O limite do Airsoft
- Mariana Azevedo
- 15/07/2022
- Atualidade Desporto Sem categoria
As armas de fogo são para uns instrumentos letais, para outros alvo de fascínio e admiração. O Airsoft é a possibilidade de aproximar esta realidade fortemente legislada em Portugal. Mas o realismo destas armas causam constrangimentos legais aos seus praticantes e admiradores.
[Reportagem de Mariana Azevedo]
Tática, lógica, coordenação, orientação, sobrevivência, atividade física. Estas são algumas das capacidades que o Airsoft requer dos seus praticantes. Mas não só. As armas são o elemento principal para quem se interessa pelo tema.
Em Portugal, o uso e porte de armas apenas é permitido a quem, por razões profissionais ou de defesa pessoal, assim o justificar. Para o desempenho das respetivas funções, magistrados, autoridades de polícia criminal, agentes de autoridade e pessoal de vigilância e segurança do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras entre outras funções de calibre semelhante têm o direito ao uso e porte de armas fornecidas pelo Estado.
Air • soft O Airsoft é uma modalidade desportiva, de âmbito competitivo ou recreativo, cujos praticantes são munidos de armas de Airsoft, que disparam pequenas esferas plásticas através de ar ou um outro gás comprimido. O jogo tático em equipa consiste num desporto de equipa de inspiração na simulação tático-militar, que coloca em confronto duas ou mais equipas de número indefinido de elementos num ambiente natural ou urbano. Os jogadores são munidos de reproduções de armas reais, que disparam pequenas esferas plásticas de forma automática ou semiautomática através de ar comprimido. Os objetivos de jogo são definidos à priori e podem consistir na eliminação da equipa adversária, captura de um objeto ou jogador assinalado, escolta, ataque/defesa de perímetro, entre outros. Só em Portugal existem mais de 3000 jogadores federados, estimando-se que sejam ao todo mais de 5000 praticantes. |
É feriado, uma sexta-feira santa. Os jogos normalmente são realizados aos domingos de manhã, mas hoje é um dia especial. Duas equipas, dois grupos de amigos, juntam-se numa mata a céu aberto para “andarem aos tiros.” A rivalidade entre equipas existe durante todo jogo, com confusões e trocas de palavras mais duras. Mas no final o objetivo é o mesmo, a diversão e o churrasco. Afinal de contas, uma manhã inteira de esforço físico intensivo pede um bom convívio e comida.
Para Tomás Braga, Soldado do Exército Português, estes jogos têm vários significados. São um local onde este se pode divertir e passar tempo com os amigos, “aliviar a pressão do dia a dia e descontrair.” Mas ao mesmo tempo são uma “maneira de treinar e melhorar as minhas habilidades para aquilo que é o meu trabalho.”
Joaquim Ferreira, 50 anos, procurou a modalidade pelas características semelhantes às da sua antiga profissão: Paraquedista. “É um bocadinho parecido com a vida de militar, ou pelo menos nós tentamos fazer o mais parecido possível”. Já Bruno Castro, de 28 anos, viu no Airsoft uma possibilidade de ir além do gosto pelas armas e dos videojogos.
Porém a semelhança com armas de fogo reais leva a que reproduções para práticas recreativas, como armas de Airsoft e Paintball, sejam incluídas no atual Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), de 2006. É a partir deste que agentes fiscalizadores, como a PSP e a GNR, verificam a legalidade da posse, aquisição, utilização e transporte destas armas. Estas limitações causam entraves a muitos jogadores, principalmente para aqueles que vêm a modalidade como passatempo.
O que diz a legislação?
A posse e a aquisição destas reproduções para fins recreativos segue algumas normas restritivas. Por lei considera-se uma reprodução de arma de fogo para práticas recreativas o mecanismo portátil com o aspeto de uma arma de fogo de classe A, B, B1, C e D, que esteja pintado de cor fluorescente, amarela ou encarnada. Esta tinta tem de ser visível durante a utilização e não pode ser facilmente removida. O espaço pintado localiza-se 5 centimetros a contar da boca do cano e a totalidade do punho, se de uma arma curta se trate. Já às armas longas exige-se que a pintura tenha 10 centímetros a contar da boca do cano e que a coronha esteja totalmente pintada. Estas reproduções estão aptas unicamente para disparar esferas não metálicas cuja energia à saída da boca do cano não seja superior a 1,3 joules, para calibres inferiores ou iguais a 6mm e munições compactas. Outros calibres e munições compostas por substâncias gelatinosas têm o seu limite estipulado nos 13 joules.
As armas de Airsoft não devem ser entendidas como réplicas de armas reais. Segundo o Comissário Paulo Barros, do Núcleo de Armas e Explosivos da PSP do Porto, explica que “as reproduções de armas de fogo são sempre proibidas, mas podem ser permitidas desde que certas características sejam modificadas. Se o comprador for, justificadamente, atleta ou praticante de uma atividade em que sejam utilizadas este tipo de armas e se estas sofrerem alguma mudança característica, nomeadamente na pintura, passam a ser reproduções de armas de fogo para prática recreativa, e entram então nesse domínio de atividade”. |
A aquisição deste tipo de armas é permitida a maiores de 18 anos, sendo necessária a emissão da fatura-recibo ou de um documento equivalente, assim como a prova da inscrição numa Associação Promotora do Desporto (APD) reconhecida pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, I. P. (IPDJ, I. P.), e registada junto da PSP. Maiores de 16 anos podem também adquirir reproduções de armas de fogo para práticas recreativas sob a devida autorização do responsável parental. Por serem consideradas reproduções de classe G não é necessária qualquer licença para a sua posse.
Quanto ao transporte, as regras são iguais para armas reais, réplicas e reproduções. O transporte deve ser feito nas devidas condições de segurança, numa bolsa ou estojo adequados ao modelo em questão, separada das respetivas munições, e de forma a que não sejam facilmente utilizáveis.
A posse ilegal deste tipo de armas e das suas munições tem as devidas consequências. A coima prevista em Diário da República se não forem seguidos todos os procedimentos acima descritos vai desde os 400 a 4000 euros. Assim como quem proceder à alteração das características destas reproduções, poderá pagar uma coima de 500 a 1000 euros.
No caso dos jogadores estrangeiros, estes estão temporariamente autorizados a usar e a transportar as devidas reproduções durante o tempo necessário para a realização do evento em que vão participar. Estas não necessitam de cumprir a legislação portuguesa, apenas tem de ser apresentada uma prova de inscrição no evento à Direção Nacional da PSP pela entidade promotora da iniciativa. Diogo Forte, Vice-presidente da Associação Portuguesa de Milsim e Airsoft (APMA) da delegação centro, explica que “nós como organização, temos que transmitir o ponto de entrada, a forma como os participantes vão entrar no país, se por via terrestre, aérea, ou marítima, que tipo de reproduções vão trazer, quantos são, a identificação de cada um. Estes dados são reunidos e enviados para a DAEX (Departamento de Armas e Explosivos)”.
Contudo existe uma questão que gera indignação a jogadores e comerciantes. A alínea c), ponto 4, do artigo 1.
4 – Ficam também excluídos do âmbito de aplicação da presente lei: (…) c) Os dispositivos sem projétil ou aptos unicamente a disparar projétil sem recurso a propulsor de combustão e cuja energia à saída da boca do cano seja igual ou inferior a 13 J. |
A existência desta alínea coloca em dúvida o conceito de reprodução de arma de fogo para práticas recreativas, assim como a regulação destes dispositivos pelo RJAM. O Comissário do Núcleo de Armas e Explosivos da PSP do Porto, Paulo Barros, responde-nos a esta questão: “Estamos a falar de uma norma geral e abstrata no caso do artigo primeiro. Já a alínea ag), do artigo 2, aborda uma norma específica, para uma atividade específica. Em caso de dúvida solicitamos uma perícia e verificamos qual dos requisitos é preenchido e excluímos quando não preenche. Entramos no regime da lei das armas e verificamos onde é que determinada arma se vai enquadrar”.
Os jogadores
Segundo os pontos 26 e 27 da Diretiva (UE) 2017/853 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de maio de 2017, que veio alterar a Diretiva 91/477/CEE, relativa ao controlo da aquisição e detenção de armas, os dispositivos de Airsoft deixam de poder ser regulados pela diretiva anterior. Deixam assim, de ser tratados como armas de fogo. Porém cada país pode livremente regular este tipo de dispositivos, aplicando regras mais ou menos restritas.
A grande maioria dos países da União Europeia, assim como Portugal, põe limites de potência e de idade para a aquisição e utilização de reproduções de Airsoft. O problema que a grande parte dos jogadores portugueses aponta para a presente legislação é a necessidade de existirem pinturas nos seus dispositivos.
Mas as questões vão muito além da camuflagem e do jogo, já que durante a “prática desportiva não é necessária a utilização de pinturas”, explica o Comissário do Núcleo de Armas e Explosivos da PSP do Porto. “Utilizam-se muitas vezes acessórios”, como é o caso da fita adesiva preta para tapar as partes amarelas, acabando essas armas “por perder essa característica momentaneamente”.
Ainda assim, muitos dos jogadores que participaram no jogo de Airsoft em que o #Informedia esteve presente tinham as pinturas ao descoberto, já que a sua ocultação implicaria terem peças de substituição previamente cobertas, ou antes do próprio jogo, terem de as ocultar.
Eu posso ser caçador e andar com a minha caçadeira sem estar pintada e com os meus cartuchos. Jogo Airsoft com uma arma que não mata ninguém, tenho de andar com ela pintada. Eu costumo dizer isto em tom de brincadeira: qualquer um pode comprar uma arma. Se a pintar de amarelo posso andar com ela, mesmo sendo real.
Joaquim Ferreira (50 anos), jogador de Airsoft
Temos de ter noção que estamos num país que não está habituado a ter uma população armada. Penso que não são as pinturas que vão diferenciar uma arma real de uma reprodução, na própria cultura não está incutido.”
Se eu quiser pintar uma arma real de amarelo, tenho uma arma de Airsoft, e vou assaltar um banco com uma arma dessas. Acho que não faz sentido!
Diogo Fonseca (22 anos), jogador de Airsoft
Têm sido criadas petições para que haja uma mudança na lei, sendo que são raras aquelas que avançam para discussão na Assembleia da República. A última, datada de fevereiro de 2019, contou com a presença de várias associações, não só de Airsoft e Paintball, mas também de áreas ligadas à caça, história, colecionismo e ambiente.
Algumas das alterações propostas focam-se na retirada das reproduções de armas para práticas recreativas do presente Regime Jurídico de Armas e Munições, sendo para isso é proposta a criação de uma lei à parte que regule a modalidade. Outras apenas defendem a remoção da obrigatoriedade das pinturas. O ex-paraquedista concorda com a inclusão das mesmas na presente lei, mas afirma que seria “muito mais fácil e viável se obrigassem a quem compra uma arma, a que esta seja registada pelo número de registo na PSP”. Considera que ao nível de segurança e controlo “é bom para mim, se ela desaparecer informo a polícia, e se ela aparecer já sabem que é minha”.
Onde (não) comprar?
Os jogadores não são os únicos afetados pela legislação. Os comerciantes vêm-se também limitados.
Para a aquisição de reproduções vindas da comunidade europeia é necessário fazer o registo no mapa das armas à entrada, pintar e colocar na potência legal, explica Ernesto Mendes, proprietário de uma loja de Airsoft. Quando falamos de importações de outros países é necessário ainda, “pedir autorização de importação ao Departamento de Armas e Explosivos e pagar uma série de taxas”.
Não conseguimos exportar porque somos obrigados a pintá-las
Hugo Sousa, funcionário de uma loja de Airsoft
Ao nível da logística as pinturas também dificultam o processo de compra e venda. As reproduções importadas que forem pintadas dificilmente são compradas por jogadores estrangeiros, que procuram armas que se assemelham o mais possível às reais e que ainda assim estejam em concordância com as leis do seu país.
Em Portugal para além da pintura, quem compra tem que estar registado numa Associação Promotora do Desporto. Desta forma, “se algum estrangeiro quiser comprar uma reprodução, além de ter que ser pintada e estar com potência estipulada em Portugal, teríamos que pedir ao cliente para se registar numa APD Portuguesa”, o que torna a venda “impossível”, explica o proprietário. As lojas portuguesas ficam assim impossibilitadas de competir com outras estrangeiras neste mercado.
Numa União Europeia em que em 90 % dos países nada disto é possível, vender reproduções de armas de fogo em Portugal é uma missão impossível, somos discriminados face a outros países europeus.
Ernesto Mendes, Proprietário de uma loja de Airsoft
Ernesto explica ainda que, “ao pintar uma reprodução em especial nas armas curtas por muito cuidado que se tenha existem sempre detritos que entram, levando por vezes a problemas de funcionamento”.
As lojas não são o único meio para a obtenção destes dispositivos. Com a internet, estes podem ser facilmente comprados e importados, segundo os pontos 15 e 16, da Diretiva n.º 6/2017, publicada em Diário da República, 2.ª série, Nº125 de 30 de junho de 2017, não podendo apenas ser utilizados oficialmente. “A importação de armas vindas de outros espaços, não necessariamente é registada nos alvarás de algum armeiro ou até mesmo na polícia. As pessoas simplesmente compram na internet como se estivessem a comprar qualquer outro artigo de Airsoft numa loja online”, afirma Hugo Sousa.
Ainda assim, o Comissário Paulo Barros explica que este tipo de reproduções, assim que dão entrada em território nacional “vamos verificar as características desta arma. Se considerarmos que pode ser utilizada para práticas recreativas, permitimos que a pessoa faça o levantamento condicionado da mesma, que vá a um mercado, um armeiro ou uma entidade competente e proceda à pintura. Assim que forem feitos todos os procedimentos, é necessário apresentar a arma para validação”. Acrescenta ainda que quando existe uma ocorrência num aeroporto, alfândega ou nos correios “somos chamados e em primeira linha confrontados com este objeto. Ele vem identificado, porém o desconhecimento da população geral, não os faz questionar se aquilo deve ou não ser introduzido no país. Qualquer arma para entrar em território nacional deve ser homologada”
Quero praticar? Preciso de fazer parte de uma APD
Os clubes e Associações desportivas são as entidades responsáveis pela promoção e desenvolvimento de atividades associadas ao Airsoft. As suas responsabilidades vão desde ações de formação, organização de eventos desportivos, gestão de instalações desportivas, associativismo até ao apoio a jogadores e equipas da modalidade.
Diogo Forte, vice-presidente da Associação Portuguesa de Milsim e Airsoft (APMA) da delegação centro, destaca esse papel. “Somos o primeiro contacto de qualquer pessoa com o desporto, somos nós que transmitimos o que é que a pessoa vai encontrar. O primeiro passo é explicar o papel da APD, a parte da reprodução, as características necessárias para se estar legal.”
Para além disto, e segundo a Diretiva n.º 6/2017, as Associações Promotoras do Desporto são as principais responsáveis pela organização de eventos desportivos, não sendo permitida a realização de provas ou atividades por outras entidades – “A parte da fiscalização de todos os pareceres, licenciamento e autorizações para se realizar um evento é da responsabilidade da APD”, afirma Diogo Forte. A realização deste tipo de eventos requer da comunicação prévia (no mínimo 10 dias), ao Departamento de Armas e Explosivos da PSP e à autoridade policial competente. Os locais onde estes se realizam devem ser devidamente sinalizados, para que a população em geral perceba que tipo de provas ou atividades estão a decorrer naquele local.
Como em qualquer desporto, o Airsoft também tem as suas regras, tanto de jogo como também de segurança. Durante um jogo existem duas zonas: a safe zone ou zona de segurança, o local para onde os jogadores voltam depois de serem atingidos, e a zona de jogo. O número de equipas e jogadores pode ser variável, podendo ser estipulado pela associação organizadora. Algumas regras: . Um jogador é eliminado quando for: – atingido em alguma parte do corpo (se for atingido na arma apenas não a poderá usar até ao final do jogo); tocado por um jogador adversário; – atingido por um elemento da própria equipa; . Se um jogador ficar sob a mira a menos de 5m de distância, é obrigado a pedir rendição, estando o inimigo proibido de disparar sobre ele. No caso de essa regra não ser respeitada, a proibição termina, e poderá ser atingido à queima-roupa; . Se for eliminado o jogador deverá gritar “Morto” e dirigir-se para a zona de segurança sem interferir no jogo; . Se o objetivo do jogo for uma infiltração ou simulação de sequestro o jogador não pode gritar alto “Morto”, apenas o pode dizer ao jogador que o eliminou; . Depois de ser eliminado, o jogador não pode dar indicações aos colegas de equipa acerca da equipa adversária; . Se houver dúvidas quanto a quem eliminou quem, o jogo é interrompido, de maneira a que ambos os jogadores cheguem a um acordo; . Durante o jogo é obrigatória a utilização de proteção ocular própria, não podendo esta ser retirada durante o jogo; . Para além da reprodução e da proteção ocular, o jogador pode levar consigo quaisquer dispositivos que o ajudem durante o jogo, tais como, roupa camuflada, proteção para os ouvidos, cabeça e joelhos, rádios, coletes anti-balas, entre outros Durante o jogo, pode se proceder à ocultação das partes pintadas, sendo que esta deve ser reposta imediatamente depois do término da partida. A prática de Airsoft apenas pode ter lugar em propriedades longe de pessoas, habitações e viaturas. A realização de um evento deve ser previamente comunicada às autoridades policiais, PSP ou GNR, pelos organizadores. |
Sou a Mariana Azevedo e tenho 20 anos. Sou colaboradora da editoria de desporto do #infomedia. Ingressei no curso de Ciências da Comunicação por ser a combinação perfeita de dois mundos que tanto aprecio, comunicar e o desporto. O desporto sempre esteve presente desde muito pequena e por isso, pretendo dar voz àquelas modalidades que não têm o destaque merecido nacionalmente.