O papel metamórfico da mulher, no teatro.

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O papel metamórfico da mulher, no teatro.

A mulher e o papel que ocupa no teatro, atualmente, sofreram de um processo metamórfico (transformação, mudança). Ana Rosa Guy Galego, atriz, e Ana Príncipe Ferreira, aspirante a atriz, relatam o percurso no teatro. Mesmo a 7482 km de distância uma da outra, consegue-se percecionar a relação que as entrevistadas têm com o “eu teatral”, a relação que têm com o país onde nasceram e a relação espácio-temporal, demonstrando a importância da mulher nesta esfera.

Imagem cedida pela entrevistada, Ana Rosa.

  “Quando era criança eu fazia todas as personagens infantis nas peças teatrais que apresentávamos”, relata Ana Rosa Guy Galego, atriz de 78 anos, a qual construiu uma “carreira respeitável no Brasil”. Cresceu no meio teatral, pode dizer-se que ela não escolheu o teatro, o teatro escolheu-a. Nasceu no circo e, por isso, a família introduziu-a nas artes circenses, acabando por ser, igualmente, introduzida na arte da interpretação.

   Ana Príncipe Ferreira Dos Santos tem 21 anos, está no último ano do curso de teatro, na Escola Profissional Balleteatro. Depois de já ter estudado cinema e televisão, é no teatro que encontrou a paixão pela interpretação. Mas nunca diz nunca. Vai deixar que o futuro se encaminhe de revelar novas possibilidades.

   Escolheu o teatro por ser uma área que lhe permite “conhecer mais mundo”, debruçar “sobre as emoções do ser humano”, e “estudar de forma mais completa”. Conclui que esta arte a impulsiona a abraçar causas e a fazer com que seja “transformador”, não só, na sua vida como também “na vida do outro.”

    Ambas tiveram apoio familiar para seguir o sonho. No entanto, Ana Príncipe confessa que os pais já lhe pediram para “procurar um plano B, como direito ou jornalismo”, mas afirma que a família sempre a incentivou a não deixar a paixão que tem pela representação. “Sempre estiveram lá emocionalmente e financeiramente”, ressalva.

    O papel da mulher no teatro e a sua presença, nem sempre foram garantidas. Durante muitos anos os homens eram os únicos que podiam representar e, caso existisse uma personagem feminina, eram feitas máscaras, anulando o papel da mulher no seu todo.

   “Sinto que a mulher sofre muita pressão para manter a sua imagem dentro dos parâmetros impostos.”, afirma a estudante, Ana Príncipe.

Este é, aliás, um assunto abordado em diversas peças de teatro, para que o público mude comportamentos que devem e podem ser modificados. “A imagem e os assédios provenientes”, nota Ana Príncipe, são os obstáculos que mais sente no meio artístico. Destaca que “esse tipo de chantagem feita por homens de grande poder, são reais, alarmantes e preocupantes.”

    A jovem tem já as metas bem traçadas. Tem vontade de criar a sua própria companhia e uma academia à volta “do Teatro do Oprimido e das suas diferentes vertentes”. Criado por Augusto Boal, no ano de 1960, este método teatral constrói-se dramaticamente a partir de situações de opressão da realidade. O público, especificamente neste método, recebe a arte passivamente. A representação é uma ferramenta para abordar essas opressões, refletir sobre elas e tentar vencê-las.

  É, assim, uma ferramenta hábil que, ao longo de um espetáculo, desperta no público adormecido e passivo para questões complexas. Confronta o público com inúmeros campos: o político, o social, provoca a consciencialização presente e a perspetivação futura.

Em Portugal existem vários grupos que utilizam este método como uma ferramenta, a título de exemplo: o Grupo – “InterDito” – de Expressão Dramática da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.


  Durante um longo período – na Grécia Antiga e até no Estado Novo – a mulher era excluída e diminuída nos campos artístico e político. O lugar secundário perpetuou-se ao longo do tempo, como demonstram estudos feministas em Portugal.

Regina Moura no ensaio História sem História: “Considerações sobre o feminino”, editado em 2008, explana que à medida que a mulher inventa o seu mundo, também se reinventa, conquistando uma identidade e um território, ultrapassando o olhar do homem e a antiga imagem construída por este sobre ela. Vê-se, então, munida de um olhar novo, um olhar feminino sobre si mesma.

A artista feminista, Michelene Wandor explica que a noção de “diferença de género” não era explorada, no ano de 1968.

Os textos inseridos nos espetáculos teatrais mantinham uma perspetiva e uma abordagem masculina sobre problemas sociais, económicos e políticos. A necessidade de se criarem novos modelos de representação da mulher no teatro foi uma das motivações, para que nesses espaços feministas existisse uma massificação dos textos teatrais que se centram nesta questão.

Segundo Paula Âmbar numa entrevista sobre o projeto “Barba Azul” pelo grupo teatral Trupe À Grega, os papéis femininos eram interpretados por homens e, por isso, a mulher teve que ir conquistando as esferas que a rodeavam.

No entanto, não é por terem já um espaço atribuído que não há desafios.

 Ana Rosa destaca outros. Confessa que a maior adversidade que vem associada a esta arte, é a de “sobreviver somente dela”.  Refere, ainda, que tudo acaba por refletir e afetar a carreira almejada: “o tempo, as mudanças sociais e económicas e, agora, a pandemia em que vivemos.”

A atriz conclui que o país onde nasceu deu-lhe “todas as oportunidades e mais algumas para construir uma carreira teatral”. Em adulta, cursou com Eugênio Kusnet “que trouxe o método Stanislavki para o Brasil.”

Trata-se de um método a partir do qual o ator se prepara para interpretar e desempenhar o papel, metódica e rigorosamente e em que o artista dá vida e entrega-se, unicamente, à personagem. O centro encontra-se no ator – a personagem vê-se trabalhada, compreendida e destacada na sua totalidade – e naquilo que ele representa.

Imagem cedida pela entrevistada, Ana Príncipe.

Ana Príncipe também considera ser possível construir uma carreira no país onde nasceu – em Portugal – pois afirma que este “tem imensos projetos”, que “muitas vezes são desconhecidos pelo público em geral.”

Acha, ainda, que há sempre oportunidade de vingar na área “por mais complicado que possa parecer” e que se o artista quer “ficar no seu país, tem que lutar”.


A atividade teatral revela-se como um importante contributo nas sociedades ao longo da linha temporal que existe. É um grande canalizador de questões estruturantes como é o papel da mulher nas esferas existentes, neste caso, no teatro.

O teatro é uma manifestação artística inata ao ser humano pela sua característica comunicativa, que acaba por acompanhar a evolução do ser pensante. Gil Vicente, dramaturgo acredita que o teatro tem o poder de denunciar costumes e provocar mudanças nas sociedades. É essa particularidade que torna a arte de representar numa constante presença – quer na vida de quem a pratica e concebe – quer na vida de quem assiste e absorve.

   É, precisamente, isso que a atriz de 78 anos sublinha:

“No teatro temos de nos comunicar com as pessoas nas últimas filas e há salas de teatro com capacidade para mais de mil lugares!”

A estudante Ana Príncipe afirma que o teatro é “uma excelente área para aprender a comunicar.”

O papel da mulher neste campo artístico é importantíssimo e complexo a muitos níveis, pois vê-se numa responsabilidade constante, que acaba por lhe ser inerente, devido à repressão que sofreu.

Segundo Augusto Boal, o pai do teatro do Oprimido, esta arte impulsiona a mudança social e, enquanto forma viva, tem um impacto imediato no espectador. “O teatro é uma arma”, escreveu, também, o dramaturgo brasileiro.

Logo, não só muda o mundo, como também, muda os olhos que o seguem atentamente. Quebra paradigmas, estereótipos e opressões.