O cinema e a representação LGBT por João Pedro Rodrigues: “Se não vivêssemos em liberdade, não podia fazer os filmes que faço”
- Maria Joao Leal Pereira
- 30/11/2020
- Atualidade Cinema Geração Z
As figuras representativas LGBT+ vão surgindo lentamente nas mais diversas áreas sociais e das artes e cultura, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. No cinema do português João Pedro Rodrigues há uma insistência nessa representação ainda estigmatizada. “O padrão social só se transforma com leis”, defende o realizador.
João Pedro Rodrigues é um cineasta português reconhecido internacionalmente. Nasceu em Lisboa em 1966. Estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema e, em 1997, estreou o primeiro trabalho internacional enquanto realizador: a curta-metragem Parabéns! que lhe valeu o Leão de Prata no 54º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em Itália. Este prémio foi o prenúncio de muitos que lhe sucederam nos tão aclamados festivais de cinema internacionais, como por exemplo Cannes, em França, e Berlim, na Alemanha.
O contacto permanente com os conceitos que vão surgindo, como a própria sigla LGBT (que se refere às diversas orientações sexuais: homossexualidade – Lésbicas e Gays – bissexualidade, transsexualidade, travestismo e ainda pansexualidade, assexualidade, entre outras), é importante e necessário. Perceber que, de facto, o surgimento das múltiplas comunidades LGBT pelo mundo foi fundamental para garantir a segurança dos cidadãos que não se identificavam como heterossexuais. O universo LGBT+ enquanto tema dos filmes de produção portuguesa aconteceu depois da revolução dos cravos, em 1974. No entanto, João Pedro Rodrigues salienta, apreensivo, que “em Portugal, mesmo depois do 25 de Abril, nunca houve uma verdadeira revolução sexual”, acrescentando, ainda, que, em relação à comunidade LGBT, “apesar de ter havido movimentações, foram bastante reprimidas”. Num tom assertivo, destaca, ainda, que Portugal tem condições políticas para conseguir criar as suas obras fílmicas. “Se não vivêssemos em liberdade, não poderia fazer os filmes que faço”.
O realizador português acredita que “o cinema é a melhor maneira de perceber o mundo”, já que a maior parte dos seus filmes “parte de ideias do real”. Exemplo disso é a longa-metragem Morrer como um Homem, que abriu, em Lisboa, no dia 17 de setembro de 2009, a 13.ª, do Queer Lisboa, Festival de Cinema Gay e Lésbico. Anteriormente já tinha passado pelo Festival de Cinema de Cannes, por Toronto, no Canadá, e Nova Iorque, nos Estados Unidos.
Para realizar o filme, João Pedro Rodrigues sublinha a importância de conhecer a fundo os temas que se aborda. No caso dele, de como foi fundamental partir de histórias verdadeiras. “Fiz um trabalho prévio de pesquisa e investigação, onde a partir do que as pessoas me contaram, histórias verdadeiras, construí uma ficção”, explica o realizador.
Em Morrer como um Homem, parece existir uma fusão parcial entre realidade e ficção, uma vez que Fernando Santos, ator que interpreta a personagem principal, Tonia, um travesti, participa em espectáculos no club “Finalmente”, em Lisboa, como Deborah Krystall. Tal como destaca João Pedro Rodrigues, é “um filme com atores que não o são e travestis que se interpretam a si próprios”. O enredo inclui, ainda, histórias e testemunhos com o extenso espectro da sexualidade, por exemplo, Maria Backer, “que olha para o mundo de uma forma bastante diferente de Tonia, revelando o sentido da vida e o segredo das transfigurações”. Para além disto, o artista lisboeta assume que um dos objetivos claros na sua narrativa era “olhar para as personagens sem as julgar”.

O cinema português tem contribuído para uma maior representatividade da comunidade LGBT+, como reforça João Pedro Rodrigues. “As personagens LGBT tornam-se presentes e, por isso, significa que elas existem”. Contudo, destaca que “os travestis e transexuais ainda têm um longo caminho a percorrer”. Ele deixa, ainda, bem clara a sua perspetiva ao afirmar, convictamente, que “o padrão social só se transforma com leis”. Ele exemplifica enunciando dois casos. Por um lado, no que diz respeito ao debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aprovado em 2010 na Assembleia da República, em Portugal. E, ainda, a recente declaração do líder máximo da Igreja Católica, Papa Francisco, no documentário Francesco: “Os homossexuais têm direito a formar uma família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser excluído ou forçado a ser infeliz por isso”.
Nesta lógica, é de salientar que “de certa forma a religião pode ser um entrave na afirmação da sexualidade do indivíduo”. Exemplo disto é a forma como morre Tonia, a personagem principal da longa-metragem, que vai contra si mesma porque acredita que Deus não a aceita como mulher. Por isso, toma a decisão de Morrer como um Homem. O realizador destaca que o próprio Fernando Santos, representativo de Tonia, “é crente e isto é muito importante na vida dele”. Significa, assim, que há muita coisa na personagem “que vem do próprio Fernando Santos”. Para João Pedro Rodrigues isto é “maravilhoso” uma vez que a personagem deixa de ser meramente ficcional e passa a ser um retrato real.
Apesar de pertencer a uma construção cinematográfica, há uma essência verdadeira, funcionando quase como um documentário. Assim, há sempre um fundo de verdade na maneira como a personagem se comporta: ao mesmo tempo que é Tonia, é também Fernando Santos.
Quando conversávamos, às 11h de uma manhã de sábado, dia 7 de novembro de 2020, através de uma chamada telefónica, João Pedro Rodrigues referia-se às eleições americanas [tema na atualidade noticiosa] , num contexto em que até então era desconhecido o vencedor. Nesse embalo, ele recorda-se, de um feito histórico nesse país, quando no dia 3 de novembro de 2020, “foi eleita a primeira transsexual”, Sarah McBride, ativista de 30 anos, marcando-se um novo passo para a sociedade mais justa e equitativa.
No caso de Portugal, país considerado “gay friendly” pelo Spartacus International Gay Guide, segundo uma listagem divulgada no dia 25 de fevereiro de 2019, a luta pela igualdade tem-se verificado. A partir de 2001, efetivamente, com a publicação da lei que permite a união de facto entre casais do mesmo sexo e a realização da primeira edição do Porto Pride, a primeira manifestação com visibilidade na cidade. Também a ação da associação Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero (IGLA), fundada em 1996 por um grupo de ativistas homossexuais, revelou-se frutífera, na medida em que contrariava a discriminação e o isolamento a que os homossexuais estavam suscetíveis. A sequência de dois acontecimentos trágicos, em Portugal, (em 2006, o espancamento até à morte de Gisberta Salce Junior, uma mulher transsexual; e, em 2008, a descoberta do corpo de Luna num contentor de lixo) despertou a comunidade LGBT+ para a urgência de se fazer ouvir de uma forma mais efetiva. Para o cineasta o preconceito está na génese de muitos acontecimentos como estes e é “muitas vezes traduzido em atos de violência”.
O realizador, o qual é um apaixonado pela sétima arte, acrescenta também que “o cinema tem um papel social muito importante”, a par da literatura, pintura, música, entre outras.
É uma relação histórica esta a da arte com a intervenção social. Já entre os anos 335 a.C. e 323 a.C., o filósofo Aristóteles foi um dos primeiros a pensar na função da arte. No seu livro seminal Poética mostra-nos como a Tragédia enquanto género nobre da representação leva os homens a identificarem-se com as personagens, ou seja, a refletirem sobre as suas atitudes, passando, consequentemente, pelo processo de catarse, retratado na sua obra Arte Poética, que representa a purificação das almas. O mesmo acontece com a imagem em movimento. Espera-se, assim, que um espetador não saia impune de uma sala de cinema, pois muitas vezes “as preocupações sociais são retratadas no grande ecrã”. Para João Pedro Rodrigues isto é muito importante já que “o cinema é a melhor maneira de perceber o mundo”.
