O difícil caminho na prevenção e tratamento da toxicodependência

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O difícil caminho na prevenção e tratamento da toxicodependência

A toxicodependência, em Portugal, tem atingido números que já há muito não se viam. Um estudo realizado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), em 2019, mostra que se registaram 63 mortes por overdose e outros 262 óbitos de pessoas que, ao serem autopsiados, se constatou terem substâncias tóxicas no organismo. As mortes causadas por cocaína tinham aumentado pelo terceiro ano consecutivo. 

[Investigação de Catarina Lemos, Diogo Costa, Matilde Silva e Rui Ribeiro]

Portugal, neste momento, conta com diversas estruturas de ajuda e combate às dependências, muitas delas financiadas pelo Ministério da Saúde, e também com uma entidade totalmente direcionada para este problema, o SICAD.

José Nunes, o Covilhã, sobre a sua recaída no vício.

José Nunes, tem 45 anos e é toxicodependente há 17 anos. Começou o seu percurso na área das dependências em 1994 e, na altura, não tinha consciência das consequências que teria de acarretar devido à curiosidade e experimentação. Mais tarde, essa experiência tornou-se um vício: “Comecei, como todos, a experimentar a tirar uma passa, gostei da sensação e comecei a querer mais. Depois já era um charro inteiro, depois um já não chegava, tinha de ser dois. E depois a ganza e a erva já não tinham o efeito que queria e foi aí que passei para as drogas mais fortes, como heroína e cocaína.” 

Covilhã, como é apelidado pelos amigos, demorou alguns anos até perceber que estava realmente dependente das substâncias ilícitas e precisava de ajuda. “Eu achava sempre que nunca estava dependente e que só consumia porque queria”. Apenas quando começaram os efeitos da ressaca, ganhou consciência de que estava realmente viciado e precisava de ajuda, não sendo esta vida a que desejava, nem que tinha idealizado para si. “Percebi que estava viciado quando não consumia durante algumas horas, ou não tinha dinheiro para comprar, e ficava com grandes ressacas, parecia que ia morrer”. José podia ter tido ajuda de forma mais rápida e imediata, se não fosse a vergonha que sentia por estar naquela situação. “Eu sabia que precisava de ajuda, mas tinha muita vergonha e sentia-me muito fragilizado”.

Foi apenas em meados de 2010 que Covilhã ganhou coragem e, finalmente, foi à procura de ajuda. Começou aqui a caminhada. José deu o passo mais importante do seu caminho – reconhecer que precisava de ajuda. Contudo, foi nesta precisa altura que as dúvidas começaram a surgir – que ajudas teria, como chegava até elas, que direitos teria. “Quando decidi ir à procura de ajuda, fui completamente às escuras e foi aí que começou um novo processo para mim. Eu não tinha noção das ajudas que teria e de que forma as podia ter também.” 

José Nunes é conhecido como “Covilhã”, devido ao seu processo de desintoxicação ter sido feito na Covilhã.

Segundo o SICAD, que tipos de ajuda teria Covilhã?

O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) garante o desenvolvimento de políticas de prevenção e combate à toxicodependência. A principal missão deste serviço é promover a redução de consumo de substâncias psicoativas, a prevenção de comportamentos aditivos e a diminuição das dependências. Em concreto, lê-se no site do serviço, compromete-se ao planeamento e avaliação dos programas de prevenção, redução de riscos e minimização de danos (RRMD), à reinserção social, ao tratamento do consumo de substâncias psicoativas e à prestação de apoio técnico e administrativo. Garante, ainda, as infraestruturas necessárias ao bom funcionamento das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, efetuando diagnósticos interventivos no âmbito nacional e definindo, desta forma, as prioridades e as intervenções.  

Com estes objetivos em vista, o SICAD dispõe de uma linha de apoio, a Linha Vida SOS Droga, assegurada por psicólogos clínicos e ativa todos os dias úteis, das 10 às 18 horas. Nesta vertente são prestados serviços de informação, aconselhamento e, em último caso, encaminhamento do paciente para estruturas de saúde, de forma a realizar uma consulta avaliativa. Estas estruturas têm acordo com o SICAD e, dependendo do resultado, o tratamento é iniciado e são assim reencaminhados para centros de tratamento perto das suas áreas de residência. 

Mas, será que isto acontece sempre desta forma tão linear? O #infomedia foi à procura de repostas.

Segundo Paula Frango, psicóloga clínica da saúde no SICAD, este é “a instituição responsável pela execução das políticas na área dos comportamentos aditivos e dependências”,  que conta com o apoio do Ministério da Saúde. De acordo com a psicóloga, “a Santa Casa da Misericórdia dá à Secretaria de Estado da Saúde uma verba anual, que depende do Orçamento de Estado, assim como dos Jogos Sociais da Santa Casa da Misericórdia. Depois essa verba é dada ao SICAD, para financiar projetos mediante candidaturas”.

As três áreas de intervenção da toxicodependência

Em termos de áreas de intervenção, segundo Paula Frango, “existe a prevenção, o tratamento, a redução de riscos e minimização de danos e a reinserção social”.  A operação é feita no terreno, com uma rede nacional coesa de respostas integradas, mais precisamente no tratamento e reinserção social. O tratamento é feito nos Centros de Respostas Integradas (CRI), “juntamente com a reinserção social, que são programas que apoiam as pessoas nas diferentes áreas pessoais, na reabilitação social e na criação de emprego”, com equipas por todo o território nacional. “As respostas na área dos comportamentos aditivos são dadas, sobretudo, pelas IPSS financiadas pelo SICAD, nas várias áreas de prevenção e redução de riscos e reinserção social, e são dadas pelos serviços públicos que existem, através dos CRI e das equipas de tratamento”, referiu a psicóloga. No entanto, o encaminhamento depende do método pelo qual a pessoa peça ajuda, seja pela linha telefónica, através do médico de família, por IPSS direcionadas para uma vertente social ou através do email da instituição.

Em relação às respostas de Redução de Riscos e Minimização de Danos,  Paula Frango confirma que “são imediatas”, pelo menos “quase todas elas”. Existem, na área de tratamento, segundo a psicóloga, respostas gratuitas em todo o país, comparadas “a uma espécie de centro de saúde”. São feitas consultas , segundo o SICAD, “num curto espaço de tempo, com uma abordagem biopsicossocial”. 

O tratamento pode ser de desintoxicação em Unidades de Internamento para a desabituação física”, onde o internamento dura apenas uma semana, afirmou. Quando um toxicodependente começa um tratamento deste tipo, não tem de ser iniciada uma “abstinência ao consumo”. Os modelos podem variar, dependendo da necessidade de cada utente e do modelo adotado. Por exemplo, pode iniciar com consultas de psicologia e só depois passar por um processo mais duradouro de abstinência. Os programas de redução de riscos são vários, englobando “diversas intervenções com dezenas de programas distintos e programas de substituição opiácea (metadona)”, ou seja a pessoa tem a sua dose de metadona prescrita por um médico e é acompanhada por um enfermeiro.

A metadona é um narcótico utilizado no tratamento de toxicodependentes viciados em heroína. Funciona de forma similar à morfina e, para além disso, o facto de não ser uma substância injetada, mas consumida por via oral, evita sintomas idênticos aos sentidos com a heroína, como êxtase e felicidade ou tristeza extrema, ajudando no combate da dependência.

No entanto, há zonas do país que não têm tanto apoio de IPSS como outras, apesar de garantirem que as respostas são rápidas. O apoio às partes mais fragilizadas é “gerido, regionalmente, por cada Administração Regional de Saúde”. Nos serviços do interior do país, onde as localidades são mais dispersas, existe o que Paula Frango denomina de “Consultas Descentralizadas”, ou seja, os técnicos dos CRI dirigem-se aos centros de saúde e tentam “prestar resposta ou tipificam todas as respostas”. São dadas opções à pessoa residente, sendo que cabe ao próprio utente escolher o “que lhe é mais conveniente”.

Por exemplo, se alguém ligar para a linha e disser que é de Aveiro, da localidade x, é suposto ir à base de dados e ver em que zonas de Aveiro tem a hipótese de marcar a consulta. Os utentes têm de fazer a marcação, para terem acesso a uma consulta, sendo que a resposta, muitas vezes, é de longa duração e as vagas são poucas ou, até mesmo, inexistentes.

Segundo a SAOM, que tipo de ajuda teria Covilhã?

Designada como Serviços de Assistência Organizações de Maria (SAOM), esta associação, segundo Nicole Martins, enfermeira da IPSS, é “uma resposta de primeira linha”, à qual os- utentes chegam com consumos ativos. O objetivo principal foca-se na Redução de Riscos e Minimização de Danos, através da  troca de material de seringas, por exemplo, e das dosagens de metadona. De modo a prestar auxílio à comunidade toxicodependente, a associação dispõe de uma estrutura móvel que permite uma ajuda mais imediata e direta.

Os apoios financeiros à SAOM provêm da Segurança Social, o material de consumo vem da Associação Nacional das Farmácias e os canecos para consumo são provenientes do SICAD. O refeitório e lavandaria ficam a encargo da IPSS. Qualquer projeto é financiado a 80%, sendo que a associação cobre a restante percentagem.

As pessoas com comportamentos aditivos têm, normalmente, conhecimento da SAOM através de utentes já habituais da instituição ou pelas intervenções de rua feitas pela IPSS. Lá, acabam por conhecer histórias de outras pessoas com dependências e do tipo de ajudas que recebem. Todas as intervenções da SAOM são in loco, como os “serviços de enfermagem e o encaminhamento para análises, ou seja tudo o que seja a nível de saúde”, refere a enfermeira da unidade móvel.

A maior parte dos consumidores utentes da IPSS são consumidores de cocaína e heroína. No entanto, acrescenta, o objetivo  da IPSS “não é que o consumidor deixe de consumir, mas sim providenciar a melhor prevenção do consumo, mais equilibrado a nível físico e psicológico”. 

As consultas com enfermeiros ou psiquiatras acontecem uma vez por semana. Para a disponibilização da metadona, é necessária uma autorização médica e um enfermeiro. A dosagem é feita conforme as indicações do médico, em que “o objetivo é que deixe de consumir heroína”. Não havendo enfermeiro disponível, os utentes dirigem-se a um consultório de ajuda, sendo que o processo é mais demorado. 

Kits de prevenção na propagação de doenças. I Fotografia por Rui Ribeiro

No acompanhamento de rua, as primeiras interações com algum toxicodependente novo são feitas através das trocas de materiais e da distribuição de kits para “prevenir a propagação de doenças”. Os kits englobam preservativos, seringas, alumínio e canecos, tudo comparticipado pelo SICAD. A enfermeira refere que o mais importante é “ganhar uma relação próxima com os utentes”, através da “aceitação do modo de vida, pensando na igualdade, sempre respeitando as opções escolhidas de cada um”.

No trabalho de rua, a carrinha da SAOM tem sempre o mesmo horário de funcionamento (das 15h30 às 17 horas), todos os dias, ao lado da estação de São Bento. Aí, os utentes registados na associação podem ir buscar as doses de metadona, tomada com sumo ou água, assim como obter os medicamentos prescritos pelo médico da IPSS. Se o utente desejar, a associação controla a toma dos medicamentos, sendo que os toxicodependentes só têm que se dirigir à carrinha para os pedir. Neste caso, existe uma ficha para cada um dos utentes com todas as informações de dosagens, tanto de metadona, como de outra medicação – tudo isto é decidido após uma avaliação psicológica. Para prevenir a venda ilegal de metadona, as enfermeiras obrigam os utentes a tomar a dose no local, sob vigilância.

É neste acompanhamento, também, que se faz a troca de seringas. Os beneficiários podem depositar as seringas usadas num recipiente próprio, para que sejam recicladas. No momento, as enfermeiras trocam as usadas por outras novas. 

Já o acompanhamento social, ou “giro”, como a instituição o apelida, realiza-se todos os dias, com dois horários distintos: de manhã (das 8h30 às 11h30) e de noite (das 18h30 às 22 horas), para fazer uma pesquisa de apoios sociais para com os beneficiários inscritos. Antes, os enfermeiros realizam uma pequena reunião de modo a planear o caminho efetuado pela carrinha. Chegando a cada um dos locais definidos, os enfermeiros questionam os utentes sobre os tipos de ajudas necessárias. Neste tipo de apoio, os envolvidos prestam serviços como marcação de consultas para os doentes, transporte, renovação de cartão de cidadão, idas a tribunais, entre outros. Quando a pessoa não se encontra no lugar onde deveria, a equipa de apoio deixa bilhetes com recados importantes. 

Bilhete deixado ao utente que procuravam, pela equipa de apoio dos “giros” I Fotografia por Diogo Costa

Todos os utentes têm acesso aos projetos da SAOM para serem ajudados”, completou a enfermeira da IPSS, onde acrescentou que todo o processo é sigiloso e  nenhuma informação é revelada. 

Em terreno, quais foram as ajudas que Covilhã realmente teve?

No caso particular de Covilhã, a ajuda da SAOM foi imediata. “Fornecem almoço e jantar todos os dias” e as consultas e análises são sempre ao encargo da associação, referiu o utente. Para ter acesso a metadona, Covilhã teve que fazer exames, na sede da SAOM. Não é dada “sem mais nem menos”, disse. As seringas e canecos, também, foram sempre trocados pela associação, para prevenir doenças contagiosas

Aquando da recaída de Covilhã, a SAOM encaminhou-o para um centro de reabilitação, pago pela Segurança Social, de forma a que “pudesse deixar na totalidade a heroína”. Acabou por deixar de consumir heroína com as dosagens de metadona, dadas pela SAOM. No entanto, continua a consumir cocaína, pois afirma que “não existe nenhum antídoto”.

Paulo Batista: “na altura era só ao fim de semana, mas mais tarde percebemos que estávamos enterrados”

Paulo Batista é um ex-toxicodependente. Começou a consumir heroína com apenas 16 anos e, à semelhança de Covilhã, começou por ser algo experimental, com amigos. Nunca imaginou que esta pequena experiência se pudesse vir a tornar no maior pesadelo da sua vida até aos dias de hoje. “Heroína comecei a consumir em 1989, mas antes disso já fumava haxixe. Na altura, era só fim de semana, mas mais tarde percebemos que estávamos enterrados”.  Após a tropa, em 1993, passou a ser um vício incontrolável. Sentia a necessidade de ter dinheiro, apenas com o objetivo de comprar doses grandes de heroína, para depois vender a maior parte e consumir o restante.

Em 1996, começaram os verdadeiros sinais de toxicidade do consumo. A droga era a principal companhia de Paulo, para quem “a heroína tinha de estar sempre presente”. Com os pais, a situação desmoronou-se. Os pedidos monetários eram constantes, originando discussões sobre o modo de vida do ex-toxicodependente. Chegou a roubar dinheiro para não ter de dar explicações, acabando por sair de casa para que não houvesse controlo nas escolhas de vida.

Meses mais tarde, iniciou a primeira desintoxicação no “Pátrias”, antigo centro de reabilitação para toxicodependentes. Esteve nove meses internado, mas voltou a “cair na dependência” depois de terminar o tratamento. Começou em festas e, três anos após a primeira desintoxicação, agarrou-se “outra vez à heroína”. O vício foi sempre piorando até 2003. Foi nessa altura que tomou a decisão de iniciar um novo tratamento mas, mais uma vez, sem sucesso. Foi apenas em 2010 que resolveu colocar um ponto final na sua caminhada no mundo das drogas. Ao contrário de todas as outras vezes, nesse ano, Paulo pediu ajuda a um elemento da sua família, de forma a tornar o tratamento mais rigoroso e consciente, obrigando-o, assim, a não falhar.

Paulo entrou no CAT de Guimarães com a intenção de completar o seu tratamento. Quando chegou à instituição, foi encaminhado para uma sala de internamento, onde realizou diversos exames, como um raio-x aos pulmões e uma lavagem ao estômago. Como não era a primeira vez que estava internado, a situação foi, psicologicamente, menos dolorosa.

Paulo refere que passou por três fases de tratamento. Começou pela desintoxicação, ou seja, “eliminou qualquer vestígio de dependência“. A fase da reabilitação psicológica foi “a mais fácil de tratamento”, uma vez que o mais importante era sentir-se capaz de “viver sem as drogas”, estimulando a autoestima. Na última fase “foi difícil”, porque foi necessário arranjar emprego, pensar no futuro e inserir-se em associações no seu “meio social”.

Paulo fala sobre o seu processo de desintoxicação.

Segundo o CRI, que ajudas teria o Paulo?

Os Centros de Respostas Integradas (CRI) são centros de tratamento para pessoas com comportamentos aditivos e dependências, espalhados por todo o território nacional e monitorizados pelas Administrações Regionais de Saúde. Prestam serviços no terreno, seguindo os programas de intervenção definidos, fornecendo consultas e metadona a todos os pacientes registados.

Funcionam, maioritariamente, com o modelo biopsicossocial, ou seja, “tratamentos médicos (bio), tratamentos direcionados para o psicológico (psico) e ajudas sociais, através das assistentes sociais atribuídas a cada um dos doentes (social)”, explica José Raio, psiquiatra do CRI Porto Oriental.

Através da médica de família, Paulo encontrou o Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT), atual CRI, no qual iniciou o seu último tratamento. Foi encaminhado para o centro e, por sua vez, registado como paciente.

Contrariamente ao trabalho feito pelas IPSS, o CRI trabalha, na sua totalidade, em centros dedicados, que “funcionam como centros de saúde, só para os comportamentos aditivos, com equipas multidisciplinares, que atuam em todas áreas necessárias ao tratamento, existentes em todas as cidades do país”, explica Paula Frango.

As IPSS vão de encontro aos consumidores, abordando-os com as ajudas e equipamentos necessários para a intervenção. O CRI recebe os pacientes nas suas estruturas e, só nessa situação, são ajudados. “As pessoas vêm aqui diariamente tomar metadona e receber os cuidados necessários. É obrigatório tomar no CRI”, refere o psiquiatra.

O CAT passou a denominar-se por CRI devido a uma reformulação dos serviços. No que toca aos serviços médicos, a maior revolução foi o aparecimento da metadona. 

Afinal, como funciona o CRI, na prática?

Apesar de estes centros existirem por todo o país, como referido, o sistema não é tão linear quanto aparenta. Existem CRI espalhados por todo o território nacional, mas não de forma homogénea, como fazem passar. Existem áreas bem mais fragilizadas de serviços, onde as pessoas têm de se deslocar para a capital de cada distrito para serem atendidas ou efetuarem uma marcação. Inicialmente, durante a entrevista com o SICAD, foi dada a informação de que todas as localidades do país tinham um Centro de Respostas Integradas: “Existem, sim. Em todo o país”. No entanto, instada a confirmar se existia algum centro, por exemplo, em Bragança, Paula Frango revelou que existem, de facto, regiões fragilizadas e que a ajuda não é imediata. Pelo contrário, as filas de espera podem alongar-se por bastante tempo. Apoio imediato, afirmou, “não existe, mas isso não existe em nenhum serviço de saúde”. 

Quanto ao Alentejo, que segundo o SICAD, tem uma rede de cobertura estável e extensiva a toda a população daquela zona, a psicóloga clínica acaba por confessar que tal não acontece. Se por um acaso, algum alentejano precisar de algum tipo de ajuda nesta área, esta não é imediata nem localizada. Não existem IPSS nessa região para responder às necessidades da população, pelo que não existem equipas de rua nem troca de seringas, ou seja, higiene e segurança no consumo. Deste modo, o processo de Redução de Riscos e Minimização de Danos não existe nesta situação.

Precisando de ajuda para tratamento, os alentejanos têm de se deslocar até ao Algarve ou Lisboa, de forma a obter a ajuda nos centros especializados ou nas IPSS. Como justificação a esta falha de cobertura, a psicóloga afirma que as associações não correspondem às exigências do SICAD, para obter o estatuto de IPSS e, consequentemente, o apoio financeiro dos concursos públicos. “É difícil haver uma entidade com os critérios que são precisos para se financiar, não pode ser uma qualquer”.

Desta forma, os apoios para tratamento são dados através de inscrições, filas de espera e marcações de horários, tal como funciona o serviço público. “As pessoas têm de fazer uma marcação, como nós fazemos em qualquer área da nossa vida”, refere a psicóloga clínica. Ao fazer um pedido de ajuda, são dadas opções aos utentes para tratamento, seja na sua área de residência ou nas proximidades. Se a opção for longe do local pretendido, há possibilidade de enviar uma equipa de tratamento ao centro de saúde mais próxima do utente. No entanto, essa opção pode também levar algum tempo. Para além disso, salienta, esse compasso de espera pode ser benéfico para quem pede ajuda. “Às vezes, na toxicodependência, um compasso de espera é importante para testar a motivação da pessoa”.

Contexto Português 

A temática de drogas em Portugal nunca foi linear, já tendo passado por incontáveis alterações, não só legislativas, como também na mentalidade dos portugueses.

Os anos 70 foram marcados por inúmeras mudanças políticas, económicas e socioculturais, o que se tornou fulcral para a caracterização das drogas no país. Foi em 1970 que Portugal decidiu, perante a aprovação do  Decreto-Lei número 420/70, a 3 de setembro de 1970, criminalizar, pela primeira vez, o consumo e o tráfico de drogas, punindo com até dois anos de prisão todos os consumidores e traficantes de estupefacientes. 

Decreto-Lei 420/70, de 3 de setembro de 1970
Art. 2.º – 1. Aquele que importe, exporte, compre, obtenha de qualquer modo, produza, prepare, cultive as plantas donde se possam extrair, prescreve, ministre, detenha, guarde, transporte, venda, exponha à venda ou de qualquer modo ofereça ou entregue ao consumo estupefacientes será condenado à prisão maior de dois a oito anos e multa de 10000$00 a 100000$00.

Em 1975, devido ao elevado número de jovens consumidores de drogas, surgiu a necessidade de criar medidas que, por um lado, assegurassem o tratamento clínico e, por outro, garantissem a cobertura da população de alto risco. Contudo, esta medida gerou o efeito contrário ao esperado e aumentou o consumo de estupefacientes por parte da comunidade juvenil.

Decreto-Lei 745/75, de 31 de dezembro de 1975
Art. 1º, nº 2 – A esse Centro competirá o estudo dos problemas ligados ao uso da droga, particularmente o do tratamento médico-social do toxicómano, da prevenção antidroga no campo da profilaxia da população em alto risco, bem como, em geral, dos problemas da juventude relacionados com o uso da droga.

Alguns anos mais tarde, a toxicodependência passa a ser vista, pela primeira vez, como um problema de saúde pública. Os consumidores de estupefacientes começam a ter outra visão, perante a sociedade. Passam a ser vistos como doentes, pessoas que necessitam de ajuda médica, e que devem ser ajudados e tratados. Neste seguimento, surgiu, pela primeira vez, a SIDA – uma nova problemática ligada ao consumo de drogas, associada ao uso de seringas. Foi neste quadro que se fez, em 1993, a primeira campanha de troca gratuita de seringas em farmácias, lançada pela Associação Nacional de Farmácias em conjunto com a Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA. 

Foi apenas nos anos 2000, com a aprovação da lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que o consumo de estupefacientes deixou de ser considerado crime e passou a ser uma contraordenação. Segundo Paula Frango, psicóloga clínica do SICAD, “a lei foi criada para as substâncias ilícitas. A lei 30 vem descriminalizar o consumo de todas as substâncias ilícitas, partindo do princípio de que o consumo não é um crime, embora seja ilegal.” 

Com a descriminalização do consumo, foram criadas estruturas de resposta à minimização de riscos. “Decorrente deste enquadramento legal da descriminalização do consumo, existe também um conjunto de estruturas de respostas, que se chamam as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência, também de âmbito nacional, que são as entidades que operacionalizam também a lei da descriminalização do consumo”, acrescentou Paula Frango.

Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro de 2000
Art. 1.º n.º 1 – A presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
Art. 2.º n.º 1 – O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
Matilde Silva

Matilde Silva, 20 anos, natural de Leça da Palmeira. O gosto por novas línguas, culturas, costumes e leitura fez com que a comunicação surgisse como uma paixão e carreira a seguir. Estudante de terceiro ano em Ciências da Comunicação, na Universidade Lusófona do Porto, e colaboradora na editoria da “Geração Z” na plataforma #infomedia