*O contexto e o ambiente dos jovens LGBTQIA+ muitas vezes espelham o preconceito social geral
- Ines Pinheiro
- 20/01/2023
- #Social Atualidade
Sob os pilares da binariedade de género sustentada pela sociedade, Camões, Nicolas, Joni e Salomé concordam que ainda existe uma grande lacuna por parte das gerações mais antigas no que diz respeito à sua aceitação da comunidade LGBTQIA+ e insistem na necessidade de uma maior educação e literacia.
[Texto: Inês Pinheiro e João Ferreira]
Camões, de 21 anos, é estudante de mestrado de História e Património na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), e identifica-se como uma pessoa não binária, utilizando os pronomes elu/delu. Camões é o seu sobrenome, não possuindo ainda um nome social, já que não se identifica pelo nome que lhe foi atribuído à nascença. “Durante toda a minha vivência, sempre fui uma pessoa com comportamentos não categorizáveis no binarismo de género”, comenta, “e isso colocava-me numa situação de questionar se efetivamente encaixava nesse espectro”. Camões sublinha que, após diversas pesquisas, percebeu que a sua vivência “existia para além desta dualidade” do feminino e do masculino, um binarismo mantido pela sociedade.
Elu sempre tratou o seu género e a sua sexualidade de forma fluída, “passível de mudar com o tempo e influenciado pela sociedade no geral”.
“De ressalvar que não existe um momento específico de ninguém para se identificar com algo. É um conjunto de vivências e informações que nos fazem entender quem realmente somos”.
Camões
Apesar do não-binarismo ainda não estar integrado na legislação portuguesa, Camões aponta “os avanços que o campo legislativo tem vindo a fazer relativamente à proteção legal de pessoas trans” e espera que o mesmo seja feito num futuro próximo para pessoas não binárias.
Por si só, a identidade de género é, de acordo com a CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género), a “experiência interna e individual sentida por cada pessoa relativamente ao género com que se identifica, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença”. Esta não precisa de depender de uma mudança de aparência ou do corpo da pessoa – cada qual exprime a sua identidade livremente, através da fala, roupa, etc. Ainda, “ao contrário da identidade de género, a expressão de género corresponde ao que pode ser observado do exterior”. Já a sexualidade em nada se relaciona com a identidade de género. A sexualidade ou orientação sexual é facilmente definida pela CIG como “atração afetiva e/ou sexual por pessoas de sexo diferente, do mesmo sexo ou de mais do que um sexo”.
A não conformidade na adesão a este sistema binário de género e unilateral de sexualidade levou a uma grande variedade de identidades que devem ser reconhecidas igualmente.
Nicolas dos Anjos – Nico para os mais próximos – é estudante de Letras – Língua Portuguesa na Universidade Estadual do Amazonas e identifica-se como sendo gender fluid (ele/dele e ela/dela), termo que faz parte da identidade não binária. Aos 19 anos de idade, Nicolas afirma que sempre sentiu “que não era 100% menino, ou cis”, sendo designada homem ao nascer (ou AMAB – assigned male at birth).
A identidade gender fluid é definida, de acordo com Dicionário Merriam-Webster, como “de, relacionado a, ou ser uma pessoa cuja identidade de género não é fixa”. Ou seja, a sua identidade de género, tal como indica o nome, é fluida, e a maneira como é expressa socialmente muda de acordo com a pessoa. Assim, o indivíduo pode escolher se identificar, por exemplo, mais com um género do que o outro, ou jogar com os géneros masculino e feminino simultaneamente e de forma diferente, mudando de tempos em tempos de acordo com o que este sente. |
Nico nunca foi pessoa de ficar numa “caixinha” e sempre questionou a ideia de binariedade e o que, para ele, significava o seu género.
“Foi e ainda é um processo longo e contínuo. Segui com muitas pesquisas, sempre gostei muito de pesquisar sobre aquilo que tenho interesse. E aí eu tinha meus preconceitos que fui desconstruindo com o tempo e entendendo o que mais se encaixava comigo.”
Nicolas dos Anjos
Na época, os termos “não binário” e “gender fluid” não eram tão popularizados como agora, então, aos 12 anos de idade, Nicolas não sabia expressar o que sentia. Assim, informou-se através das redes sociais, fóruns e vídeos disponibilizados na internet – os únicos recursos prontamente disponíveis para um jovem na altura – para alargar o seu conhecimento.
É necessário destacar a importância tanto da fácil disponibilidade destes recursos quanto da representação mediática de indivíduos da comunidade LGBTQIA+. Isto não só para jovens queer, mas também para informar e integrar toda a população sobre estes tópicos, já que esta visibilidade criará um ambiente mais inclusivo.
Nico começou por assistir vídeos no YouTube de mulheres transgénero e pessoas não binárias como Mandy Candy e Bryanna Nasck. E ao contar aos seus pais sobre a sua identidade de género, utilizou a criadora de conteúdo Rintaichou para exemplificar como este se sentia “porque ela podia se mostrar como menina, mas sem abandonar ser um menino” – simplificando a sua experiência.
Joni Freitas é estudante de Biorecursos no Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP). Apesar de querer tomar hormonas e fazer uma mastectomia, o mesmo não se identifica a 100% como um homem transgénero por não se conseguir ver como um homem aos olhos da sociedade. Aos 17 anos, o mesmo começou a questionar a sua identidade de género devido à sua namorada, que na altura lhe deu o empurrão para tal: “ela notou a minha disforia nos nossos momentos mais íntimos e quando fui confrontado com isso, sabia que fazia sentido”. Até lá, esteve sempre em negação quanto ao facto de ser homem, uma vez que achava o género masculino “agressivo, tóxico e opressor”.
A disforia de género é, de acordo com o National Health Service (NHS) um “termo que descreve a sensação de desconforto que uma pessoa pode ter por causa de uma incompatibilidade entre o seu sexo biológico e a sua identidade de gênero”. Este pode ser de tal forma intenso que “pode levar à depressão e à ansiedade e ter um impacto prejudicial no dia a dia”. |
Como refere Joni, “uma pessoa trans é uma pessoa que se identifica com o sexo oposto [ao atribuído à nascença], tendo ou não passado pela transição, tendo ou não pronomes do referido sexo (…) É mais interno do que externo”.
“Não é genitália que define género, não é comportamento que define género, o género é literalmente uma construção social”.
Joni Freitas
Joni é acompanhado em Coimbra e declara que o tempo de espera é o mais difícil no processo. Apesar de ainda não ter feito nenhum tipo de transição clínica, o mesmo refere que a maneira como se perceciona melhorou quando começou a usar binders – uma peça de vestuário que achata o tecido mamário – permitindo que tenha um “flat chest”. “Fez-me sentir tão, mas tão melhor”.
Já Salomé Campos é estudante de História da Arte na FLUP e identifica-se como homossexual. Aos 12 anos, Salomé beijou pela primeira vez um menino, mas sentiu que algo não estava certo. Contudo, continuou a relacionar-se com outros rapazes, mas sempre com a sensação de algo estar errado. Aos 16 anos de idade, Salomé assumiu-se como lésbica.
A homossexualidade é definida como: “atração ou interesse sexual pelo mesmo sexo” no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Esta definição de homossexualidade está ligada à atração pelo mesmo sexo, o que pode ser dado como a única diferença entre uma pessoa homossexual e uma pessoa heterossexual. |
A comunidade LGBTQIA+ não só ajuda os indivíduos a “encontrarem pessoas como eles e a se sentirem incluídos”, enfatiza Salomé, como também “representa o amor sem barreiras e de como todos somos mais felizes sendo pessoas livres de amarmos e sermos quem nós quisermos”. Diz que, para ela, a comunidade se tornou um refúgio que a fez perceber que não estava sozinha, admitindo tornar-se “uma pessoa mais livre e feliz”.
O pós coming out
De acordo com um estudo realizado pela CIG a abril de 2022, o contexto familiar dos jovens LGBTQIA+ muitas vezes espelha o preconceito social geral. Além disso, a falta de apoio coloca-lhes maiores dificuldades na sua própria aceitação, levando-os a “uma saúde mental mais degradada”.
Em relação ao ambiente familiar em torno da identidade de género de Camões, este “foi e ainda é complicado”, tendo dificuldades em relação à sua aceitação. Num seio familiar conservador, ser associade ao seu sexo biológico “dificulta que essa visão seja desconstruída”, mas ainda tem esperança que a situação inverta. No entanto, Camões não teve qualquer problema em relação às suas amizades e destaca que “se alguém gosta de ti pelo que realmente és, não vai ser a identidade de género que será um entrave para a relação”. Sublinha-se ainda que, na sua opinião, o próprio coming out “nem deveria ser necessário”.
O processo de coming out de Salomé, no seu entender, foi “assustador, mas rápido (…) para as pessoas eu estava bastante confiante em mim, mas sempre pairava aquele medo de não ser aceite e acabar por ser excluída do meu grupo de amigos”. Apesar de ter sofrido bastante com inúmeros episódios de homofobia, principalmente na escola que frequentou no ensino secundário, a jovem “colocou” na cabeça a ideia bem vincada de que “se gostas ainda bem, se não gostas também não fazes falta”. Esta mentalidade levou a que se assumisse facilmente num país que “ainda se encontra num processo longo de aceitação”.
Já com exceção do pai, assumidamente homofóbico, toda a família e amigos de Joni o apoiaram ao máximo: “A minha mãe e os meus avós só querem que eu seja feliz”.
O caminho para a aceitação
De acordo com a organização “The Trevor Project”, 75% dos jovens da comunidade LGBTQIA+ sofreram discriminação pelo menos uma vez devido à sua orientação sexual ou identidade de género. Dos quatro jovens entrevistados, todos eles já experienciaram algum tipo de preconceito. Salomé detalha comentários homofóbicos, insultos e gestos ofensivos direcionados a ela publicamente e Nicolas frequentes microagressões em relação à sua sexualidade. Tanto Joni como Camões e Nico apontam, também, para episódios de misgendering e, também, a falta de sensibilidade.
misgendering – o ato de se referir a um indivíduo utilizando palavras que não refletem a sua identidade de género. |
“O mais doloroso será mesmo os episódios em que as pessoas dizem respeitar a minha identidade de género e os pronomes pelos quais me identifico, mas não demonstram qualquer empatia no discurso corrente que têm”, comenta Camões, “tratando-me pelo meu deadname e por pronomes aos quais não me sinto confortável”.
A sociedade que experienciamos funciona pela binariedade de género, do masculino e do feminino, e pela heteronormatividade – características que dão origem a ambientes instáveis para jovens LGBTQIA+ navegarem.
Joni comenta que a geração portuguesa mais jovem percebe melhor esta realidade. “São as gerações mais antigas que têm homofobia e transfobia internalizada e não percecionam o conceito de identidade de género como nós”, apesar de existirem exceções. Salomé exprime que esta discriminação é mantida sobretudo por “pessoas tristes e frustradas, mas também muitas são assim por causa da educação que levaram”, sublinhando que são os jovens que precisam “de mudar esse ciclo” para criar uma “sociedade livre de preconceitos, sem qualquer espaço para ódio”.
“Comunitariamente, a desconstrução tem vindo a ser feita, mas ainda é um longo caminho a percorrer porque Portugal continua a ser um país imensamente preconceituoso e conservador”.
Camões
Nico concorda que isto é, muitas vezes, por falta de informação, já que estes indivíduos “têm um conceito fixo” e ou “não querem ver o novo ou têm dificuldade de desmistificar”. Camões assinala ainda que se esta informação estivesse disponível de igual forma para todos, “o conservadorismo poderia ser dissipado e a vivencia de todes mais fluida e prazerosa” – já que reagimos, em primeiro lugar, “com sentimento de estranheza” ao desconhecido.
Para isto ser concretizado, é necessária “a iniciativa de saber mais sobre as identidades de género partir dessas mesmas pessoas”. Além disso, tanto Camões como Nicolas ressaltam que é preciso ouvir os indivíduos da própria comunidade para realmente “entender o que essas pessoas sentem”. “Mesmo que não seja o que você sente e pareça estranho, pense que as pessoas são plurais e o mínimo que elas querem é respeito e compreensão”, acrescenta Nicolas, “mente aberta é o primeiro passo”.