O Mistério das Crenças: Mezinhas e Rezas
- Ana Luísa Capelo
- 18/05/2021
- Portugal
Antigamente, devido aos recursos médicos limitados, a população via-se obrigada a arranjar remédios alternativos. Como tal, as mezinhas caseiras, para além de bastante comuns, eram um recurso viável. Os mais crentes, recorriam ainda às mais variadas rezas, na fé de que melhorariam graças aquelas bênçãos.
[Rubrica “O Mistério das Crenças“: Portugal é um país com uma tradição mística bastante presente. Infelizmente, estas histórias vão-se perdendo no tempo. À medida que as pessoas que melhor as conhecem vão desaparecendo, muitas destas lendas e mistérios desaparecem também, sem nunca serem contados. O objetivo destas reportagens é precisamente eternizar alguns desses relatos tão preciosos para o folclore português e dá-los a conhecer aos leitores, já que este é um tema pouco convencional.] |
Cada vez mais a ecologia está na moda: a necessidade do ser humano de se conectar com as suas raízes e se ligar à natureza é crescente, porém, erra quem pensa que esta valorização do natural surge apenas agora aliada à tendência da sustentabilidade. Há muitos anos a natureza, e todos os seus frutos, eram utilizados para benzer e tratar qualquer tipo de maleitas, sendo uma das mais antigas práticas medicinais da Humanidade.
Esta sabedoria é passada de geração em geração e os que restam apenas lamentam que a maioria dos relatos, na altura, não tinham sido eternizados, “as histórias que nos contavam davam um livro” garante Luísa Baptista. Com os seus 72 anos, carrega o conhecimento que lhe foi passado pelos seus pais, Madalena e Manuel Baptista, em relação a mezinhas naturais que, aparentemente, tudo curavam. Madalena Sousa Costa, de 77 anos, acompanha-a nesta viagem pelo passado onde recorda as rezas e benzeduras que quase já estavam esquecidas, apagadas pelo tempo.
De facto, estes remédios preparados em casa eram “sagrados para ele [o seu pai, Manuel]”, relembra Luísa enquanto, sentada no sofá da sua sala, folheia a “Mini-Enciclopédia das Medicinas Naturais”. Um dos que utilizava religiosamente, quase como se estivesse sujeito a prescrição médica, era à base de alho. Na medicina tradicional árabe esta planta é conhecida por ajudar no tratamento de artrites e era precisamente para isso que ele o usava (Fonte: Healthline). “Primeiro, colocava os dentes de alho, descascados, num frasco, depois juntava álcool etílico; deixava aquilo assim durante três semanas ou um mês, já nem me lembro bem” começa por explicar, “depois, quando entendia que já estava no ponto, pegava numa rolha de cortiça e fazia-lhe um furo – usava isso como conta gotas – e, todos os dias, deitava 7 gotas daquela mistura na sopa”. Apesar do cheiro nauseabundo, garante vividamente que “não sabia a nada, tinha um cheiro muito ativo, nem cheirava a alho, mas isso não tinha nada a ver com o paladar”.
“Para os ossos esta não era a única receita” adverte, as folhagens de nogueira também eram um recurso constante para este problema. “Ele trazia sacos de folhas de nogueira para casa e, quando não as podia ir buscar, a ânsia era tanta que até pedia para lhos trazerem” explica, evidenciando, desde logo, a importância que esta planta tinha. Porém, a preparação fugia ao que seria comum, para este remédio em específico as folhas “tinham de ser secas à sombra”, caso contrário, ficavam inutilizáveis. Depois de secas, bastava ferver numa cafeteira com água e, posteriormente, “dar banhos aos joelhos com aquela água”, recorda “a água ficava mesmo da cor do mercúrio, da tintura do iodo; porque aquilo é iodo, a nogueira” explica cuidadosamente Luísa. Na realidade, grande parte das plantas que, há cerca de 50 anos, eram utilizadas de forma quase que intuitiva e com pouco, ou nenhum, conhecimento científico, atualmente, são recomendadas por entidades legitimas e continuam a ser utilizadas um pouco por todo o mundo.
Devido à falta de recursos técnicos, a maioria das mezinhas preparadas consistiam na fervedura de folhas ou plantas secas, que resultavam em infusões das mais diversas ervas. “Era só coisas caseiras, qualquer erva dava para fazer um chá” relembra, nostalgicamente, Madalena enquanto encara as ruas, agora, quase vazias da aldeia, “andávamos sempre a apanhar disto”.
O fel da terra, por exemplo, servia para dores de barriga e má disposição, esta planta é, inclusive, recomendada pela German Commission E. como sendo benéfica para esse fim, já que o seu sabor extremamente amargo estimula as enzimas digestivas. A filha de Manuel relembra que o chá era tão azedo que “até tinha medo de dizer que estava mal só para não ter de beber aquilo, se acrescentássemos açúcar já não fazia efeito”. A flor de sabugueiro, por sua vez, depois de seca, era fervida em água e, quando arrefecia, era utilizada “para lavar os olhos quando estavam irritados, ou com conjuntivite, ainda que a gente naquele tempo não soubesse o que era” detalha Luísa.
A verdade é que, por muito distante que esta realidade pareça, estima-se que ainda no início da década de 90 cerca de 65-80% da população dos países em desenvolvimento tinham nas plantas medicinais o único acesso a cuidados básicos de saúde (Fonte: Organização Mundial de Saúde). Os números são estrondosos e, não muitos anos antes, também em Portugal se vivia assim. Num tempo onde os recursos químico-terapêuticos e as grandes farmacêuticas ainda não tinham dominado a economia global, a única medicina era aquela que advinha da natureza.
A crença nestes métodos alternativos era tamanha que, por mais descabida que agora a receita possa parecer, havia sempre alguém que a reproduzia acreditando que curaria a doença em causa. Por exemplo, Luísa apontou que uma das mezinhas mais bizarras era para o pisado, que, curiosamente, naquela altura era chamado de “pulmão”. Então, para os “pulmões” desaparecerem o método era simples, porém bastante singular. “O principal era papel de mata-borrão” começa por narrar, “esse papel tinha de ser embebido em vinho tinto e broa e, depois, colocava-se no local do pisado… Achava-se que o papel absorvia o pisado”.
Como estas havia muitas mais receitas. Por exemplo, o chá de folhas de oliveira era usado para a tensão alta, a infusão de erva de são roberto para a vesícula e a cavalinha e o eucalipto para o pisado. As opções eram infindáveis e, qualquer que fosse a doença, existia sempre uma forma de a tratar em casa.
O Ato de “Talhar”
Apesar de os avanços da medicina, até aos dias de hoje, terem sido significativos e já haver cura para praticamente tudo, a fé dos indivíduos muitas vezes sobrepõe-se à ciência e, para além do uso de plantas, também é frequente que, muitas vezes, se recorra a rezas e se “talhem” as doenças, ou seja, benzer. Apesar de, como é claro, ser um ato mais recorrente antigamente, ainda hoje, há quem o faça.
Havia pouco conhecimento médico e, para além disso, a informação não se difundia de forma tão eficaz como hoje, portanto, muitas dos nomes dados a doenças há 50 anos atrás não são os mesmos usados agora. Por exemplo, uma doença bastante comum antes era a zeripela que “era uma infeção e o sintoma principal era febre, só que naquele tempo não havia termómetros e então as pessoas nem sabiam o que tinham” explica Madalena.
O ato de talhar esta infeção era simples, mas tinha de ser repetido durante 3 dias, caso contrário, era ineficaz. “Eu lembro-me” começa, “quando a minha mãe estava com esta doença, havia uma senhora que ia lá a casa talhá-la, usava carqueja e azeite”, mas adverte de antemão que o número de pés de carqueja usados durante o processo tinha de ser ímpar, “havia uma muito simbologia associada a esses números, quer fosse em medicamentos ou rezas, os ingredientes tinham de ser sempre utilizados em quantidades ímpares”.
Segundo Madalena, as benzeduras eram tantas que “é impossível lembrar-me de todas” lamenta nostalgicamente, “já não pensava nestas coisas há tanto tempo que algumas fui esquecendo”. Para algumas pessoas, que não estejam tão por dentro do tema, algumas destas superstições podem parecer descabidas, mas há que ter em atenção que “para além de não haver tanto conhecimento de medicina como agora, as pessoas também não tinham posses” adverte previamente. Depois, “misturava-se o azeite numa tigela com água”, a senhora molhava a carqueja na mistura e à medida que vociferava a reza, movimentava a mão sob a cabeça da pessoa doente como se estivesse a desenhar repetidamente uma cruz.
Apesar de algumas das tais ladainhas já estarem esquecidas, Madalena lembra-se perfeitamente desta em particular: “Pedro Paulo foi a Roma/ Jesus Cristo encontrou/ E o Senhor lhe perguntou:/ Pedro Paulo que vês lá?/ Ó Senhor, muita zirpela, zirpela má./ Pedro Paulo volta lá e cura/ Com parte do monte e água da fonte/ Zeripela vai para o monte/ Zeripela vai para o mar/ Que esta criatura está fraca/ Não te pode sustentar”. Recorda que, durante este processo, “a pessoa que estava a talhar e a que estava doente começavam a bocejar muito, durante o processo estavam sempre assim”. Quando terminavam, as pontas de carqueja utilizadas tinham de ser queimadas numa fogueira.
Também a papeira, na altura, tinha um nome bastante diferente, era conhecida como sendo o “trasorelho”. Para o talhar era preciso recorrer a um jugo de bois. Apesar de já não se lembrar da reza, este método em específico nunca esqueceu, “se pensarmos nisto hoje em dia, não faz muito sentido, mas eram as crenças da altura…”, recapitula. Quando alguém adoecia nunca se sabia qual era a gravidade da doença, o futuro era uma constante incógnita e as pessoas viam-se obrigadas a se precaverem com estas supostas benzeduras caseiras.
Como tal, havia rezas para coisas tão simples quanto um herpes. Luísa, inclusive, afirma que, ainda hoje, tem um banco de madeira na varanda “todo esfaqueado por causa de talhar o herpes”, que na altura era chamado de “bicho”. Segundo ela, era bastante comum dizer-se que, quando alguém tinha herpes, essa pessoa tinha “apanhado o bicho”. Encostava-se a faca ao herpes, dizia-se a reza e, no fim, espetava-se a lâmina numa superfície de madeira. Supostamente, a partir desse momento, começaria a sarar.
As ínguas, inchaços que, por norma, surgem devido a alguma inflamação ou infeção, eram também talhadas. Esta benzedura em específico tinha de ser feita numa noite de céu estrelado. Encarando o céu, “tinha de colocar a mão sobre a íngua”, fixar o olhar numa estrela em específico e dizer “Estrela reluzente/ A minha íngua diz/ Que seques tu e medre ela/ E eu digo, que medres tu e seque ela”. Era necessário repetir o processo três dias seguidos e, todos os dias, dizer a reza nove vezes. Só assim surtiria efeito.
Para estas pessoas “eram crenças” explica Madalena. Acreditavam religiosamente nestas rezas e, quando começavam a melhorar, diziam que era por causa de terem talhado o mal. Na altura, fazia sentido e era uma verdade absoluta, ultimamente, já é questionável. Muitas pessoas que, durante toda a sua vida, viram estes atos e receitas como algo inquestionavelmente real, continuam a considerá-lo como tal.