O Mundo do Futebol Feminino aos olhos de quem luta contra os estigmas criados

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O Mundo do Futebol Feminino aos olhos de quem luta contra os estigmas criados

É Inclusão. É Igualdade. É Equipa.

O que têm em comum Letícia, Paula, Sara e Mariana? Letícia é o espelho de quem luta para que o futebol seja um desporto mais inclusivo. Paula, ligada a este mundo há vários anos, salienta a presença de uma visão contínua do futebol enquanto desporto masculinizado. Sara e Mariana são o reflexo de quem quer chegar mais longe enquanto atletas profissionais. Para estas mulheres, o desporto deveria ser sinónimo de inclusão. O reconhecimento enquanto integrantes no futebol feminino português é a meta a alcançar

(Por: @gisela-silva, @vania-maio e @viviana-fangueiro)

Letícia

Determinada

Será a cultura impedimento para a concretização dos sonhos?

Letícia Gomes Gonçalves é uma jovem de 15 anos. Natural de Braga e residente no Bairro de Santa Tecla, cresceu numa comunidade cigana à qual pertence. A jovem feminista tem lutado pelas suas conquistas e tem marcado a diferença nas tradições da sua comunidade.

Frequenta o 9º ano na escola de Lamaçães. No futuro, planeia tirar um curso de esteticista. Incentivada pelos pais, Letícia será assim a primeira pessoa na família a tirar um curso.

O seu objetivo passa por conciliar esta área com o futebol, uma paixão que já provém de outras gerações. “ As minhas tias sempre gostaram de jogar futebol”,conta. Atualmente, a jovem joga com uma das primas, sendo as primeiras a ir além da prática casual.

“(…)nós cremos que juntas conseguiremos fazer a mudança!”

Letícia Gonçalves

Letícia Gonçalves a jogar futebol. Excerto da reportagem transmitida pelo Canal 11 no dia 25 de maio de 2020

Quando se fala na mulher cigana, é quase imediata a sua associação ao tema casamento e ao seu papel na comunidade. O que parecia ser uma coisa descabida nas tradições ciganas, uma vez que a prática de um desporto é vista como um direito inato por quase todas as crianças e jovens, a verdade é que há casos em que isso não acontece de forma tão simples. Nos muitos, Letícia é uma das exceções.

Letícia Gonçalves fala do apoio da família em relação ao futebol

Projeto Geração Tecla

Sinónimo de luta, igualdade e interajuda

A comunidade do Bairro de Santa Tecla, atualmente, é apoiada pelo Projeto Geração Tecla que surgiu no âmbito do Programa Escolhas.Tem como objetivo criar oportunidades e promover a inclusão social de crianças e jovens que vivem em contextos mais vulneráveis, nomeadamente minorias étnicas e imigrantes.

“Hoje são as pessoas que mais nos ajudam e nos ajudaram a chegar onde nós chegamos.”

Letícia Gonçalves

O projeto visa a igualdade de oportunidades e o reforço da coesão social da geração mais jovem, de forma a potenciar a diminuição do absentismo e desconstruir os estereótipos associados às comunidades ciganas.

O gosto pelo futebol aliado à vontade das jovens desta comunidade suscitou desde cedo a ideia da criação de uma equipa. Em 2016, com o objetivo de desenvolver competências sociais e pessoais e dar oportunidades a quem não as tem, é criada a equipa Big Powers.

Inicialmente, de um modo geral, os pais não concordavam. Achavam que não passava de uma brincadeira, mas agora perceberam que é o que elas querem.

Equipa Big Powers no Torneio Distrital de Futebol de Rua (2ºlugar) no dia 8 de junho de 2019

Ao início, a equipa era constituída por um grupo de meninas que tinham alguns problemas de confiança e sentiam-se incompreendidas, mas que tinham uma grande motivação para jogar futebol.

Letícia fala do significado do nome Big Powers

Letícia faz parte da equipa há quatro anos. “Uma das melhores coisas que me aconteceu na vida e creio que não só a mim, mas também às minhas restantes colegas de equipa”, afirma.

Não são uma equipa federada, o que faz com que as jovens nem sempre se sintam motivadas. Por vezes, atravessam momentos menos bons. A falta de transporte leva a que seja necessária uma deslocação pedonal para os treinos. Mas não é isso que as faz desistir, a paixão pelo futebol sobressai.

A organização, por vezes, é alvo de comentários ofensivos direcionados à criação da equipa cigana. Os mesmos acabam por se tornar difíceis de controlar.

“Se o comentário for na nossa página, apagamos e banimos as pessoas. Se for em outras redes, ignoramos, porque infelizmente as redes sociais são cada vez mais uma forma de destilar ódio gratuitamente. Quem tem interesse vem questionar e procurar quebrar barreiras, não fica atrás de um teclado a argumentar só porque sim.”

Carina Silva, Integrante no Projeto Tecla

Em novembro de 2019, as Big Powers, tiveram a oportunidade de conhecer a Seleção A Feminina. Este encontro foi promovido pela AFBRAGA em parceria com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). “O que significou tudo para nós. Foi uma experiência fantástica, um sonho tornado realidade com certeza”, conta Letícia.

No passado dia 25 de maio, no programa Amor à Camisola, do canal 11, Letícia Gonçalves representando a equipa esteve a conversar sobre a paixão da equipa pelo futebol, o preconceito e a igualdade de género.

“Todas as minhas colegas de equipa têm alguma referência no mundo do futebol. Com certeza é o Ricardo Quaresma porque é cigano e mostrou-nos que se nós lutarmos e não desistirmos de nós próprias, acreditarmos, conseguimos chegar onde ele chegou. Serve-nos de inspiração.”

Letícia fala de como o futebol e as Big Powers transformaram a sua vida

Presença da Mulher no Futebol em Portugal

Avanços até hoje

É um facto que a participação das mulheres no desporto tem sofrido alterações ao longo do tempo. Apesar de terem vindo a enfrentar várias adversidades, continuam a ser uma minoria no mundo futebolístico.

No ano 2016, estavam inscritos, no total, 168661 atletas federados desportivos. Dentro deste número, 168097 correspondiam a atletas federados de futebol. Destes, apenas cerca de 3000 diziam respeito a jogadoras de futebol feminino federadas. 
No ano 2017, estavam inscritos, no total, 185280 atletas federados desportivos. Dentro deste número, 176349 correspondiam a atletas federados de futebol. Destes, apenas 4132 diziam respeito a jogadoras de futebol feminino federadas. 
No ano 2016, estavam inscritos, no total, 203189 atletas federados desportivos. Dentro deste número, 189417 correspondiam a atletas de futebol. Destes, apenas cerca de 5500 diziam respeito a jogadoras de futebol feminino federadas. 
No ano passado, o número de atletas federadas de futebol feminino subiu para 6020.

Número de atletas federadas no Futebol | Fonte de Informação- PorData e FPF

A maior dificuldade tem sido desconstruir o modelo do futebol e a ideia que este tem implícito, desporto por e para homens. O papel da mulher neste, durante muito tempo, foi visto como desnecessário. Atualmente, as mulheres têm vindo a lutar contra estes estigmas.

Paula

A Veterana

Desporto é inclusão! Futebol é inclusão!”, quem o diz é Paula Pinho, treinadora da equipa de futebol feminino do Albergaria.

Paula Pinho durante um treino da equipa feminina do Albergaria | Fotografia por Maria Garcia 

A paixão de Paula pelo futebol começou desde cedo,uma paixão que perdura há 40 anos. Tendo ela acompanhado o percurso do pai e do irmão nesta área, interrogava-se “por que razão não poderia eu praticar o desporto que gostava? Então e eu?! Como o meu irmão e todos os amigos dele? Por que razão não havia essa possibilidade em Albergaria?”.

Com apenas quinze anos, decidiu organizar um jogo com as colegas em forma de brincadeira. Esse acontecimento levou-as ao futebol federado. “Um diretor do clube viu, e na época seguinte já estávamos a competir”. E assim, iniciou o seu percurso no futebol feminino.

Segundo a treinadora, para além dessa vertente natural de crescimento, é inegável o trabalho que está a ser feito por parte da FPF na organização, planificação, crescimento e desenvolvimento estratégico do Futebol Feminino. Desde a tomada de posse da mais recente direção da Federação Portuguesa de Futebol, que o Futebol Feminino, no nosso país, tem sido visto com outros olhos, com um grande potencial de crescimento.

“Temos vindo a crescer. Poderemos fazê-lo ainda mais, muito mais. E além de crescer, temos de desenvolver.”

Paula Pinho

A treinadora é da opinião que o futebol ainda é visto como um desporto masculinizado. “Por mais que alguns senhores e senhoras tentem desmontar essa ideia, ainda existe esse preconceito. E é o pior de todos”, afirma.

Sara

A Lutadora

Ao longo dos anos, são várias as vozes que têm vindo a sofrer este tipo de preconceito. Sara Brasil, de 24 anos, atleta do Amora Futebol Clube, relata um desses episódios:

“Ainda jogava com os rapazes e havia um pai que achava que eu jogar era tirar o lugar a um rapaz que podia ser um atleta profissional”.

Sara Brasil a jogar futebol pelo Amora F.C | Fotografia cedida por Sara Brasil

Foi através do seu irmão que nasceu o interesse pelo futebol. “Tive a sorte de o meu irmão não achar que ele só podia jogar com rapazes”, conta. O seu primeiro contacto com o futebol feminino aconteceu quando tinha 12 anos. Sara foi convidada a jogar na equipa feminina do Futebol Clube de Felgueiras.

“Antes, eu jogava com rapazes e jogar com raparigas era uma realidade que eu desconhecia”.

Sara Brasil

Assim como Paula Pinho, também Sara salienta o papel fundamental da Federação Portuguesa de Futebol e, principalmente, das entidades formadoras/clubes no crescimento do futebol feminino, em Portugal. “É possível falarmos de futebol feminino a nível profissional. Tem sido uma ótima e rápida evolução para todas as mulheres, mas, principalmente, para todas as meninas que sonham, um dia, serem jogadoras de futebol”. Segundo a jovem, são passos largos para o sucesso e o alargamento da qualidade da jogadora portuguesa.

Atualmente, Sara descreve o futebol feminino como um núcleo de jovens mulheres que lutam diariamente pela igualdade.

“Muito já conquistaram estas Mulheres.”

O futebol está a caminhar aos poucos para a profissionalização. Tanto no masculino como no feminino, os clubes pequenos não têm o mesmo poder que os grandes. Muitos clubes ditos “pequenos”, embora tenham vontade em abrir futebol feminino, nem sempre é possível. O maior problema nem sempre está ligado à falta de aposta por parte dos clubes, mas sim à ausência de atletas praticantes. Embora tenha vindo a aumentar, continua a ser um entrave.

Mariana

A Persistente

Mariana Arteiro tem 20 anos e é natural da Póvoa de Varzim. Começou a jogar futebol feminino aos 12 anos quando entrou para uma equipa do interfreguesias da Póvoa, o Leões da Lapa.

Mariana joga a Final da Taça da Póvoa pelo Leões da Lapa, ocorrida no dia 28 de maio de 2017 | Fotografia cedida por Mariana Arteiro

A jovem, como muitas outras que sonham em chegar mais alto no mundo do futebol, passados seis anos a jogar por uma equipa “pequena”, optou por ingressar numa equipa federada.

Mariana Arteiro fala o que a levou a escolher o futebol federado 

Mariana iniciou o seu percurso federado no Boavista Futebol Clube. “Fui fazer os treinos de captação e pronto, acabei por ficar na equipa. Fui chamada à equipa A, onde competi na Liga BPI, correspondente à primeira liga”, conta.

Segundo esta jovem atleta, embora o futebol feminino tenha, sem dúvida, crescido nos últimos anos, ainda há críticas a apontar à valorização do mesmo.

“(…)nós, mesmo sendo federadas, não temos as mesmas vantagens que o futebol masculino. Era importante que as pessoas também valorizassem o futebol feminino como valorizam o masculino. Sei que são intensidades de jogo diferentes. Sei que são ritmos totalmente diferentes, mas acho que de certa forma, deveríamos ser um pouco mais apoiadas”.

Mariana Maio

Mariana já assistiu a comentários machistas direcionados às suas colegas de equipa. Lamenta que o futebol ainda seja visto como um desporto masculinizado. «É pena que ainda tenham esse pensamento, principalmente, pais de algumas jogadoras e é um pouco irónico dizer isto, mas é verdade. Tenho pais de colegas minhas que dizem “Jogas futebol? Jogas futebol como os homens?” Não deveria haver este tipo de comentários».

Futuramente, pretende chegar o mais longe possível no futebol. Um dos seus objetivos é ingressar num clube “grande”.

Mariana a jogar futebol pelo Boavista durante um jogo da Liga BPI | Fotografia cedida pela mesma

“É difícil, enquanto atleta, alcançá-lo. Não é impossível, mas é difícil! Alcançar um clube grande remete para a frase: Não podes ser só bom. Tens que ser muito bom para conseguir dar nas vistas, para mostrares aquilo que és”.

Futebol como desporto inclusivo

Reflexão do contributo

Letícia Gonçalves nunca tentou ir para outra equipa além das Big Powers. Segundo Carina Silva, os responsáveis pelo Projeto Tecla gostariam que estas atletas de etnia cigana “integrassem equipas federadas para que existisse uma verdadeira inclusão e para que tivessem a oportunidade de crescer no desporto”. Mas, para já, Letícia não faz questão de ingressar numa equipa federada. Apesar de ter noção que ganharia uma maior visibilidade se o fizesse, o agradecimento que tem à Organização, ao Projeto Tecla e o amor que tem à equipa é superior a qualquer reconhecimento.

Letícia fala da ligação às Big Powers 
Fotografia de Leonel Dias após último jogo da equipa do Leões da Lapa no campeonato 2017/2018

O futuro das Big Powers pode ser aquele que elas quiserem, pois assim como Paula Pinho, Sara Brasil, Mariana Arteiro e muitas outras atletas, também elas podem sonhar com mais.

No mundo do futebol não há cor, não há raça, não há etnia, não há estereótipos, nem qualquer outra diferença. O futebol é Inclusão, é Igualdade e acima de tudo, é um desporto de Equipa.

Reportagem realizada no âmbito da Unidade Curricular (UC) de Ciberjornalismo e editada pela docente Vanessa Rodrigues