabalho após debelar a covid-19. São 14h30 e o carro assinala 3ºC. De gorro, casaco preto, calças de ganga e sapatilhas, a enfermeira sente-se preparada e acompanhada pelo espírito de missão. “Felizmente adoro o que faço, mesmo que por vezes o faça em situações com poucos recursos e com uma sobrecarga física e emocional grande”, desabafa. Neste dia, segundo o boletim epidemiológico da Direção Geral de Saúde (DGS), existiam 2407 novos casos, passando assim a contabilizar um total de 80008 infetados pelo coronavírus desde o início da pandemia.
Apesar de, aparentemente, encontrar-se imune, ainda que não saiba por quanto tempo, o surgimento de novas estirpes, das quais pouco se sabe, provoca-lhe desconforto e, inevitavelmente, medo de se reinfetar. A enfermeira sublinha que, apesar de já acontecer antes de se encontrar infetada, ficará mais atenta a todas as precauções e reforçará os cuidados: “Os meus receios neste momento continuam a estar relacionados com as pessoas da minha família que possuem comorbilidades mais suscetíveis à doença e às consequências mais graves”, enfatiza.
Relativamente ao início do atual mês, janeiro de 2021, o futuro não se prevê muito risonho. Diana Pereira sustenta que a subida constante do número de casos é a paga da fatura do incumprimento dos cuidados que seriam de esperar no Natal e passagem de ano. “Isto é um “déjà vu” que poderia ter sido altamente evitado”, termina.
*Fotografia de Destaque: Marginal Vila do Conde
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